
Por gostamos do que gostamos e como nossos desejos mais b�sicos �s vezes nos levam na dire��o equivocada?
No final da d�cada de 1940, dois grandes cientistas - o zo�logo austr�aco Konrad Lorenz (1903-1989) e o bi�logo holand�s Nikolaas "Niko" Tinbergen (1907-1988), ambos ganhadores do pr�mio Nobel e cocriadores do campo da etologia (a biologia do comportamento) - estavam interessados em estudar como funcionam os instintos.
Seus experimentos revelaram algo inesperado: que os instintos evolu�ram para ajudar os animais a viver melhor, mas podem ser manipulados em laborat�rio. Se o fator desencadeante do comportamento for alterado, o pr�prio comportamento dos animais adquire caracter�sticas estranhas.
As gaivotas-prateadas, por exemplo, t�m uma pequena mancha vermelha no bico. Seus filhotes bicam instintivamente essa mancha para que a m�e regurgite a comida e os alimente.
Mas Tinbergen e Lorenz descobriram que os filhotes bicavam ainda mais quando observavam uma agulha de madeira pintada de vermelho. A agulha n�o podia dar comida aos filhotes, mas eles a preferiam em vez da m�e.

E a situa��o pode ficar ainda mais estranha.
Algumas aves que incubam instintivamente seus pequenos ovos de tom azul-acinzentado com pintas os abandonavam quando os cientistas ofereciam um ovo de gesso, duas vezes maior que o tamanho normal, com cor azul fluorescente e manchas pretas. E as aves se sentavam para chocar esse enorme ovo falso que elas nunca poderiam ter posto.
Outros experimentos se seguiram, at� que ficou claro que Tinbergen e Lorenz haviam descoberto um fen�meno incomum. Se um comportamento instintivo ocorre em resposta a um est�mulo espec�fico - como manchas vermelhas no bico ou um ovo azul com pintas -, exagerar esse est�mulo faz com que a rea��o dos animais tamb�m se amplie, �s vezes em preju�zo deles pr�prios.
Os pesquisadores chamaram este fen�meno de "est�mulo supranormal".
O p�ssaro 'malandro'
Os experimentos de Tinbergen e Lorenz eram interessantes, mas artificiais: a maioria dos animais nunca teria encontrado esses est�mulos exagerados fora do laborat�rio.
Mas existem est�mulos supranormais no mundo real que descontrolam os instintos dos animais, afinados com precis�o pela natureza. E um mestre dessas artimanhas � outra ave: o cuco.
O cuco � um famoso malandro que n�o cria seus filhotes. As f�meas p�em seus ovos em ninhos de outras aves de esp�cies menores, deixando o futuro beb� para que seja cuidado por outra ave desprevenida... e os pais nunca mais voltam a ver seus filhotes.
Assim que nasce, em um verdadeiro ato de crueldade, o filhote de cuco mata as demais crias e retira seus restos do ninho.

As aves progenitoras ficam ent�o com esse �nico filhote enorme e faminto e de uma esp�cie totalmente diferente. Mas, em vez de expuls�-lo, elas come�am a aliment�-lo.
"Muitas vezes, o filhote � 8 a 10 vezes maior que as aves que o criam e alimentam. Mas como o filhote de cuco consegue comida crescendo no ninho de uma ave muito menor do que ele?", questiona Rebecca Kilner, professora de biologia evolutiva da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
� aqui que entra em jogo o est�mulo supranormal. A maior parte dos filhotes de todas as esp�cies de aves tem uma boca larga e vermelha que estimula os pais a aliment�-los - mas a boca do cuco � supranormal.
"Ele tem uma boca enorme e muito brilhante, muito mais vermelha que a dos filhotes das aves que os recebem, que ele agita em frente � ave m�e", afirmou Kilner ao programa NatureBang, da BBC R�dio 4.
Al�m disso, seu chamado pedindo alimento � muito forte e r�pido - muito mais do que teriam tido os filhotes da m�e enganada.
"� supranormal", afirma a professora. "Ele se aproveita do sistema nervoso da ave m�e, de forma que ela simplesmente n�o consiga resistir. E o impostor, que n�o tem nada a ver com sua pr�pria descend�ncia e n�o tem nenhum interesse gen�tico pela dona do ninho, acaba escravizando-a."
� curioso... e um tanto assustador.
Mas n�s n�o somos enganados... certo?
Com apenas uma cor e um som, o filhote de cuco tem o poder de enganar os instintos das aves m�es de outra esp�cie, aperfei�oados por milh�es de anos de evolu��o, levando-as a agir contra seus pr�prios interesses.
Mas n�s, seres humanos, certamente n�o cair�amos nessas armadilhas. N�s n�o nos sentar�amos em uma enorme bola de praia, nem alimentar�amos enormes beb�s alien�genas contra a nossa vontade, n�o � mesmo?

Antes fosse assim!
N�s n�o s� ca�mos nesses golpes, desde muito antes que Tinbergen e Lorenz come�assem a pintar ovos, mas tamb�m criamos as nossas pr�prias trapa�as!
Os seres humanos provavelmente s�o a �nica esp�cie que cria seus pr�prios est�mulos supranormais - imita��es falsas e exageradas para respondermos com mais for�a que �s originais, enganando nossos pr�prios instintos, �s vezes prejudicialmente.
"O melhor exemplo, na minha opini�o, � o algod�o-doce", afirma a psic�loga evolutiva Becky Burch, do Departamento de Desenvolvimento Humano da Universidade do Estado de Nova York em Oswego, nos Estados Unidos.
"O est�mulo normal � o a��car. N�s gostamos de alimentos doces, mas insisto na palavra 'alimentos' - que t�m valor nutritivo para n�s."
Nossos instintos evolu�ram h� milh�es de anos, para que pud�ssemos ca�ar e coletar na savana africana. A grande maioria de n�s agora vive em um mundo muito diferente, mas nossos instintos seguem sintonizados para buscar recompensas excepcionais em um mundo de escassez.
N�s nos sentimos atra�dos pelo sal, pelo a��car e pela gordura, que s�o fundamentais para a nossa sobreviv�ncia. As frutas, por exemplo, s�o uma fonte de calorias, nutrientes, fibras e energia. E o seu sabor doce � uma recompensa pelo longo e incessante trabalho de conseguir alimento.
Hoje, o a��car costuma estar sempre dispon�vel e "nos fascina", segundo Burch. Mas "o algod�o-doce exagerou esse gosto ao ponto de que nem parece ser alimento. � uma lufada de penugem."
E o mesmo pode ser dito de muitas guloseimas, que s�o t�o dif�ceis de resistir que precisamos adotar uma dieta.

Burch n�o � especialista em algod�o-doce, mas sim em cultura pop, especificamente em hist�rias em quadrinhos. E sabemos que, nos quadrinhos, o corpo dos super-her�is costuma ter dimens�es pouco realistas. Seria um est�mulo supranormal?
Burch e seus colegas conduziram um estudo e suas conclus�es foram inclu�das em um artigo chamado "O Capit�o Doritos e a bomba".
"A grande maioria dos personagens masculinos das hist�rias em quadrinhos, especialmente os her�is, tem uma rela��o absurda entre a cintura e as costas: os ombros s�o mais que o dobro da largura da cintura", afirma o estudo. "Para as personagens femininas, as cinturas s�o 60% mais estreitas que os quadris."
Algu�m poderia perguntar "afinal, se s�o desenhos, qual � o problema?" Mas, quanto mais voc� analisa, menos sentido isso faz.
Por que seria atraente uma mulher que n�o tivesse espa�o para todos os seus �rg�os internos ou um homem cujo esqueleto n�o pudesse suportar o peso dos pr�prios ombros?
Eles n�o seriam seres humanos, mas � assim que funciona o est�mulo supranormal. Nossos instintos s�o enganados, levando-nos a consumir alimentos sem valor nutricional ou atraindo-nos a pessoas que n�o t�m formato humano - e n�o apenas nas hist�rias em quadrinhos.
E n�o � s� isso!

Existe a boneca Barbie com suas dimens�es fora do comum, os personagens de Pok�mon com seus enormes olhos de beb� que invocam nosso instinto protetor...
Existe a pornografia mostrando idealiza��es sexuais imposs�veis, sem falar nas drogas, nos jogos de azar, na moda e nos esportes.
H� tamb�m os v�deo games, que nos convidam a mergulhar em outros mundos, e programas de televis�o, como a s�rie popular Friends, com sua vers�o supranormal dos est�mulos sociais que somos condicionados a buscar: gente atraente com express�es amig�veis efusivas e am�veis, que riem e sorriem sem parar.
E existem as telas de televis�o brilhantes que distraem toda a nossa aten��o, as notifica��es coloridas no telefone celular que causam depend�ncia, as redes sociais, a publicidade... tudo isso � um tanto assustador.
Como fazer?
Neste mundo cheio de est�mulos supranormais, podemos ser felizes com o que � normal?
"Este � o problema dos est�mulos supranormais. Eles atraem voc� para algo que � desejado, mas imposs�vel", destaca Burch. "Sabemos os problemas que temos, por exemplo, com o a��car, mas n�s o queremos, colocamos em tudo e sofremos suas consequ�ncias para a sa�de."
"Quando o assunto s�o corpos similares aos das revistas em quadrinhos, n�s gostamos deles e queremos t�-los, mas eles est�o al�m do alcance humano. O que isso causa para nossas expectativas e nossa imagem corporal?", questiona Burch.
No fundo, somos como as pobres aves que criam os filhotes de cucos - somos impulsionados para coisas que nos fazem mal. Mas a diferen�a � que n�s mesmos as criamos.
Burch afirma que, �s vezes, basta simplesmente prestar um pouco mais de aten��o para interromper os efeitos psicol�gicos. "Quanto mais tempo voc� olhar esses corpos idealizados, mais absurdos eles se tornam. � como comer muito algod�o-doce: voc� enjoa. E come�a a pensar: 'este corpo � estranho'."
At� as aves conseguem fazer isso. Rebecca Kilner conta que existe um pequeno p�ssaro cantor que consegue lutar contra o est�mulo supranormal: a fadinha-soberba, na Austr�lia.
"�s vezes, voc� v� que elas subitamente deixam de alimentar o filhote de cuco, ignoram seus chamados desesperados e come�am at� a destruir o ninho", segundo ela. E, se a fadinha-soberba pode resistir, n�s certamente tamb�m podemos.
"� preciso olhar para al�m dos est�mulos supranormais", aconselha Becky Burch. "Eles s�o, por defini��o, algo bom demais e � preciso manter limites saud�veis... mesmo que n�o haja nada de errado em um pouco de a��car de vez em quando."
* Esta reportagem foi baseada no epis�dio "Cuckoo Chicks and the Supernormal Stimulus" ("Filhotes de cuco e o est�mulo supranormal", em tradu��o livre), da s�rie de programas NatureBang da BBC R�dio 4. Ou�a o epis�dio original (em ingl�s) no site BBC Sounds.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62806487
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