Rosto

Momentos de amabilidade e gentileza, em muitos epis�dios, s�o trocados por agress�es e acidez nas palavras

Mohamed Abdelghaffar/Pexels


Mentiras, trai��es e manipula��es. O gaslighting � uma forma de viol�ncia psicol�gica silenciosa que acontece por meio da distor��o de fatos e omiss�o de situa��es em favor do abusador. De acordo com o dicion�rio norte-americano Merriam-Webster, a express�o ganhou for�a depois de ser a palavra mais pesquisada, na internet, em 2022, com um aumento de 1.740% em compara��o a 2021.
 
O termo, que surgiu em 1944, ap�s o filme “� Meia-luz” — ou Gaslight, ainda n�o tem tradu��o livre para o portugu�s. Na �poca, a obra mostrou a hist�ria de um homem que chantageava emocionalmente sua mulher, colocando-a em posi��o de inferioridade com humilha��es. Com isso, o gaslighting surgiu para caracterizar tais abusos psicol�gicos, que s�o capazes de destruir uma vida inteira e acarretar problemas mentais e f�sicos.
 
De acordo com a psic�loga Simone Arruda, especialista em t�rmino de relacionamento, tal comportamento � definido como uma sutil forma de fazer com que a v�tima duvide da pr�pria sanidade, com mentiras e at� cerceamento da liberdade. "Ela passa a n�o acreditar no senso de realidade e percep��es. O gaslighting � mais dif�cil de detectar porque s�o a��es sorrateiras e constantes", detalha.
 
Luan Diego Marques

Luan Diego Marques, psiquiatra

arquivo pessoal
 
 

"� importante ter amigos e familiares em quem voc� possa confiar. Converse com pessoas em quem voc� confia e pe�a abrigo quando precisar"

Luan Diego, Marques, psiquiatra

 
 
Tudo come�a com o abusador proibindo a parceira de frequentar lugares, sair de casa, apontando a rede de amigos como in�til, at� faz�-la desistir de conviver socialmente. Isso, como explica Simone, para fazer a mulher ficar vulner�vel e isolada, dependente do agressor. Pela aus�ncia de pessoas que a ajudem a enxergar a realidade dos fatos, o abuso torna-se mais f�cil de ser cometido.
 
"Voc� est� ficando louca", "Est� fora de controle", "Est� exagerando". Frases cl�ssicas, mas dificilmente percebidas. Simone Arruda ressalta que o manipulador tenta de todas as maneiras fazer com que a v�tima se sinta culpada por meio de agress�es verbais, questionando a si mesma e tornando-se c�tica quanto �s suas cren�as.
 
 
"Eles ainda contam e negam mentiras, dizendo que nunca falaram isso, mesmo quando voc� tem provas. Fala mal da v�tima para pessoas pr�ximas, querendo minar a credibilidade da companheira, podendo constrang�-la na frente de outros com brincadeiras e coment�rios abusivos", descreve a psic�loga.
 
 
Outra caracter�stica mencionada por Simone � que esses homens carregam um elemento em comum: s�o extremamente sedutores. E al�m dessa capacidade de encantar, aparecem sempre como se fosse o cara perfeito e ideal.
 
No entanto, os momentos de amabilidade e gentileza, em muitos epis�dios, s�o trocados por agress�es e acidez nas palavras. "Eles fazem coment�rios sobre a roupa, a maquiagem. Menosprezam a mulher, fazendo-a desistir de sonhos, objetivos e metas", completa Simone.

O COME�O DO FIM Um relacionamento de idas e vindas, que durou mais ou menos tr�s anos, mas deixou marcas para a vida inteira. Fernanda (nome fict�cio, a pedido da entrevistada), de 33 anos, viveu uma montanha-russa de emo��es ao lado do ex-companheiro, com quem n�o tem mais contato desde 2020. Ela conta que ele tinha o costume de negar o �bvio, mentir descaradamente e distorcer situa��es a favor dele. Fazia o n�cleo de amigos pensar que Fernanda era obcecada por ele e que ela agia exageradamente.
 
"Ele dizia que eu n�o sa�a do p� dele, que tinha pena de mim. Vivia invertendo os cen�rios e me desqualificando. Quando era pego no flagra, se culpava, se fazia de v�tima", relembra. Paralelo a essas condutas, fazia pequenos coment�rios depreciativos, aqueles que aparecem subentendidos em tons de brincadeira ou cr�ticas construtivas.
 
Atacava a fam�lia, os amigos e dizia que ningu�m prestava, que a vida era melhor ao lado dele. N�o satisfeito, ainda afirmava que Fernanda n�o tinha futuro e que n�o seria ningu�m. Um gal� disputado e sedutor, era assim que o abusador se enxergava. Fernanda relata que o ex-companheiro fazia quest�o de mostrar a ela a quantidade de mulheres a que tinha acesso. Deixava evidente que era um homem desejado e querido pelo p�blico feminino, colocando a companheira em posi��o de inferioridade e baixa autoestima.

FUNDO DO PO�O Fernanda sobreviveu a guerras internas e diversos dilemas enquanto esteve com o ent�o namorado. Dias tempestuosos, imposs�veis de serem esquecidos. Problemas relacionados � ansiedade apareceram. "Se voc� est� em uma rela��o em que n�o se sente segura ou confort�vel, isso n�o � saud�vel. Hoje, para mim, � muito claro. E era assim que eu me sentia."
 
O conv�vio alternava-se entre dias bons e ruins. Momentos felizes que, de repente, eram trocados por algum problema que ele mesmo criava. Cavava uma briga, sem l�gica ou explica��o, sumindo por dias e culpando Fernanda pelos problemas. Por isso, a afli��o psicol�gica acabou tornando-se parte de quem ela era.
 
Al�m do mental abalado, o f�sico tamb�m trouxe respostas negativas. "Tive infec��es ginecol�gicas recorrentes em raz�o do estresse", relembra. � quando se percebe dentro de um relacionamento abusivo que voc� passa a conhecer outras hist�rias. Fernanda relembra que, na �poca, descobriu fatos criminosos sobre o ex-companheiro: antes dela, outra mulher havia sido agredida por ele — fisicamente. Por isso, o fim chegou. "Fiquei 15 dias em estado de choque. Vegetando mesmo. Fiquei processando tudo, porque era demais para mim. Foram dias horr�veis."
 
Naquele ponto, com as idas e vindas do namoro, Fernanda rememora a vergonha que tinha dos amigos e de uma poss�vel reaproxima��o. Diante disso, decidiu manter em segredo o desfecho e ficou sozinha. Logo que tudo acabou, o abusador foi bloqueado em todas as redes sociais e ficou sem acesso ao condom�nio onde Fernanda morava. "Ele ainda tentou contato por e-mail, mas eu disse que chamaria a pol�cia. Depois, sumiu."
 
Ainda em processo de recupera��o, as dores permanecem. De vez em quando os gatilhos aparecem novamente, principalmente quando est� se relacionando com outros homens. Agora, o que resta � a certeza de que a supera��o vai chegar.

OLHAR MAIS ATENTO O psiquiatra Luan Diego Marques cita a import�ncia de se falar sobre o gaslighting. Mais que isso: de impedir que o abuso evolua para algo mais grave, trazendo riscos reais � vida. A manipula��o psicol�gica pode provocar, ainda, transtorno p�s-traum�tico, vergonha, depress�o e desencadear futuros relacionamentos t�xicos.
 
O especialista v� como fundamental ressaltar o porqu� do gaslighting ser mais recorrente entre o p�blico feminino. "As mulheres, historicamente, tiveram menos poder e controle em muitas esferas da vida, incluindo relacionamentos �ntimos e familiares, nos quais, em muitas ocasi�es, sua liberdade, pensamentos, atitudes e interesses eram controlados por agentes externos, em sua maioria homens", esclarece.
 
Em muitos casos, como o de Fernanda, homens abrem brechas e oportunidades para fazer do gaslighting uma forma de controlar suas parceiras. O psiquiatra aponta, ainda, que as mulheres, por lidarem diariamente com a discrimina��o e o sexismo, duvidam da pr�pria capacidade, habilidade e percep��es. "As mulheres tamb�m podem ser condicionadas em seu processo educacional a serem mais preocupadas em agradar os outros e manter a paz, o que as torna mais vulner�veis ao gaslighting."
 
Superar o gaslighting pode ser um processo desafiador e demorado, mas � poss�vel, com o tempo e o apoio adequado. Segundo Luan, reconhecer que voc� foi v�tima e n�o culpada � o primeiro passo para se recuperar. Esse pensamento envolve aceitar que a realidade a qual voc� foi levada a acreditar que era falsa e que voc� foi manipulada.
 
Al�m disso, psic�logos ou psiquiatras s�o essenciais para ajudar a processar os sentimentos que se desenvolvem. "� importante ter amigos e familiares em quem voc� possa confiar. Converse com pessoas em quem voc� confia e pe�a abrigo quando precisar." Aprender mais sobre o gaslighting tamb�m auxilia na percep��o de comportamentos manipuladores em outros relacionamentos, evitando que voc� seja v�tima mais uma vez.

Outras formas de ajuda      

  • Linhas de apoio: existem v�rias linhas de apoio dispon�veis para v�timas de abuso emocional, incluindo a Central de Atendimento � Mulher (180), o Ligue 180 (disque den�ncia de viol�ncia contra a mulher), o CVV (Centro de Valoriza��o da Vida) e outras organiza��es de suporte a v�timas.
  • Grupos de apoio: grupos de apoio para v�timas de abuso emocional podem fornecer um ambiente seguro e solid�rio para compartilhar experi�ncias e obter apoio de pessoas que passaram por situa��es semelhantes.
  • Advogados: se voc� est� enfrentando uma situa��o que envolve viol�ncia dom�stica ou outras formas de abuso, � importante buscar ajuda legal. Um advogado pode ajud�-lo a entender seus direitos e op��es legais.

Fonte: Luan Diego Marques, psiquiatra