Os opioides s�o uma das principais causas de morte entre jovens adultos americanos
N�o h� tempo a perder: o Brasil precisa agir agora para evitar uma crise de abuso de opioides como a que acontece nos Estados Unidos. Essa � a principal recomenda��o de um artigo assinado por dois pesquisadores no peri�dico especializado The Lancet Regional Health - Americas.
Um dos rem�dios mais preocupantes desse grupo, segundo especialistas, � o fentanil, que virou um problema de sa�de p�blica em terras americanas e � 100 vezes mais potente que a morfina.
Segundo o Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos EUA, as mortes por overdose relacionadas ao uso de opioides saltaram de 21 mil em 2010 para 80,4 mil em 2021 — um aumento de quatro vezes em pouco mais de uma d�cada.
Embora a situa��o brasileira seja bem diferente, os autores do texto rec�m-publicado chamam a aten��o para dois fatores que podem sinalizar um aumento do uso de fentanil no pa�s durante os pr�ximos anos: a pandemia de covid-19 e o registro das primeiras apreens�es da droga em opera��es realizadas pela pol�cia recentemente.
Os especialistas sugerem, portanto, que o Brasil aprenda com a experi�ncia dos Estados Unidos — e crie pol�ticas p�blicas agora, antes que o problema tome propor��es maiores.
Duas realidades distintas
Antes de mais nada, � preciso deixar claro que os cen�rios de Brasil e EUA s�o completamente diferentes.
Em resumo, o problema entre os americanos come�ou com a promo��o indevida de medicamentos opioides como um tratamento para dor h� cerca de 20 anos — na bula e nas propagandas, algumas empresas diziam que f�rmacos analg�sicos como a oxicodona eram seguros e n�o provocavam depend�ncia.
Isso, por sua vez, levou a um aumento impressionante no n�mero de indica��es m�dicas desse tratamento. Segundo o Centro de Controle e Preven��o de Doen�as (CDC) dos EUA, em 2012 aconteceram 255,2 milh�es de prescri��es de opioides por l� — um recorde hist�rico.
Na pr�tica, isso levou milh�es de pessoas � depend�ncia — que, com o maior controle da venda legal desses comprimidos nas farm�cias em anos mais recentes, precisaram recorrer ao mercado ilegal e �s op��es mais potentes, como � o caso do fentanil criado em laborat�rios clandestinos.
No Brasil, o cen�rio � diferente tanto no perfil quanto na dimens�o. O psiquiatra e epidemiologista Francisco In�cio Bastos, autor principal do artigo publicado no The Lancet, explica que os m�dicos generalistas do pa�s ainda t�m uma "conduta tradicionalmente cautelosa no uso dos opioides mais potentes".
"Mas h� um segundo grupo de especialistas, como os anestesistas, os intensivistas, os ortopedistas e os profissionais que lidam com dor, que costumam prescrever e utilizar mais", diferencia.
Bastos tamb�m � um dos autores de um grande levantamento sobre o uso de drogas no Brasil. Os dados, colhidos em 2015, revelam que 2,9% dos brasileiros j� usaram opioides ao menos uma vez na vida sem indica��o m�dica — e 1,4% deles experimentaram essas subst�ncias no �ltimo ano.
"Esse �ndice corresponde, mais ou menos, ao que era visto nos Estados Unidos h� dez ou 15 anos", estima o especialista.
Ao contr�rio do observado entre os americanos, onde os homens s�o maioria entre os usu�rios, por aqui o consumo desses f�rmacos � mais comum entre as mulheres.

A promo��o da oxicodona como um produto que n�o causava depend�ncia gerou uma crise de sa�de p�blica nos EUA
Getty ImagesDivisores de �gua
Bastos chama a aten��o para dois fatores recentes que podem contribuir para a maior dissemina��o dos opioides em territ�rio brasileiro.
O primeiro deles � a covid-19.
"A resposta do pa�s foi confusa e politizada. Com isso, tivemos uma pandemia muito intensa, com n�meros de casos, hospitaliza��es e mortes superior ao observado em outros lugares", compara o m�dico, que � pesquisador titular da Funda��o Oswaldo Cruz (FioCruz).
Nesse contexto, o fentanil ganhou relev�ncia, porque ele � usado para intubar e colocar em ventila��o mec�nica os pacientes com quadros de extrema gravidade.
Que fique claro: o uso desse opioide em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) n�o tem nada de errado. Ele � de fato indicado em indiv�duos em condi��es mais cr�ticas, que necessitam de aparelhos para respirar.
S� que, numa pandemia que afetou milh�es de pessoas num curto espa�o de tempo, a demanda por essa subst�ncia provavelmente foi �s alturas.
Bastos esclarece que os dados nacionais sobre o uso de fentanil durante a pandemia ainda n�o s�o 100% conhecidos — e variaram consideravelmente entre hospitais p�blicos e privados. Mas, segundo ele, � ineg�vel que eles subiram consideravelmente nesse per�odo.
At� mesmo antes disso, um crescimento j� estava em andamento: a Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa) registrou um aumento de 500% nas vendas de opioides no pa�s entre 2009 e 2015 (n�mero mais recente dispon�vel).
O segundo fator que pode engatilhar uma crise dessas no Brasil � o mercado ilegal.
O psiquiatra diz que recebeu "com surpresa" a not�cia da primeira apreens�o de fentanil no pa�s — em mar�o, a Pol�cia Civil do Esp�rito Santo interceptou 31 frascos da droga com traficantes.
Ainda nos primeiros meses de 2023, o Centro de Informa��o e Assist�ncia Toxicol�gica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) soltou um alerta sobre casos de intoxica��o com fentanil identificados no interior paulista.
"Eu acompanho as estat�sticas da dispensa��o hospitalar de opioides, ent�o n�o esperava esses primeiros ind�cios dessa subst�ncia no mercado ilegal", admite.
"At� porque o Brasil n�o tem um com�rcio de hero�na forte, como nos EUA e na Europa, que est� ligado aos demais opioides", complementa.

Melhorar a capacidade de an�lise toxicol�gica � um dos passos para evitar uma crise de opioides, apontam especialistas
Getty ImagesO que fazer?
No artigo rec�m-publicado, os autores ponderam que a situa��o do consumo de opioides no Brasil n�o � motivo para p�nico — mas a experi�ncia americana e os ind�cios recentes devem ser encarados como um alerta.
Uma das preocupa��es do especialistas � a "imprevisibilidade do mercado ilegal" e "a possibilidade de vendas de produtos que misturam coca�na e fentanil" no pa�s.
Ainda segundo eles, a boa not�cia � que o problema est� no in�cio, num est�gio at� 15 anos anterior ao observado nos EUA. Ent�o, ainda � poss�vel fre�-lo antes que se torne uma preocupa��o de sa�de p�blica.
Para a epidemiologista Noa Krawczyk, a segunda autora do texto do The Lancet, um passo fundamental � "estabelecer limites sobre o marketing da ind�stria farmac�utica para m�dicos e pacientes".
"� preciso criar diretrizes claras e limitar o uso de analg�sicos opioides s� para os casos em que eles s�o absolutamente necess�rios. Quando poss�vel, outros tratamentos para dor devem ser priorizados", sugere a especialista, que � professora do Centro de Epidemiologia e Pol�ticas sobre os Opioides da Universidade de Nova York, nos EUA.
Nesse sentido, Bastos elogia uma decis�o da Anvisa, que proibiu a comercializa��o de produtos qu�micos usados na fabrica��o ilegal do fentanil.
O pesquisador da FioCruz tamb�m aponta a necessidade de criar redes de vigil�ncia toxicol�gica, que sejam capazes de detectar a presen�a desse e de outros opioides em drogas apreendidas pela pol�cia.

Brasil precisa investir em treinamentos para profissionais de sa�de aprenderem a lidar com quadros de overdose de opioides, sugere especialista
Getty ImagesControlar a oferta e educar a demanda
O psiquiatra argumenta, por�m, que n�o adianta apenas reprimir o tr�fico sem orientar os usu�rios e os dependentes.
"Historicamente, quando voc� comprime a oferta e n�o reduz a demanda, a situa��o s� piora", adverte.
"Durante a Lei Seca dos Estados Unidos [que proibia a venda de bebidas alco�licas], as pessoas deixaram de consumir os fermentados, como a cerveja, para tomar destilados de baix�ssima qualidade", exemplifica.
"Ou seja, quando h� uma repress�o muito forte, a tend�ncia � buscar produtos mais concentrados, potentes e port�teis", conclui o m�dico.
O mesmo aconteceu com o �pio e hero�na, a coca�na e o crack, a maconha e as drogas K, a oxicodona e o fentanil…
"E voc� s� reduz a demanda com educa��o, aconselhamento e servi�os de sa�de", pontua Bastos.
"O Brasil tamb�m j� pode estabelecer protocolos para o tratamento de depend�ncia aos opioides, com o uso de medica��es espec�ficas", concorda Krawczyk.
Por fim, Bastos acredita que � necess�rio treinar todos os profissionais de sa�de do pa�s para que eles sejam capazes de detectar um quadro de overdose por opioides — e saibam o que fazer para salvar a vida de v�timas.
"O Brasil est� muito mal nesse quesito. Eu mesmo n�o tive uma �nica aula sobre como lidar com quadros de abuso de drogas il�citas durante a minha forma��o inicial", diz ele.
"� importante que m�dicos e enfermeiros passem por um treinamento e saibam o que fazer numa situa��o dessas", defende.
H�, por exemplo, um rem�dio que � usado em casos de overdose e pode salvar a vida daquele indiv�duo.
Para o psiquiatra, essas a��es s�o necess�rias mesmo que a crise dos opioides n�o vire algo t�o grande no Brasil.
"Tomara que a depend�ncia relacionada ao fentanil em nosso pa�s n�o ganhe a mesma dimens�o catastr�fica do que ocorreu nos Estados Unidos", torce Bastos.
"Mas n�o importa se estamos falando de cinco ou de milhares de usu�rios. Nossa fun��o enquanto profissionais de sa�de � cuidar e salvar vidas", conclui ele.
*Para comentar, fa�a seu login ou assine