Ele insistiu, perturbou, implorou. Elvis Magalh�es, de 21 anos, n�o iria desistir. Estava internado no Hospital Universit�rio de Bras�lia (HUB), por causa da anemia falciforme, e n�o deixou em paz a m�dica at� que ela permitisse que ele fosse para o show da banda favorita, a Legi�o Urbana, naquele 18 de junho de 1988 (h� 35 anos), no Est�dio Man� Garrincha, com cerca de 50 mil pessoas.

Mas a apresenta��o terminou em confus�o e antes do tempo previsto. O jovem goiano radicado em Bras�lia, e com nome de astro do rock, saiu encolhido. Teve medo. Al�m da situa��o, sentia as dores no corpo causadas pela doen�a. Mas n�o se arrepende. "Nem foi tempo perdido. Somos t�o jovens", cantou Renato Russo para alegria de Elvis.

Elvis tamb�m queria cantar, se divertir. “A m�sica da minha vida � aquela. Quem acredita sempre alcan�a" (Mais uma vez, da Legi�o Urbana). Al�m das lembran�as do show, junho virou um m�s forte para ele por outro motivo. O dia 19 viria a ser, a partir de 2008, o da conscientiza��o mundial sobre a doen�a falciforme. Junho virou m�s de cantar mais alto.

Elvis faz o som ir longe contra o racismo (a maior parte dos pacientes � negra) e tamb�m a invisibilidade que, segundo ele e outras pessoas consultadas pela Ag�ncia Brasil, comprometem o atendimento no sistema p�blico.

O ativista e coordenador cient�fico da Federa��o Nacional das Associa��es de Pessoas com Doen�a Falciforme (Fenafal) foi o paciente mais velho do Brasil a receber o transplante de medula �ssea para se curar da doen�a.

anemia falciforme tem caracter�stica heredit�ria (pode passar de pais para filhos, se ambos os genitores tiverem o tra�o da doen�a). Ocorre por causa de uma muta��o gen�tica, com a altera��o no formato das hem�cias (formato de meia-lua ou foice).

Isso gera um problema na produ��o da hemoglobina, prote�na que d� a cor vermelha ao sangue e � respons�vel por transportar o oxig�nio pelo corpo. A doen�a ocorre por les�es vasculares e anormalidade na coagula��o. Entre os sintomas, dores fortes pelo corpo e cansa�o..

Transplante

Hoje, aos 56, o ex-relojoeiro diz que nunca deixou de acreditar e insistir com outras pessoas na luta contra a doen�a, que causa dores fortes e que pode levar � morte. Ap�s “centenas de interna��es”, ele foi curado gra�as a um transplante de medula �ssea (mais tarde tamb�m precisou receber um f�gado). 

 

Elvis pede pol�ticas p�blicas e denuncia que a doen�a � invisibilizada pelo racismo estrutural. “A doen�a foi diagnosticada h� mais de um s�culo e s� foi avan�ar nas pol�ticas p�blicas em 2005”, afirma.

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A m�dica Joice Arag�o de Jesus, coordenadora de, tamb�m entende que a hist�ria do cuidado com a  mostra que o problema n�o ganhou a aten��o devida em vista de os paciente

s serem da popula��o negra e de maior vulnerabilidade.

“O racismo institucional � um processo sutil na popula��o brasileira. Isso tem impacto tamb�m na qualidade da assist�ncia prestada a essa popula��o”.

Ela diz que at� 2005 n�o existiam protocolos no Sistema �nico de Sa�de (SUS), com orienta��o de tratamentos. “Naquele ano foi publicada a primeira portaria criando a ”.


Pol�tica Nacional de Aten��o Integral �s pessoas com Doen�a Falciforme


Da� em diante, foram estabelecidos protocolos de tratamento de cuidados na rede de hemocentros. “De 2005 a 2015, houve participa��o e realiza��o de simp�sios internacionais e nacionais. Ent�o a doen�a ganhou mais visibilidade dentro da emerg�ncia dos hospitais e nos ambulat�rios”.

Ela considera que, nos �ltimos anos, houve uma desativa��o de pol�ticas p�blicas e menos atividades de capacita��o e pesquisa. “De fato, h� um impacto n�o s� pela pandemia. Houve um arrefecimento nas atividades referentes �s pol�ticas p�blicas”. 

A m�dica diz que o atual programa � uma refer�ncia como pol�tica de qualidade dentro do SUS.

“N�s tivemos uma proje��o internacional em coopera��o com pa�ses da �frica, por exemplo (leia mais aqui sobre o tema). Agora, estamos retomando. A ci�ncia tem possibilitado melhoria na qualidade de vida. N�s mudamos a hist�ria natural da doen�a, que era de morrer at� os cinco anos de idade”.

Pouca divulga��o

A cientista social Maria Ren� Soares, coordenadora da Federa��o Nacional das Associa��es de Pessoas com Doen�a Falciforme (Fenafal), que reside em Belo Horizonte (MG), lamenta a baixa visibilidade da enfermidade. “Mesmo sendo a doen�a heredit�ria com maior preval�ncia no Brasil, pouco se fala. Por ser prevalente na popula��o negra, � pouco divulgada. A gente ainda tem muita dificuldade de acesso ao tratamento. E isso se d� devido ao racismo”, avalia. 

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Ela explica que h� uma estimativa de mais de 100 mil pessoas com a doen�a - “95% das pessoas com a doen�a s�o negras e a maioria � benefici�ria do Bolsa Fam�lia. A maior dificuldade � de acesso ao tratamento, �s medica��es, �s novas tecnologias. Principalmente no que diz respeito � urg�ncia e emerg�ncia”. 

A cientista social lamenta que  a mortalidade pela doen�a no Brasil ainda � muito alta. “H� sobrevida de pessoas de at� 42 anos e a morte de mais de 30 mil pessoas por ano no Brasil, que poderiam ser evitadas se tivessem acesso ao tratamento adequado”.

Um dos medicamentos utilizados � a e que deve ser distribu�do pelos poderes p�blicos. A coordenadora da Fenafal diz que uma demanda importante � a autoriza��o para que o Minist�rio da Sa�de autorize o rem�dio j� fracionado para a crian�a, a fim de evitar que haja a manipula��o incorreta do medicamento a partir do mesmo rem�dio dado ao adulto. 

hidroxiureia, de alto custo

Uma pol�tica p�blica importante foi a possibilidade de o poder fazer o diagn�stico precoce. Isso pode salvar a vida da crian�a, j� que o tratamento pode ser iniciado mais cedo. 

Teste de Pezinho

Indica��o do transplante

No caso de Elvis, os pais descobriram a doen�a quando ainda era crian�a. Ele conviveu com dores indefin�veis e incont�veis interna��es demoradas. O problema s� foi resolvido com o transplante de medula �ssea. Ele foi um dos primeiros casos no Brasil. “Fui indicado porque tinha muita crise de dor. Em 2005, fez o procedimento na Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo, na cidade de Ribeir�o Preto (SP). 

 

Para realizar o transplante, ele descobriu que o irm�o, Elder, quatro anos mais novo (que n�o tinha a doen�a) era 100% compat�vel. Atualmente, o coordenador cient�fico da entidade de paciente com a doen�a explica que o procedimento tem sido feito at� com compatibilidade de 50% entre paciente e doador. 

 

Elvis tinha 38 anos de idade quando se submeteu ao procedimento para colocar fim �s crises em que precisava at� de morfina para amenizar a dor. Outra terapia que o relojoeiro descobriu foi escrever. Fez uma autobiografia: Quatro d�cadas de lua minguante.

P�ginas especiais s�o dedicadas ao irm�o. “Nunca briguei na vida com ele. Sempre foi um amigo. Tinha certeza de que ele era compat�vel”. O irm�o, Elder, sabe que Elvis faria o mesmo por ele se precisasse. “Foi emocionante quando soube que poderia ajud�-lo”.

 

No Distrito Federal, por exemplo, o hemocentro cadastrou, durante o ano de 2023, 26.510 doadores de sangue. J� as pessoas cadastradas no banco de doadores de medula �ssea foram 1.283 pessoas. Cabe ao hemocentro "o fornecimento de todos os hemocomponentes necess�rios para as transfus�es demandadas no tratamento dos pacientes com doen�a falciforme".

 

A Funda��o Hemocentro explica que o candidato � doa��o pode colher sangue e se cadastrar como doador de medula �ssea no mesmo dia. "Nesse caso, basta agendar a doa��o e, no dia do atendimento, informar logo na primeira etapa que tamb�m deseja se cadastrar como doador de medula", esclareceu a entidade em nota.

Diagn�stico precoce

Se Elvis � do , o servidor p�blico paraibano Dalmo Oliveira, de 56 anos, nascido em Guarabira e radicado em Jo�o Pessoa, aprecia o forr� e as festas de S�o Jo�o, que ocorrem nesta �poca do ano principalmente em Campina Grande (PB). Ele � da Associa��o Paraibana dos Portadores de Anemias Heredit�rias e foi diagnosticado com a doen�a quando era crian�a. 


“S� descobrimos porque minha m�e me levou para fazer exames em Jo�o Pessoa. A minha sorte � que o diagn�stico foi bem precoce para aquele momento. E isso me salvou e me deu uma qualidade de vida at� hoje”. O tratamento limitava-se � transfus�o de sangue. Lembra-se que precisou fazer transfus�o de sangue at� os 15 anos de idade. As crises foram diminuindo � medida que foi envelhecendo. E resolveu depois ajudar pessoas que entendiam pouco sobre a doen�a. 
 

“Como a doen�a atinge mais fortemente a popula��o negra, existe ainda hoje uma neglig�ncia. Nos estados brasileiros onde a popula��o negra � mais presente, a doen�a tamb�m � mais presente. Mesmo assim, a gente ainda encontra m�dicos e enfermeiros desinformados sem saber como tratar o paciente que chega � unidade”.

 

Ele diz que cobra muito das autoridades m�dicas que proporcionem e conscientizem sobre o aconselhamento gen�tico para casais que pretendem ter filhos.“Um exame de sangue simples, que � a eletroforese da hemoglobina, gratuita pelo SUS, pode identificar se os pais carregam genes com possibilidade de ter um filho com a doen�a”. Dalmo tem cinco filhos. Nenhum deles tem a anemia falciforme.

Eventos em Bras�lia

Para proporcionar mais conhecimento sobre a doen�a, o Minist�rio da Sa�de promove, nesta segunda-feira (19), em Bras�lia, quatro palestras, das 9h �s 12h, com profissionais de sa�de especialistas no tema. O encontro ser� no audit�rio PO 700, na Avenida W5. 

No dia 22 (quinta-feira), no mesmo local, a coordena��o da Fenafal promove semin�rio nacional, das 13h �s 17h, e uma audi�ncia p�blica no Senado, de manh� (a partir das 9h). O telefone para informa��es � o (31) 99199.6985.