
Na pele, ele causa dor, coceira, queima��o e incha�o. Mas, para a medicina, o veneno nem sempre � vil�o: Hip�crates receitava ars�nico contra �lcera; Pl�nio, o Velho, apostava no l�quido extra�do de serpentes para curar a catarata. Hoje, com maior sofistica��o t�cnica, a ci�ncia tamb�m se volta � investiga��o de subst�ncias t�xicas que levem ao desenvolvimento de novos rem�dios. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp), um grupo de pesquisadores encontrou no veneno de uma vespa brasileira o potencial de combater c�lulas cancerosas. O resultado do estudo foi publicado na revista Biophysical Journal, do grupo Cell.
A descoberta est� em fase embrion�ria, ressaltam os cientistas. Mas, se confirmada nas pr�ximas etapas, poder� fazer do veneno da Polybia paulista forte candidato para compor uma nova classe de medicamentos oncol�gicos, que visam � camada de lip�deos da membrana celular. “Isso poderia ser �til no desenvolvimento de novas terapias combinadas, em que m�ltiplas drogas s�o usadas simultaneamente para tratar um c�ncer, ao atacar diferentes partes das c�lulas cancer�genas ao mesmo tempo”, destacou, em um comunicado, o pesquisador da Universidade de Leeds Paul Beales, coautor do estudo. Nos testes da Unesp, realizados com c�lulas cancer�genas de tumores s�lidos, cultivadas em laborat�rio, o veneno evitou o crescimento das estruturas doentes e poupou as saud�veis.
De acordo com Jo�o Ruggiero Neto, pesquisador do Instituto de Bioci�ncias da Unesp e tamb�m autor do artigo, em 2009, os cientistas da universidade brasileira detectaram, pela primeira vez, a presen�a de um pept�deo chamado MP1 no veneno da Polybia paulista. A subst�ncia come�ou a ser explorada por sua atividade antibacteriana.
“O MP1 � um potente bactericida e n�o citot�xico e tem grande potencial de substituir antibi�ticos convencionais”, esclarece Ruggiero. “O crescimento no n�mero de cepas resistentes aumenta exponencialmente e a busca por novos compostos bactericidas � de grande import�ncia”, lembra. O cientista explica que a subst�ncia retirada do veneno da vespa atua criando poros na membrana celular. Dessa forma, parte do citoplasma se perde, o que inviabiliza a a��o da bact�ria. Com as c�lulas cancer�genas investigadas no estudo � poss�vel que o mecanismo seja o mesmo, embora Ruggiero n�o descarte outras possibilidades.
O trabalho da Unesp soma-se a outras pesquisas que buscam, nos venenos de animais pe�onhentos, subst�ncias com potencial antic�ncer. Em Cuba, o Instituto de Oncologia e Radiobiologia do Minist�rio de Sa�de P�blica vem realizando testes com a toxina de um escorpi�o da ilha no combate a tumores de c�rebro. Na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, estudos ainda preliminares constataram o potencial de um elemento sint�tico que mimetiza o veneno de abelhas, cobras e escorpi�es para impedir a prolifera��o celular do c�ncer de mama e do melanoma.
DIVIS�O IMPEDIDA “Nem todos os venenos t�m o mesmo potencial antic�ncer, mas alguns conseguem frear o crescimento das c�lulas”, explica o professor do Instituto de Bioci�ncias da Unesp M�rio S�rgio Palma, que tamb�m assina o artigo no Biophysical Journal. De acordo com o cientista, as toxinas agem em um processo fundamental do desenvolvimento do tumor: a divis�o das c�lulas que, no caso do c�ncer, ocorre de forma desordenada. “A toxina trava a divis�o celular. Quando ela vai se dividir em duas, para se duplicar, o veneno trava as fibras e mata as c�lulas. N�o � uma a��o gen�tica, � mec�nica”, esclarece.
Ao mesmo tempo, o tecido saud�vel n�o � atingido, um pr�-requisito que qualquer candidato a medicamento precisa cumprir. Jo�o Ruggiero Neto explica que isso ocorre devido �s caracter�sticas diferentes das c�lulas doentes. “Nas saud�veis, existe uma assimetria na distribui��o de fosfolip�deos”, diz, referindo-se �s mol�culas que constituem a membrana celular. “Dois fosfolip�deos PE e PS (fosfatidiletanolamina e fosfatidilserina) est�o na camada interna da bicamada. Nas c�lulas de c�ncer, esses fosfolip�dios est�o na camada externa. O PS tem carga negativa e o pept�deo tem carga positiva, ent�o h� atra��o do pept�deo pela membrana por causa das cargas opostas. A camada externa das c�lulas saud�veis n�o tem carga, logo, o pept�deo n�o � atra�do pela membrana”, ensina.
Apesar dos resultados bem-sucedidos, h� um longo caminho antes que o veneno da vespa seja confirmado como poss�vel subst�ncia antic�ncer. O pr�ximo passo � test�-la em modelos de pequenos animais, como roedores, mas, embora existam planos para isso, falta or�amento. “Existe um planejamento, mas n�o sabemos quando haver� libera��o de recursos, ainda mais com essa crise”, observa M�rio S�rgio Palma.
Ser�o necess�rios ainda testes com animais maiores e, depois, em humanos, um processo que pode levar mais de 10 anos. Se, no meio do caminho, os efeitos colaterais forem muito fortes, a subst�ncia � descartada. Por�m, caso os resultados preliminares se confirmem, o veneno da vespa poder� beneficiar pacientes de diversos tipos de c�ncer, como os de pulm�o e f�gado. “A toxina tem um enorme potencial”, diz Palma.