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Estado de Minas TECNOLOGIA

A piada ofensiva que gerou primeira censura na internet e mudou a rede para sempre

A rea��o dos arquitetos da emergente internet � pol�mica lan�ou as bases das regras da rede com as quais vivemos desde ent�o


13/12/2021 21:16 - atualizado 14/12/2021 11:20


Desenho de computador com o endereço www.utopia.com na tela
(foto: Pixabay)

Esta � a hist�ria de uma guerra travada logo nos prim�rdios da internet. E o que estava em jogo era crucial: quem era o dono desse novo mundo, quem fazia as regras e quais elas seriam.

Na d�cada de 1980, antes da inven��o da World Wide Web, havia uma coisa nascente chamada Usenet. Era uma cole��o de pain�is de mensagens para o pequeno n�mero de pessoas em institui��es acad�micas e tecnol�gicas que sabiam de sua exist�ncia.

Gente como Brad Templeton, que at� ent�o usava o computador apenas para jogar e fazer planilhas.

"A Usenet foi uma epifania para mim. Entendi que o objetivo real, o uso mais importante dos computadores era conversar com outras pessoas", lembra Brad.

Havia p�ginas na Usenet dedicadas a conversas sobre ate�smo, sexo, vinhos ou tecnologia.

"Era como uma pra�a. Todas as noites, seu computador ligava para outros computadores e ligava tudo de novo com eles, e ent�o voc� podia conversar com pessoas de todo o mundo."

Um ponto

Brad acessou a Usenet por meio da Universidade de Waterloo, no Canad�, onde havia estudado, pois n�o era algo que algu�m pudesse se conectar de casa.

Normalmente, um computador era necess�rio em um laborat�rio, empresa de inform�tica ou universidade.

"Portanto, o p�blico era altamente educado, geralmente bem de vida, provavelmente n�o t�o etnicamente diverso e com conhecimento de tecnologia. Uma elite."

Eles foram pioneiros.

Para se ter uma ideia de quanto, certo dia, em 1982, Brad postou uma mensagem sugerindo que os e-mails seriam mais f�ceis de ler se tivessem um ponto. Outros concordaram, e � por isso que nossos endere�os de e-mail agora terminam em .com.

Mas Brad queria que seu legado da Usenet fosse mais divertido do que isso, ent�o ele criou seu pr�prio quadro de mensagens dedicado ao humor, chamado rec.humor.funny (RHF), que rapidamente conquistou milhares de assinantes.

Uma piada por dia

As pessoas lhe mandavam piadas e as que ele achava mais engra�adas passavam a fazer parte de uma cole��o da qual seu computador escolhia aleatoriamente uma e publicava todas as manh�s.

E um dia,uma delas fez dele um tipo diferente de pioneiro - a primeira pessoa na hist�ria registrada a ficar publicamente envergonhada por algo que fez online.

"Era uma piada baseada em estere�tipos judeus e escoceses. E a aleatoriedade do computador optou por lan��-la em um dos anivers�rios da Kristallnacht, a Noite dos Cristais."


Vidro quebrado em vitrine em armazém
Neg�cios e propriedades de judeus foram alvos de nazistas na Alemanha e na �ustria durante uma noite de vandalismo em 1938, conhecida como "Kristallnacht" (foto: Getty Images)

"O fato � que, quando foi divulgada, enfureceu um judeu do MIT (Massachusetts Institute of Technology) nos Estados Unidos", disse Brad.

Esse judeu era um brit�nico chamado Jonathan Richmond, que infelizmente morreu no ano passado. Ele morava no MIT com outro brit�nico que se lembra bem do incidente. Ele n�o queria ser identificado, ent�o vamos cham�-lo de Amir.

"�ramos ambos sens�veis ao racismo e ao antissemitismo, por isso n�o era incomum sermos incomodados por esse tipo de coisa. Mas essa piada em particular nos afetou pessoalmente. Al�m disso, havia algo muito importante na data, pela Kristallnacht."

� por isso que Jonathan e Amir tamb�m se tornaram pioneiros - ningu�m jamais havia tentado disciplinar o mundo online antes.


Tecla do computador que diz 'ódio'
Internet sem preconceito ou �dio? (foto: Getty Images)

Jonathan apelou para a comunidade da Usenet, escrevendo que geralmente gostava de piadas que o faziam rir de si mesmo, mas n�o podia tolerar o humor preconceituoso associado � persegui��o e assassinato.

Mas o pessoal da Usenet respondeu chamando-o de bobo e quase ningu�m ficou do seu lado.

Bobo?

Se voc� acha que Jonathan e Amir estavam exagerando, Amir aprofunda um pouco o contexto.

"Meus pais vieram da �frica Oriental para o Reino Unido na d�cada de 1960, quando havia placas nas janelas de casas e empresas anunciando que asi�ticos e negros n�o eram aceitos. Fui atacado v�rias vezes nas ruas. Finalmente nos mudamos para o Canad� na d�cada de 1980, em parte porque est�vamos fartos dos abusos racistas."

Coincidentemente, antes de ir para o MIT, Amir frequentou a mesma universidade onde Brad postava suas piadas.


Universidade de Waterloo
A Universidade de Waterloo � um importante instituto de pesquisa em inform�tica (foto: BBC)

A Universidade de Waterloo costumava ser um banco de talentos.

"Al�m disso, era respons�vel por enviar mais graduados para a Microsoft - que era a maior empresa da �poca - do que qualquer outra universidade do planeta."

Assim, pareceu a Amir e Jonathan que a coisa toda era um mau press�gio. Um tom estava sendo estabelecido naquele novo mundo que poderia afetar as gera��es futuras.

"Eu sabia que minha universidade tinha um grande papel em todo o espa�o da tecnologia da informa��o e que se algo assim n�o fosse controlado, teria um grande impacto negativo tamb�m, ent�o teve que ser cortado pela raiz", diz Amir.

Mas suas tentativas tinham falhado at� agora. Que recurso eles tiveram?

O quarto poder

Eles tiveram a ideia de aproveitar a visita de Amir � namorada em Waterloo para conversar com o jornal local.

"Lembro que quando li essas piadas fiquei com o est�mago embrulhado", diz a jornalista Luisa D'amato.

"Embora estivesse abordando o assunto com olhos de rep�rter, prestando a devida aten��o a todos os lados da hist�ria, piadas como essa me faziam sentir marginalizada e difamada."

"Na grande m�dia, se voc� n�o gosta de alguma coisa, pode reclamar para algum �rg�o que a regulamenta. Mas aquilo era como o Velho Oeste."

Depois de investigar, Luisa publicou um artigo intitulado "Sistema de computador da Universidade de Waterloo � usado para enviar piadas racistas".

"Foi constrangedor para a universidade. Eles n�o gostavam de estar na primeira p�gina do jornal como envolvidos em racismo horr�vel e antissemitismo."

Mesmo assim, Brad foi inundado com mensagens de apoio de usu�rios da Usenet, al�m de uma carta de um nazista que havia lutado por Hitler e vivia no Canad�, dizendo a ele que era �timo que as pessoas contassem piadas sobre judeus.

"A universidade anunciou quase imediatamente que n�o toleraria ser um centro para esse tipo de material ofensivo e suspendeu a conta de Brad Templeton", diz Luisa.


ícone de lixeira no computador
(foto: Getty Images)

"Eu estava atormentado, n�o conseguia dormir bem", diz Brad.

Mas a vit�ria de Jonathan e Amir durou pouco, algo que a comunidade da Usenet poderia ter dito a eles de antem�o.

Nada para fazer

"Essa foi a primeira vez que vi algu�m em uma posi��o de autoridade tentando banir algo na Usenet, e lembro-me de ter pensado: 'Que idiotas! Eles acham que podem banir. N�o vai funcionar'", disse o pioneiro da Usenet e cientista da computa��o Brian Reed, que na �poca era professor assistente de engenharia el�trica na Universidade de Stanford, no cora��o do emergente Vale do Sil�cio.

"Todos os tecn�logos entenderam que a internet n�o tinha censura. Foi projetada para ser assim. Se voc� fosse proibido de fazer algo, nada mudaria porque outras cem pessoas continuariam com a tarefa."

V�rios usu�rios da Usenet se ofereceram para hospedar o site de Brad, que ele reativou imediatamente.

Mas a batalha n�o tinha acabado.

Enquanto isso, na Calif�rnia...

O destino da piada antissemita estava prestes a ser alvo de nova disputa, desta vez na Universidade de Stanford, onde o veredicto afetaria a vida de todos que j� usaram as redes sociais.

Na d�cada de 1980, o campus de Stanford era um lugar muito progressista. Mas havia um pequeno n�mero de estudantes conservadores com um meio poderoso para fazer suas vozes serem ouvidas: o jornal Stanford Review.

Seu editor foi Peter Thiel, mais tarde fundador do PayPal, e tamb�m um dos primeiros investidores no Facebook, Airbnb, LinkedIn, Yelp e Spotify, que por d�cadas personificaria a cultura libert�ria do Vale do Sil�cio.

Nas p�ginas do jornal, ele e sua equipe lamentaram o politicamente correto.

E um incidente desencadeou um conflito polarizador.


Beethoven
Beethoven foi um protagonista involunt�rio (foto: Getty Images)

Enquanto tudo isso acontecia na Universidade de Waterloo, em Stanford, depois de uma conversa sobre se Beethoven era descendente de africanos, dois alunos que acharam a ideia rid�cula pintaram fei��es estereotipadamente pretas em uma foto do m�sico e a colocaram na porta do quarto de outro aluno que estava defendia isso e era afro-americano.

Os dois alunos foram expulsos da resid�ncia universit�ria.

Houve marchas pedindo normas para proibir o �dio racial no campus, um tipo de ativismo que n�o era incomum nas universidades da �poca.

Mais incomum foi a rea��o dos estudantes conservadores que, por meio da Stanford Review, questionaram a expuls�o dos dois estudantes por causa de um panfleto que poderia simplesmente ter sido jogado fora, e desafiaram o p�blico perguntando se eles realmente acreditavam na liberdade de express�o.

Em meio a essa atmosfera tensa, uma usu�ria da Usenet chamada Jean Janice, que trabalhava no Centro de Computa��o da Universidade de Stanford, se conectou para ver a piada do dia de Brad Templeton.

Foi a piada antissemita.

Momento crucial

"Achei engra�ado e ent�o come�ou todo o alvoro�o para saber se aquele tipo de material deveria estar ali", lembra Jean.

Para ela, o fechamento do site de Brad por causa da piada era rid�culo, e ela contou isso a seu chefe John Sack, o diretor do Data Center de Stanford, pensando que ele provavelmente tamb�m pensaria que era uma tempestade em um copo d'�gua.

Mas parecia mais s�rio para ele e ele decidiu falar com seus superiores.


Campus da Universidade de Stanford
Campus da Universidade de Stanford (foto: Getty Images)

John havia passado d�cadas nos bastidores em Stanford, procurando silenciosamente as melhores maneiras de publicar peri�dicos acad�micos online. Mas naquele dia cabia a ele descobrir como Stanford deveria reagir � piada.

E como se tratava de Stanford no final dos anos 80, era um momento crucial na hist�ria. Stanford foi pioneira na implementa��o da ideia de que uma faculdade poderia criar empresas que se tornassem centros de excel�ncia empresarial, o que realmente foi o nascimento do Vale do Sil�cio.

E essas empresas se concentrariam em uma coisa.

"O uso de computadores estava come�ando em um contexto social, ent�o est�vamos navegando nas �reas cinzentas de quanto permitir que o computador fizesse por e para as pessoas", enfatiza John.

A piada de Brad seria o caso de prova perfeito. Os arquitetos da emergente internet estavam assistindo.

"O curso n�o estava claro. Eventualmente, ter�amos que tomar uma decis�o."

O ponto final

Ap�s semanas de delibera��o, foi anunciado que a p�gina de Brad tamb�m seria banida em Stanford.

O motivo foi explicado em um ensaio detalhado e sincero. Em suma, o amor de Stanford pela liberdade de express�o importava menos do que sua busca coletiva por uma maneira melhor de cada pessoa ser reconhecida como um indiv�duo, n�o uma caricatura.

Depois, o inferno desabou na forma de um gigante em Stanford, o agora falecido professor titular John McCarthy, um dos maiores nomes da computa��o na �poca e um dos fundadores do conceito de intelig�ncia artificial.

Horrorizado, ele postou uma resposta feroz, chamando John Sack de um lacaio.

Lan�ou uma das primeiras peti��es online da hist�ria da Internet, coletando 100 assinaturas do corpo docente. Na �poca, como agora, o poder da peti��o online era formid�vel: a proibi��o da p�gina de piadas de Brad foi rapidamente revertida.

O argumento vencedor de John McCarthy se resumiu a: "Estamos explorando a tecnologia de ponta da computa��o. Precisamos descobrir os limites do vi�s da liberdade de express�o encontrando-os. Ou cruzando-os."

E essa � a internet com a qual vivemos: uma utopia de engenheiros libert�rios em que a liberdade de express�o floresceu independentemente dos perigos que pudesse causar � sociedade.

Perigos que n�o s�o apenas palavras ofensivas, mas tamb�m not�cias falsas.

E como a liberdade de express�o irrestrita leva a conflitos que mant�m as pessoas online por mais tempo do que a harmonia, � uma ideologia lucrativa para empresas de tecnologia.

*Este artigo foi adaptado do epis�dio "A Scottish Jewish Joke" da s�rie da BBC "Things fell apart".

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