Carlos Starling
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SAÚDE EM EVIDÊNCIA

Cuidados paliativos: aprendendo a viver até a última gota

Em Minas, aprendemos desde cedo que a morte faz parte da vida, como o queijo faz parte do pão de queijo

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Mineiro que sou, carrego o ceticismo e a ironia que nascem nas montanhas. Dizem que somos desconfiados por natureza, mas prefiro pensar que somos apenas cautelosos com as verdades absolutas. E que verdade mais absoluta existe que a morte? Como disse o jagunço Riobaldo em Grande Sertão Veredas: "A gente morre é pra provar que viveu".

Ontem, no CTI quase asséptico de um hospital, flagrei o espetáculo cotidiano da medicina moderna. Médicos jovens, de olheiras profundas, corriam com seus jalecos brancos, celulares nas mãos e a ilusão de que podem, indefinidamente, adiar o inadiável. A morte, essa mineira mais mineira que todos nós, esperava. Apenas esperava e observava.

Os cuidados paliativos são uma confissão de derrota da medicina e uma vitória da humanidade. Rendemo-nos à evidência de que somos mortais. Inclusive nós, médicos, com estetoscópios pendurados no pescoço como medalhas de uma guerra perdida desde o princípio. Mas que bela rendição! Que honrosa derrota esta, que nos permite olhar nos olhos do paciente e dizer, sem subterfúgios: estamos juntos nessa travessia.

Em Minas, aprendemos desde cedo que a morte faz parte da vida, como o queijo faz parte do pão de queijo. Na fazenda do meu avô, em Ibiá, onde passei parte da infância, os velhos morriam em casa, cercados pela família, pelas galinhas no quintal, pelo cheiro de café fresco e pelo padre que sempre chegava atrasado. Hoje, morremos entre aparelhos, sozinhos em meio a desconhecidos familiarizados com a morte: "Ele parou. É, parou!".

Montaigne, esse mineiro que nasceu na França por engano, já dizia que filosofar é aprender a morrer. Mas nós, modernos que somos, inventamos mil maneiras para esquecer a morte. Enchemos a agenda, acumulamos compromissos, corremos tanto que a morte precisa ser atleta para nos alcançar. Ainda assim, ela chega. Implacável como o sol de janeiro no Norte de Minas.

Vi certa vez, na ala de clínica médica do Hospital da Baleia, um senhor de seus 90 anos que recusava a morfina porque queria "sentir a morte chegando". Sugeri que aceitasse pelo menos uma dosezinha, para tirar a aresta mais afiada da dor. "Doutor, a morte não tem arestas. É redonda como a vida, e eu quero abraçá-la inteira." Fiquei sem resposta.

Cicely Saunders, uma inglesa que certamente tinha um pé em Minas Gerais, revolucionou a forma como tratamos os que estão de partida. Saunders entendeu que não bastava cuidar do corpo que se desfaz; era preciso amparar a alma que permanece intacta até o último suspiro. Como se soubesse que o corpo é apenas o cavalo que carrega o cavaleiro até a estação das chegadas e partidas.

Em Ibiá, as velhas senhoras preparavam a própria mortalha. Bordavam, com capricho, a roupa com que desejavam ser enterradas. Hoje, vejo a beleza do gesto: apropriar-se da própria morte, fazê-la familiar, convidá-la para um café antes que ela arrombe a porta. Os cuidados paliativos são um pouco isso: um café com a morte, servido em xícaras de porcelana fina.

Kübler-Ross, com seus cinco estágios do luto, tentou organizar o caos que é o morrer. Nós, mineiros, sabemos que a morte não cabe em esquemas. É bagunçada como quarto de adolescente, imprevisível como política em Brasília. Já vi gente partir rindo, outros chorando por nunca terem levado os filhos para pescar. Alguns, em silêncio profundo. Cada um morre a sua morte, como vive a sua própria vida.

Tolstói, esse russo que escrevia como mineiro, contou a história de Ivan Ilitch, que só compreendeu a vida quando estava prestes a perdê-la. Passamos décadas acumulando quinquilharias para descobrir, tarde demais, que nada disso tem serventia na hora derradeira. O que vale mesmo são os olhos que nos olham com amor, as mãos que seguram as nossas, as vozes que nos chamam pelo nome.

No Hospital da Baleia, havia uma voluntária chamada Dona Flor, que servia café para os pacientes. "Café não cura câncer", disse-me ela uma vez, "mas cura a solidão, nem que seja por cinco minutos. Bem melhor que antibiótico prescrito nas últimas horas de vida, o doutor não acha?". Pensei comigo: eis uma verdadeira especialista em cuidados paliativos.

Fernando Pessoa escreveu que "devemos pôr o quanto somos no mínimo que fazemos". Nos leitos de morte, esse mínimo se torna máximo. Um copo d'água oferecido com carinho, um travesseiro ajustado com atenção – são atos pequenos que ganham dimensão transcendental. A medicina tecnológica empalidece diante desses gestos ancestrais de cuidado.

Jung dizia que a morte é tão importante quanto o nascimento. Mas festejamos um e escondemos o outro. Em Minas, antigamente, não era bem assim. A morte era um acontecimento social, com café servido na sala, crianças correndo no velório, vizinhos trazendo broas de fubá para a família enlutada. A dor era compartilhada, como se dividida entre muitos, pesasse menos em cada um. Hoje, escondemos os mortos, como se a morte fosse contagiosa. Impossível esquecer os mais de 700 mil enterros solitários da pandemia. Gestores sem empatia são sinônimo de catástrofe.

Montaigne acertou: quem ensina a morrer, ensina a viver. Nos cuidados paliativos, essa lição ganha contornos práticos. Aprendemos que o tempo não se mede em horas, mas em intensidade; que o amor se expressa melhor na vulnerabilidade compartilhada; que a dignidade permanece intacta mesmo quando o corpo se despedaça.

Como médico mineiro, habituado a olhar a vida com desconfiança e humor, encontro nos cuidados paliativos uma redenção da medicina. É como se, depois de tanto lutar contra a morte, finalmente fizéssemos as pazes com ela. Não como rendição, mas como reconhecimento de uma verdade antiga que as montanhas de Minas sempre souberam: somos todos passageiros, alguns com passagem marcada, outros com data em aberto, mas todos destinados a descer na última estação. É preciso aprender a viajar até lá com dignidade.

Entre um cafezinho com pão de queijo, entre uma piada e um silêncio, vamos aprendendo aos poucos a morrer. Quem sabe, aprendendo também a viver com mais verdade, menos pressa e um tantinho mais de sabedoria: tim-tim.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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