Há um certo cansaço nos bastidores da infectologia: um silêncio que não é elegante, é fadiga. Os sinais são de uma música antiga, desafinada e pouco atrativa. Os jalecos novos estão fugindo da nossa praia, viram a cara quando a especialidade é mencionada. Fogem da festa antes que a conta chegue.

Os dados são cruéis: até 2025, projeta-se um déficit de quase dois mil infectologistas nos Estados Unidos, um país onde 80% dos condados já nem sabem o que é ter um especialista desses por perto. Na Europa, o cenário é ainda mais desolador: metade dos especialistas por milhão de habitantes em comparação com os EUA. No Brasil, o cenário é semelhante. Em algumas residências sobram vagas.


E por que essa debandada? Primeiro, a remuneração. Parece que caçar Staphylococcus aureus paga menos do que desentupir uma coronária ou bombardear um tumor. Segundo, o cansaço. A pandemia deixou uma ressaca existencial, um esgotamento que fez muitos olharem para os vírus com o mesmo entusiasmo com que se olha para uma segunda-feira chuvosa depois de um feriado prolongado.

Mas o terceiro motivo beira o cômico, se não fosse trágico: a percepção de que o infectologista é, em essência, um porteiro de antibióticos. Um guardião burocrático, um "fiscal do Meropenem", cuja principal função é dizer "não" e preencher formulários. Nossos residentes pensam: "Estudar uma década para virar o chato do hospital?". Eles não conseguem ver o mar de oportunidades no futuro, ofuscado pelas ondas gigantes da arrebentação.


E é uma pena, porque estão perdendo o início da maior reviravolta na trama da medicina infecciosa desde que Fleming esqueceu uma placa de cultura perdida no seu laboratório.

Houve um tempo em que a humanidade era um brinquedo nas mãos de inimigos invisíveis. A simples ideia de que germes causavam doenças foi um salto quântico, que nos deu a higiene e a chance de lavar as mãos de muitas desgraças. Depois, nos anos 1940, vieram os antibióticos, e a expectativa de vida da humanidade deu um salto tão espetacular que deve ter dado torcicolo no anjo da morte. E o que dizer da vacinação, a genial arte de apresentar o inimigo ao corpo em um ambiente controlado? Graças a essa ideia, doenças como a varíola foram literalmente apagadas da face da Terra.

Mas o tempo passou. Os microrganismos, experientes que são, aprenderam a revidar. A resistência antimicrobiana cresceu e novas pragas surgiram. A arrogância de acreditar que venceríamos a corrida armamentista contra os patógenos apenas com novos antibióticos começou a ruir. Estávamos presos em uma lógica de guerra de trincheiras: nós atiramos, eles se escondem e desenvolvem coletes à prova de bala; nós inventamos uma bala maior, eles constroem um bunker.

É aqui que entra uma nova filosofia. Uma mudança de perspectiva tão fundamental que faz o velho modelo parecer uma relíquia. A proposta é destronar a primazia do microrganismo invasor. Por mais de um século, nossa obsessão foi identificar o bandido: "Quem é você? Klebsiella? Aspergillus?". Uma vez identificado o CPF do meliante, escolhíamos a melhor bala de prata.



A nova sabedoria nos diz que a identidade do criminoso é apenas metade da história. A verdadeira trama se desenrola na interação. A equação que definirá a medicina do futuro é esta: microrganismo + resposta imunológica = apresentação clínica.

Parece simples, mas é revolucionário. Significa que a doença não é apenas o que o patógeno faz, mas o que o nosso corpo faz em resposta a ele. Às vezes, nosso sistema imune é um soldado sonolento, que precisa de um café forte. Em outras, ele é um soldado em pânico, atirando para todos os lados, causando mais dano ao nosso próprio corpo que o invasor – a chamada "patologia induzida por hiperinflamação". A sepse é um bom exemplo dessa fúria autodestrutiva.

A infectologia do futuro não será mais a prática clínica da microbiologia, mas sim a prática clínica da imunologia aplicada a infecções. O infectologista deixará de ser um mero caçador para se tornar um maestro, um modulador da orquestra imunológica do paciente.

Essa ideia, a de terapias dirigidas ao hospedeiro, não é nova na medicina. A oncologia e a reumatologia já surfam essa onda há tempos. Anticorpos monoclonais que "tiram o freio" dos nossos linfócitos T para atacar tumores e inibidores que acalmam partes do sistema imune para tratar vasculites são realidade. Se podemos modular o sistema imune para combater o câncer ou doenças autoimunes, por que não para combater uma infecção? Já tentamos essa estratégia no passado, demos com os burros na água.

Entretanto, o futuro promete uma sofisticação maior. As terapias dirigidas ao hospedeiro terão objetivos claros: 1. Interferir em fatores da célula hospedeira; 2. Aumentar as respostas imunes protetoras;
3. Reduzir a inflamação exacerbada. Agora vai!

Os exemplos já estão à vista: a pandemia nos ensinou que, em certos estágios, cortar a orquestra inflamatória salva mais que afinar o instrumento antiviral. Corticoides, bloqueadores de IL-6 — tudo isso foi pedir ao sistema imune que respirasse mais devagar. E há casos ardentes de beleza clínica. Por exemplo, pacientes com infecção fúngica disseminada, salvos não só por um novo antifúngico, mas por corrigirmos o mau humor imunológico — dando interferon, bloqueando vias inflamatórias — e vendo a doença desaparecer na coxia.

Para que essa arte se torne prática diária, precisaremos de novas ferramentas. Os exames que temos hoje são como fotografias de baixa resolução. O futuro exige um filme em alta definição e em tempo real. Surge o conceito de “vetor imune", que seria como um eletrocardiograma do sistema imune, combinando dados de biomarcadores, citometria de fluxo, transcriptômica e outras técnicas avançadas.

Com essa tecnologia, poderíamos criar "gêmeos digitais" do sistema imune, simulando o efeito de diferentes imunoterapias antes de administrá-las. A escolha do tratamento será ultrapersonalizada, ajustada para aquele paciente naquele momento específico da doença.

Essa é a visão. Uma medicina onde o infectologista será um biólogo do hospedeiro, capaz de "aumentar" ou "diminuir" a resposta imune com a precisão de um engenheiro de som. Uma medicina que promete curas onde hoje só temos paliativos, sem o dano colateral de promover resistência microbiana e destruir o microbioma dos nossos pacientes.

Talvez, se os residentes pudessem vislumbrar esse futuro – onde eles não são porteiros, mas maestros; não são caçadores, mas estrategistas que comandam tanto o exército de ataque (antimicrobianos) quanto as defesas do próprio castelo (o sistema imune) – eles não estariam fugindo da batalha da especialidade.

A infectologia não termina em crepúsculo; renasce como arte aplicada. Exige coragem para virar a página e coragem ainda maior para ensinar a amar esse trabalho espetacular. Certamente não somos e nem seremos especialista de uma só doença. E, se ainda houver justiça no mundo, talvez passem a nos pagar bem — porque talento que combina Ciência & Ética, tato e bom humor merece, no mínimo, um troco que sustente o samba.


*Crônica baseada no artigo “The Changing Paradigm in Infectious Diseases-Host Directed Medicina: Implications for the nexte generation of ID Physicians” The Journal of Infectious Diseases . DOI:10.1093/infdis/jiaf497.

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