Na virada do ano 1999 para 2000, Frei Francisco Van der Poel (1940-2023), ou melhor, Frei Chico estava descendo o Rio São Francisco numa barca junto de um grupo de artistas, intelectuais e ativistas ambientais. A viagem integrava o projeto “Caminho das águas”, tendo início em Pirapora e fim em Penedo (SE).
Leia Mais
Frei Chico parava em cada comunidade ribeirinha que surgia pelo caminho, conversava com os moradores e realizava atividades culturais e religiosas. Numa dessas paradas, deixou seu hábito com uma lavadeira, deixando acertado que o pegaria de volta no dia seguinte.
No dia combinado, Frei Chico recebeu a indumentária repleta de bordados coloridos. São peixinhos, árvores, passarinhos, cruzes e a saudação “Paz e bem”, típica dos franciscanos. O gesto emocionou o frade, e a roupa ganhou significado especial, sendo usada somente em ocasiões importantes.
A veste customizada de Frei Chico é o item que mais chama a atenção na mostra “Sacralização da vida: Do rosário ao Jequitinhonha”, em cartaz no Centro de Arte Popular. Realizada em parceria com o Museu de Araçuaí, a exposição exibe objetos pessoais do sacerdote e originais de livros escritos por ele. Entre eles, “Ritual de bênçãos simplificado” e o clássico “Dicionário da religiosidade popular”, que reúne cerca de 8.500 verbetes com termos falados por moradores do Jequitinhonha. A publicação, vale dizer, é resultado de 40 anos de pesquisa.
Os visitantes da exposição são incentivados a depositar bilhetes para Frei Chico; anotações com reflexões do sacerdote estão expostas na mostra
Natural de Zoeterwoude, na Holanda, o frade veio para o Brasil em 1967, tão logo se ordenou padre. A primeira cidade para onde o mandaram foi Araçuaí, onde ficou por 10 anos.
Vale do Jequitinhonha
“Frei Chico abriu as portas do Vale do Jequitinhonha para o país. Ele deu visibilidade para a produção artística que era feita lá”, afirma a educadora Fátima Sampaio, uma das responsáveis pela curadoria da mostra. “Eu estive em Araçuaí há pouco tempo. Lá, as pessoas disseram que o artesanato e a música regional eram tratados como ‘bobagenzinhas’ por todos, até por eles mesmos. Foi Frei Chico quem viu valor artístico naquilo, e os fez verem esse mesmo valor”, comenta.
Em Betim, quando morou na Colônia Santa Isabel – antigo leprosário no Bairro Citrolândia –, o franciscano criou o Coral Tangarás de Santa Isabel, que mantinha – e ainda mantém hoje – repertório sacro para as missas e não-religioso para apresentações em programas de TV e outras ocasiões.
De personalidade tranquila e voz serena, Frei Chico nunca passava despercebido: onde quer que fosse, chegava imitando passarinhos com o assovio. Estava sempre acompanhado da viola ou da rabeca e mantinha no cordão do hábito um palhacinho – ambos expostos em “Sacralização da vida”.
“A ideia é tornar acessível todo esse material, que originalmente fica em Araçuaí”, diz Fátima. “Queremos fazer um intercâmbio de memórias e pensamentos, porque tem muita gente que conhece o Frei Chico e admira o trabalho dele, mas não tem condição de viajar até o Vale do Jequitinhonha para conferir esses itens”, diz.
A iniciativa da mostra contou com apoio da amiga e companheira de pesquisa de Frei Chico Maria Lira Marques. Foi ela que ajudou o sacerdote a viabilizar o “Dicionário da religiosidade popular”.
Também estão na exposição pequenas reflexões escritas pelo franciscano à mão. Essas anotações inspiraram os organizadores da exposição a separar um espaço para que os visitantes possam escrever bilhetes para o frade.
“Quando estávamos montando a exposição, sentimos que ele estava ali com a gente, participando e se envolvendo. Foi um sentimento geral de todos que estavam no CAP. De repente, ficou um clima muito tranquilo e agradável”, conta Fátima.
“SACRALIZAÇÃO DA VIDA: DO ROSÁRIO AO JEQUITINHONHA”
Exposição de objetos pessoais de Frei Chico. Em cartaz no Centro de Arte Popular (Rua Gonçalves Dias, 1.608, Lourdes). Visitação de terça a sexta, das 12h às 18h30; sábados e domingos, das 11h às 17h. Até 28/9. Entrada franca.