'A prisioneira de Bordeaux' é mais um acerto de Isabelle Huppert
Filme da diretora francesa Patricia Mazuy conta a história de duas mulheres de classes sociais diferentes que compartilham dúvidas e infelicidades
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Siga noUma mulher branca, europeia, percebe uma imigrante árabe na antessala de um presídio. Os maridos delas estão cumprindo pena. Duas classes sociais distintas dentro de um mesmo espaço de punição. Logo depois, a mulher branca, guiando um carrão, encontra a moça árabe deitada num ponto de ônibus e lhe oferece carona. Aos poucos, elas quebram barreiras e se conhecem melhor. Graças ao encontro, suas vidas fazem curvas curiosas.
Eis um resumo da sinopse de "A prisioneira de Bordeaux", longa mais recente da diretora francesa Patricia Mazuy, que estreia agora nos cinemas brasileiros após passagem pela Quinzena dos Realizadores de Cannes e pela Mostra Internacional de São Paulo do ano passado.
A mulher branca, Alma, é vivida por Isabelle Huppert, uma instituição do cinema europeu. A árabe, Mina, é interpretada pela franco-tunisiana Hafsia Herzi, revelada em "O segredo do grão", de Kechiche.
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O marido de Alma, um neurocirurgião de prestígio, atropelou duas pessoas, matando uma delas, e não parou para prestar socorro. Pegou só seis anos de cadeia. O marido de Mina foi apanhado depois de roubar relógios de uma joalheria. Condenado, não delatou seus cúmplices e não teve a pena atenuada.
Alma, mulher de meia-idade, parece solitária. Ela convida Mina a se hospedar em sua casa, já que Mina mora onde os trens não chegam a partir de determinado horário. Recebe também os dois filhos da moça, uma menina e um menino, ela um pouco mais velha do que ele, ambos ainda na infância.
Com essa trama, é justo esperar um filme mais preocupado com as questões sociais e com a luta de classes do que com os procedimentos cinematográficos, as escolhas que fazem com que um filme, independentemente de seu tema, seja bom ou ruim. Mas é possível atentar para as duas coisas.
Aí entramos na direção, que em muitos casos faz toda a diferença. Mazuy, a diretora, tem ao menos dois grandes filmes em sua carreira: "Um homem marcado", mais conhecido pelo nome original, "Peaux de vaches", de 1989, e "Saint-Cyr: As meninas do colégio", de 2000, em que Huppert também brilha.
Sua obra-prima é um episódio de uma série de longas modestos produzidos pela TV, "Tous les garçons et les filles de leur âge", de 1993, com a qual ela contribuiu com a pérola "Travolta e eu".
Nesse longa extraordinário de início de carreira, percebemos um desejo de não recuar diante das possibilidades mais extremas do enredo. A confirmação dessa tendência está em seu longa de 2022, "Bowling Saturno", atração da Mostra Internacional de São Paulo daquele ano.
Delicadeza formal
"A prisioneira de Bordeaux", seu longa seguinte, é melhor, e não só por Huppert. Há uma delicadeza formal perceptível já na primeira cena, com a câmera mirando um teto envidraçado que reflete flores de todas as cores e a atriz circulando pelo espaço fílmico.
O que se pode fazer, hoje, diante da onda contrária a imigrantes na França e na Europa? Muitos optam pela demagogia, colocando o colonizador como explorador e os colonizados como vítimas. É uma saída fácil, que tende a agradar e apaziguar o público.
Embora entre no registro do realismo social, Mazuy não faz muito esse jogo e não foge das implicações mais complexas da trama. Há algo de esnobe no comportamento controlador de Alma, valorizado pela interpretação de Huppert, mais uma vez no limite do exagero. E há algo de oportunista em Mina, que faz com que ela vença a desconfiança inicial e aceite a aproximação e o controle da burguesa.
Há sobretudo uma ideia de distribuição que está bem de acordo com o que acreditava o mestre Luis Buñuel: a maldade flerta com todos os corações, não importa classe, gênero ou idade.
Trunfo
O grande trunfo de Mazuy, também uma das roteiristas, é mostrar pessoas, não estereótipos. Gente capaz de mesquinharias e de gestos generosos, de compaixão e desonestidade.
Mais que isso, ela mostra duas mulheres que, apesar do abismo financeiro e geracional entre elas, vivem com dúvidas, infelicidades, além de um certo desprezo pelos maridos. Estes não são mostrados como seres destruídos pela crueldade ou dignos de pena. São somente desinteressantes para elas.
O conflito de classes fica muito evidente em diversos momentos, notadamente naquele em que Mina chega enquanto Alma recebe seus amigos burgueses. Mina é confundida com uma nova governanta, para começar.
Nessa sequência, a direção enfatiza a separação, criando planos isolados. Um para Mina com seus dois filhos que acabam de se aproximar do convescote, outro para o pessoal de Alma, no lado oposto do cômodo, a uma "distância segura".
É Patricia Mazuy a responsável pela graça e a inventividade discreta de "A prisioneira de Bordeaux". E a entrega de Huppert a um papel talhado para ela faz alguma diferença. (Sérgio Alpendre/FolhaPress)
“A PRISIONEIRA DE BORDEAUX”
França, 2024, 108min. De Patricia Mazuy. Com Isabelle Huppert, Hafsia Herzi e Noor Elasri. Em cartaz na Sala 2 do UNA Cine Belas Artes, às 15h30.