Se não o mais, um dos mais influentes e populares humoristas portugueses da atualidade, Ricardo Araújo Pereira, de 51 anos, pelas bandas de lá chamado RAP, está no Brasil participando, pela segunda vez, da Festa Literária de Paraty (Flip). Chega na esteira de seu livro mais recente, “Coisa que não edifica nem destrói”.
Tal frase foi tirada de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Foi escolhida para falar “desavergonhadamente de humor”, obsessão de RAP. O livro nasceu dos roteiros do podcast homônimo.
Leia Mais
Sua carreira despontou com o Gato Fedorento, grupo formado em 2003 e que no Brasil encontra paralelo com o Porta dos Fundos – é próximo de Gregório Duvivier, com quem criou o espetáculo “Um português e um brasileiro entram num bar”. Hoje, está em todas: rádio, TV, jornal, literatura e podcast.
Conta, de forma anedótica, que sua relação com o Brasil começou duas décadas antes do próprio nascimento, quando seus avós emigraram para São Paulo.
“Meu avô, que não nem tinha ainda 40 anos, teve uma síncope cardíaca e morreu. E minha avó, uma senhora nascida em 1920 em Viana do Castelo, Norte de Portugal e o equivalente a nascer na Idade Média, interiorizou a ideia de que uma senhora viúva séria não volta a casar e não volta a rir. Essa mulher que me criou. Ela continua a ser a pessoa mais importante da minha vida. Levei a infância inteira empenhado na tarefa de fazer rir uma velhota muito circunspecta.”
Na entrevista a seguir, RAP fala de piadas de português, de humor e política, aqui e no além-mar. Ele conseguiu fazer sua avó rir. “De vez em quando, muito a contragosto. Era uma transgressão para ela.”
A literalidade dos portugueses é um grande estereótipo. Como é trafegar entre dois mundos, o humor português e o humor brasileiro, falando a mesma língua?
Sobre as piadas de português que se conta no Brasil, de que os portugueses são muito literais... Essas anedotas são as mesmas que os americanos contam dos poloneses, os belgas dos franceses.
Tem aquela piada em que Jesus está naquele momento em frente à mulher adúltera e diz: ‘Quem nunca errou atire a primeira pedra.’ O português pega uma pedra e acerta na mulher adúltera. Jesus fica surpreendido e diz: ‘Tu nunca erraste?’ E o português diz: ‘A esta distância, nunca.’
O português tem e não tem razão. A palavra errar tanto significa pecar como significa errar o alvo. E, portanto, se Jesus quer ser mais bem entendido pelo português, deve esforçar-se mais. Não tenho a certeza de que haja uma diferença, tirando essa caricatura, entre o humor português e o humor brasileiro.
Hoje em dia, não sei se a gente identifica um traço característico do humor de determinada região. É possível que haja, mas que não seja assim tão evidente, até porque somos todos colonizados pelo humor americano e inglês.
Seu humor é para rir ou refletir?
O objetivo da minha profissão é fazer rir. Muitas vezes os jornalistas dizem: só? Fico ofendido com essa pergunta, porque eu acho que fazer rir não é uma coisa da qual a gente diga só. É uma ambição muito elevada fazer rir outro ser humano.
Nós temos esta característica que mais nenhum animal tem: sabemos que vamos morrer. E fazer rir alguém nessas circunstâncias, ou seja, fornecer essa espécie de anestesia precária e muito momentânea, que é uma gargalhada, parece uma ambição excelente. Mas as pessoas acham que não é suficiente. Para que serve rir? Para que serve o humor?
O verbo servir não funciona aqui. Uma vassoura serve para coisas, mas rir e fazer rir os outros rirem não é uma coisa que a gente diga que serve, seja para o que for. Embora seja importantíssimo.
A política é essencial para o seu trabalho. O Portugal de hoje, com a ascensão do partido de extrema-direita Chega, está facilitando o seu trabalho?
Tenho dificuldade em encontrar algum ponto positivo. Durante muito tempo, Portugal parecia imune à extrema-direita. E, de repente, num espaço de poucos anos, o partido de extrema-direita passou de um deputado para 60, em 230, que é o que o nosso parlamento tem.
Claro que há coisas que são engraçadas no crescimento do Chega, embora sejam sempre amargamente engraçadas. Um partido de extrema-direita, que tem um discurso muito duro relativo a estrangeiros, à imigração, tem um deputado brasileiro (o ex-atleta de MMA Marcus Santos). É amargamente engraçado isso.
Como é trabalhar com humor na era do politicamente correto?
Normalmente, o humorista está dizendo uma coisa que é bastante diferente do que ele parece estar a dizer, porque o discurso humorístico tem exagero, ironia. No livro falo de várias ocorrências desse tipo. Por exemplo, de uma capa da revista “New Yorker” em que o casal Obama era representado como dois fundamentalistas islâmicos, com uma metralhadora a tiracolo na Salão Oval, a bandeira americana na lareira a arder e uma fotografia do Bin Laden na parede.
Era um cartoon obviamente irônico em que o autor pretendia mostrar como era absurda a teoria da conspiração de que o Obama, que se chama Barack Hussein Obama, era um agente infiltrado. Houve pessoas que não perceberam a ironia e disseram que o cartoon era inadmissível. Houve também pessoas que perceberam a ironia porque elas eram pessoas inteligentes e conseguiam captar, mas que quem não fosse tão inteligente como elas podia achar que o cartoon não era irônico. Então, ele não deveria ser publicado.
Isso implica deixar nas mãos de pessoas que não entendem o discurso o que é que pode e não pode ser dito no espaço público. É uma coisa muito problemática.
“COISA QUE NÃO EDIFICA NEM DESTRÓI”
De Ricardo Araújo Pereira
Editora Tinta-da-China Brasil
240 páginas
R$ 74,90