“Você me abre seus braços/E a gente faz um país”, versos finais da canção “Fullgás” (1984), dos irmãos Marina Lima e Antonio Cicero (1945-2024), abrem um mundo de possibilidades. “O canto do sujeito que reconhece a necessidade do outro para existir no mundo”, destacou, em 2018, Arnaldo Niskier no discurso de recepção a Cicero em sua posse na Academia Brasileira de Letras.
“Uma outra forma de pensar a construção nacional, não mais sobre o Estado e as grandes figuras. É sobre o afeto”, afirma, hoje, o curador Tálisson Melo. Tais questões são levantadas em “Fullgás – Artes visuais e anos 1980 no Brasil”, que será aberta amanhã (27/8), no CCBB-BH. Nesta quarta-feira a instituição completa 12 anos.
Três curadores – Raphael Fonseca, o curador-chefe, Tállison Melo e Amanda Tavares, os adjuntos – pensaram os anos 1980 sob uma perspectiva ampla. São 240 artistas de todos os estados brasileiros (Rondônia e Tocantis foram elevados em 1981 e 1988, respectivamente, e Roraima somente em 1993), em cerca de 360 obras.
Obra, por sinal, pode ser tanto uma tela de Beatriz Milhazes quanto o figurino de Catuxa, uma das paquitas, as assistentes de palco da Xuxa. “Temos obras de pessoas que são muito internacionais até pessoas que tiveram uma carreira em sua própria cidade, como Novenil Barros, cuja trajetória inteira foi feita somente em Natal”, explica Fonseca.
Para dar conta da magnitude da produção, foram feitos alguns recortes. A produção vai de 1978 (o fim do AI-5) até 1993 (pós-impeachment de Collor). “Ou seja, pensar a geração de quem cresceu na redemocratização, nas Diretas Já, no processo da Constituinte, mas que com a corrupção do governo Collor se frustra com a democracia”, comenta Melo. Foram elencados artistas que começaram a trabalhar no período, não aqueles já estabelecidos na época.
Núcleos temáticos
A mostra é dividida em cinco núcleos. A música, novamente, é o norte: “Que país é este?” (Legião Urbana), “Beat acelerado” (Metrô), “Diversões eletrônicas” (Arrigo Barnabé), “Pássaros na garganta” (Tetê Espíndola) e “O tempo não para” (Cazuza).
“No núcleo ‘Que país é este?’ é um momento ainda de interrogação, do início da democratização. E ‘O tempo não para’ traz uma relação melancólica com a passagem do tempo, com a ideia de finitude, que está muito candente com a questão da AIDS, como também a da corrupção”, explica Melo.
Uma obra de Arthur Bispo do Rosário está no núcleo criado em torno da letra de Renato Russo. “É um artista que produzia antes, mas a primeira exposição é após seu falecimento (1989). Esse é um dos poucos trabalhos em que ele faz referência a um ano (1986)”, diz Fonseca. Outro nome célebre é Leonilson, que está no último núcleo. Diagnosticado com HIV no início dos anos 1990, ele incorporou o tema da doença em sua obra.
Por meio dos trabalhos, descobrimos o Brasil. Aquele que estava descobrindo o videogame (incluindo o primeiro deles criado no país), da retomada dos movimentos sociais, dos grandes eventos (Rock in Rio, Frank Sinatra no Maracanã, da vinda do Papa João Paulo II, Eco-92), tragédias e crimes (como o assassinato de Chico Mendes), da explosão do vídeo (pequenas TVs de tubo preenchem várias salas com clipes, filmes e vídeos), da música pop (capas de vinis se espalham em painéis, de Kaoma a Sepultura).
“É um momento de muita instabilidade, inclusive econômica, o que gera essa ideia de década perdida. Só que, ao olhar a exposição, a gente vê que, na verdade, essa foi a década que definiu o que a gente vai ser e o que está sendo ainda”, afirma Melo.
Ecologia como tema
A preocupação ecológica domina os trabalhos selecionados para o núcleo “Pássaros na garganta”, enquanto a explosão das novas tecnologias está no “Diversões eletrônicas”. Há, inclusive, uma parte dedicada a uma fabulação de futuro, com relação com extraterrestres. Já “Beat acelerado” traz um certo desbunde. “Não existe mais a preocupação em denunciar tortura, ditadura, e o mercado de arte começa a se estruturar em galerias, olhando para jovens artistas”, comenta Melo.
É neste período que há uma revalorização da pintura, como Jorge Guinle e a supracitada Milhazes. “Mas há aqueles que pensam criticamente a pintura”, afirma Fonseca, referindo-se a uma obra do artista cearense Eduardo Frota. “Naquele momento, as pinturas eram vendidas de acordo com o tamanho. Como ele não queria fazer pintura, pegou uma trena (de 85 metros) e escreveu ‘Pintura por metro’.”
“Fullgás’ apresenta trabalhos de 21 mineiros, como as artistas Rosângela Rennó, Valeska Soares e Solange Pessoa; Eder Santos, um dos pioneiros da videoarte no país; e o fotógrafo Eustáquio Neves. Traz também duas fotos de Afonso Pimenta e João Mendes, que começaram, jovens, a registrar o Aglomerado da Serra e somente a partir de 2015, com a criação do projeto Retratistas do Morro, tiveram seu trabalho devidamente reconhecido.
Show de Marina Lima
Os 12 anos do CCBB-BH serão celebrados comme il faut. Fazendo eco com “Fullgás”, a celebração terá o clima da década de 1980. Amanhã (27/8), haverá show, às 20h, de Marina Lima. Gratuito, com ingressos (até dois por pessoa) distribuídos a partir das 18h na bilheteria. É bom chegar cedo, pois a capacidade do teatro é de 262 lugares. O domingo (31/8) será em clima de matinê, a partir das 14h, com lambada, aeróbica e bolo de aniversário no fim da tarde.
“FULLGÁS – ARTES VISUAIS E ANOS 1980 NO BRASIL”
A exposição será aberta nesta quarta-feira (27/8), no Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade, 450, Funcionários, (31) 3431-9400. Visitação de quarta a segunda, das 10h às 22h, até 10 de novembro. Entrada franca. Ingressos devem ser retirados na bilheteria e no site.