'O racismo limita a verdadeira natureza do cinema', diz Charles Burnett
Pioneiro do cinema negro americano chega BH neste sábado (18/10) para participar de sessões de seus filmes e conversar com o público
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Com menos de US$ 10 mil o cineasta norte-americano Charles Burnett realizou seu primeiro longa-metragem. Nascido como filme de conclusão de curso na Universidade da Califórnia (Ucla), “O matador de ovelhas”, concluído em 1978, é não só a obra-prima dele como também filme referencial do cinema independente negro.
Burnett, de 81 anos, chega neste sábado (18/10) a Belo Horizonte como principal atração da 5ª Semana de Cinema Negro, que segue até sexta-feira (24/10). O Cine Humberto Mauro vai exibir três longas do cineasta, a começar pelo mais conhecido.
Com sessão às 17h de hoje, “O matador de ovelhas” faz um retrato da classe trabalhadora negra a partir da história de Stan (Henry G. Sanders), funcionário de um matadouro, e sua família, no bairro de Watts, em Los Angeles. O evento também exibe “O casamento de meu irmão” (1983) e “A aniquilação de Fish” (1999).
A importância de Burnett só foi reconhecida mais recentemente. Hollywood, que ele tanto combateu como integrante do movimento L.A. Rebellion, fez mea culpa e lhe concedeu, em 2017, um Oscar honorário. Na entrevista a seguir, ele fala da carreira, de discriminação e de sua motivação. “Quando meus filmes são exibidos, as pessoas vêm até mim e dizem: ‘Seu filme mudou minha vida’. Essa é a razão pela qual entrei no cinema”, revela.
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O senhor participou da L.A. Rebellion, movimento de jovens realizadores negros da Universidade da Califórnia que fizeram, entre as décadas de 1970 e 1980, um cinema combativo. Poderia me falar das motivações?
Todas as pessoas do Departamento de Cinema (da Ucla) estavam chateadas com a forma como Hollywood nos tratava desde “O nascimento de uma nação” (1915, de D.W. Griffith), com filmes que faziam uso de blackface. As produções nos destruíam. Não podíamos ser negros sem sermos vistos como palhaços ou coisas assim. Mesmo depois que pararam de usar maquiagem preta para colorir pessoas brancas, era fato que não podíamos ser seres humanos de verdade. Houve a rebelião contra os filmes que Hollywood produzia. Todas as vezes em que eram exibidos na Ucla, éramos muito críticos, a ponto de produtores de Hollywood começarem a dizer que se nós continuássemos, os filmes não seriam mais exibidos na universidade. Estávamos fartos de não poder contar nossas próprias histórias, de não poder apresentar personagens negros que eram seres humanos afetuosos, que tinham outras qualidades.
Qual é o legado de seu filme “O matador de ovelhas”?
Quando estávamos na Ucla, nos perguntavam: “O que vocês querem?”. Aprendi que ninguém tinha a solução, que ninguém falava por nós. Então, eu disse: “Me deixe fazer um filme que mostre como é a minha comunidade.” Entendendo sobre a vida na comunidade, vai dar para entender que a história deste país precisa ser corrigida. Racismo, pobreza, educação, emprego são várias coisas com as quais temos que lidar simultaneamente. Cresci em um ambiente onde negros eram seres humanos decentes. Queria que Hollywood fosse honesta e verdadeira e não estivesse tão satisfeita consigo mesma, querendo manter os negros oprimidos e desumanos.
“A aniquilação de Fish” é um filme de que muito se fala, mas que poucos assistiram. Por que ele foi deixado de lado por tanto tempo?
Esse filme teve (em seu tempo) poucas exibições. Uma quando estreou no Festival de Toronto. Foi bem recebido pelo público, teve boas críticas. A segunda foi no dia 11 de setembro (de 2001, quando houve o ataque ao World Trade Center e ao Pentágono). Fizemos naquela mesma noite duas sessões em San Diego. Quando houve a tragédia, ficamos sem saber se haveria a sessão. Então resolvemos ir, meu produtor e eu. E aconteceu. Exibimos o filme em dois cinemas cheios. Depois da sessão, intrigados, dissemos ao público: “Ficamos surpresos que vocês tenham aparecido, porque não sabíamos como se sentiriam em assistir a um filme em meio a esta tragédia da história americana.” A resposta de ambos os cinemas foi a mesma. As pessoas disseram que não queriam ficar sozinhas naquela noite, queriam estar juntas. Depois, não tivemos mais a chance de exibi-lo. O distribuidor da época não quis, um dos produtores teve problemas financeiros e o filme foi colocado de lado. Após um longo período, finalmente conseguiram os direitos de volta. Estamos muito satisfeitos.
O senhor é reconhecido como cineasta inovador, mas a indústria cinematográfica muitas vezes não o acolheu bem. O reconhecimento recente, incluindo o Oscar honorário, mudou esse cenário?
Eu realmente não explorei aquele momento de ganhar o Oscar. Acho que preciso de um agente para me ajudar a fazer as coisas. Você sabe, é tudo sobre publicidade e se tornar conhecido, e não sou uma pessoa de negócios, sempre fui visto como independente, não sou muito comercial. O que respeitam é ganhar muito dinheiro e fazer valer a pena a bilheteria. Não se importam muito com prêmios.
Seu nome é referência para vários diretores, de ontem e de hoje. Como é ser uma inspiração para realizadores dos Estados Unidos e também de vários outros lugares?
É ótimo, uma confirmação de que você pode fazer um filme, que ele pode se sustentar. Você pensa que, sendo cineasta negro, não pode competir, não está no mesmo padrão e que ninguém quer ver esses filmes. Mas descobre que não. Todo o mundo quer ver bons filmes, histórias que mostram as pessoas como seres humanos e que não custam milhões de dólares. O dinheiro poderia ser mais eficaz se fosse usado para mudar a sociedade de muitas maneiras, ajudando pessoas pobres. Um filme não pode ser apenas uma coisa que só faz as pessoas rirem. Ele tem que trazer algum tipo de benefício para a sociedade. Quando meus filmes são exibidos, as pessoas vêm até mim e dizem: “Seu filme mudou minha vida”. Essa é a razão pela qual entrei no cinema e é a razão pela qual estou fazendo filmes do meu jeito. Vejo o que os filmes podem fazer.
O que o senhor conhece da produção cinematográfica brasileira?
Não tenho visto muitos filmes ultimamente, mas estive no Festival de Cinema de San Sebastián (na Espanha, em 1990) como membro do júri. Nelson Pereira dos Santos também fez parte desse júri. Foi um grande prazer e honra estar na mesma sala com ele. Entre tantos cineastas, ele era um dos meus. O cinema do Terceiro Mundo foi responsável por nos mostrar o que deveríamos fazer. Naquela época, havia filmes da nova onda de cineastas sendo exibidos localmente, as produções estrangeiras nos motivavam e nos ajudavam a formar nossa própria estética. Eles abriram a porta e disseram: “Isso é o que estamos fazendo, é assim que estamos olhando para isso”. Mostraram também que o racismo limita a verdadeira natureza do cinema.
Que conselho o senhor daria a um jovem realizador?
Eu diria que ele deve desenvolver um ponto de vista específico e fazer o máximo de filmes que puder, diferentes tipos de filmes, ler muito e não deixar ninguém dizer que você não consegue fazer. Faça com que seu filme seja exibido internacionalmente, onde você puder, você terá uma perspectiva de como as pessoas em diferentes países veem seu filme. Isso lhe dá confiança em si mesmo. Em todos os lugares que fui vi pessoas dizendo: “Eu gostaria que víssemos mais filmes como este. Hollywood não pode te dizer que você não pode fazer filmes.”
5ª SEMANA DE CINEMA NEGRO
Exibição de filmes de Charles Burnett no Cine Humberto Mauro (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro).
• Neste sábado (18/10), às 17h, será apresentado “O matador de ovelhas” (1978). Após a sessão, às 19h, haverá uma conversa com o cineasta.
• Domingo (19/10), às 17h30, Burnett comenta “Também somos irmãos” (1949), de José Carlos Burle e estrelado por Grande Otelo. Na sequência, às 20h, será exibido “O casamento de meu irmão” (1983).
• Segunda-feira (20/10), exibição de “A aniquilação de Fish” (1999).
>> Entrada franca, com distribuição de ingressos 50% online, pelo site da Eventim (a partir das 12h, para todas as sessões do dia), e 50% presencial, na bilheteria (30 minutos antes de cada sessão).