Paranaense de Curitiba, morei em Fortaleza. Minha leitura crítica do mundo foi tecida a partir do Ceará e do diálogo da museologia social com a história da arte. Vivo em Belo Horizonte há oito anos, posso dizer que comecei a conhecê-la a partir das esculturas públicas de Jorge dos Anjos. Este artista teceu circuito poético-histórico que produz um percurso de sentidos afrorreferenciados pelas ruas de Beagá.

Nesta quinta-feira (16/10), Jorge recebe o Diploma de Doutorado por Notório Saber concedido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no campus da Pampulha. Dizer que sua obra é afrorreferenciada significa reconhecer que ela se ancora em uma perspectiva que toma o continente africano, suas cosmologias e referências como centro de pensamento e criação.

 

As artes, como as conhecemos hoje, foram historicamente marcadas por visões eurocentradas – por uma história referenciada em autores e pesquisadores europeus e norte-americanos. Compreendemos, portanto, que Jorge dos Anjos é um artista que se volta para a presença das referências africanas no Brasil, construindo uma obra que expressa as dimensões do pertencimento, da grandeza do conhecimento dos orixás e suas histórias, dos caminhos das diásporas e das dores provocadas pela violência do racismo.

Exú

A primeira escultura com a qual tive contato foi aquela próxima ao Bar Brasil 41, no Bairro Santa Efigênia, caminho que nos ajuda a compreender o papel fundamental do Festival das Artes Negras de Belo Horizonte e sua relação com a construção da democracia brasileira após o período da ditadura empresarial, civil e militar. Afinal, é impossível imaginarmos uma democracia que não seja antirracista.

De um jogo de capoeira, Jorge dos Anjos desenhou homenagem a Zumbi dos Palmares, celebrando os 300 anos de sua memória. Cravou Exu na terra, atravessando o asfalto, firmando a importância das lutas pela liberdade, abrindo caminhos e seguindo para o alto em expansiva energia do axé.

Monumento para Zumbi dos Palmares, no Bairro Santa Efigênia: Exu emerge da terra, abrindo caminhos para a democracia brasileira

Marcos Michelin/EM/D.A Press
 

Suas esculturas, espalhadas pelas trilhas da cidade, são marcadores de africanidade. Elas nos fazem olhar a história a partir de outra cosmo percepção, orientando nosso repertório sobre o lugar. Deveríamos, inclusive, contar com circuitos turísticos com propostas educativas e culturais dedicadas especialmente às esculturas de Jorge dos Anjos.

Iemanjá 

Mais tarde, conheci o “Portal da memória”, obra encomendada para proteger Iemanjá. Jorge lembrou-se da Árvore do Esquecimento, na África, em torno da qual os africanos eram obrigados a dar sete voltas para esquecer sua terra.

O “Portal da memória”, ao contrário, propõe a retomada das lembranças da África, todo ele realizado com reverência aos orixás. É também o espaço onde ocorre a Festa de Iemanjá, patrimônio imaterial de Beagá.

Seguimos nosso percurso até o Centro de Referência da Juventude, onde está “Aya: Árvore da Vida pela vida”, obra que o artista elaborou junto a jovens que frequentam o espaço situado na Praça da Estação. É um memorial pela vida da juventude negra, onde as palavras reverberam o esperançar, ao mesmo tempo em que denunciam a violência provocada pelos efeitos do racismo.

Portal para Iemanjá criado por Jorge dos Anjos dialoga com as águas da Pampulha

Fred Tonucci/Portal da Prefeitura de Belo Horizonte

Segundo Sandra Haydée Petit, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), todas as cidades do Brasil deveriam contar com uma Árvore da Vida.

Oxum 

Recentemente, o artista realizou megaobra para o festival Morro Arte Mural (Mamu), no Aglomerado da Serra. Esse mural trouxe as relações entre música e dança, elementos presentes em todo seu trabalho, agora pensando nas nascentes de água da cidade, lembrando-nos da presença de Oxum, das águas doces. Há muita cor, movimento, balanço e pulsação, tais quais as batidas do coração – a força das águas do Aglomerado da Serra.

O novo doutor pela UFMG foi aluno de nomes de referência, como o artista plástico Amilcar de Castro. Jorge, ouro-pretano de 68 anos, fez de seu fundamento uma justiça epistêmica e visual, alinhando a arte construtiva ao desafio de curar as feridas do racismo, ao mesmo tempo em que incorporou as referências das culturas negras e da força vital africana cobrindo a cidade, transformando-a e marcando nossas vidas com sua presença criativa.

Entendo que meu encontro com Belo Horizonte, a partir da obra e do pensamento de Jorge dos Anjos, foi profundamente transformador. Apresento-o a amigos, estudantes e visitantes, porque não há como conhecer a cidade sem passar por esse Portal da Memória que é o próprio artista.

DOUTORADO POR NOTÓRIO SABER

O artista visual Jorge dos Anjos, o bailarino e coreógrafo Rui Moreira, o mestre de capoeira João Angoleiro e o escritor indígena Kanatyo Pataxó vão receber o Diploma de Doutorado por Notório Saber pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), nesta quinta-feira (16/10), às 11h15, no Auditório A104 do CAD-2, do Campus Pampulha (Avenida Antônio Carlos, 6.627, Pampulha).

* Carolina Ruoso é professora de teoria e história da arte na Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais

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