A diversidade culinária e cultural brasileira é tamanha que, em um mesmo estado, a exemplo de Minas Gerais, encontramos sabores e costumes completamente diferentes, a depender da região. Em municípios do interior, onde a vida pacata se tornou, de certa forma, atração turística ou uma “fuga da realidade”, os diferentes gostos passaram a ser, também, valorizados e tratados como gastronomia.
Por isso, nesta edição, apresentamos talentos da cozinha que trabalham no interior de Minas e com o interior de Minas, sempre respeitando e valorizando os ingredientes e os preparos locais. Todos os chefs que você vai conhecer a seguir estão confirmados na próxima edição do Festival Fartura Belo Horizonte, que será neste fim de semana no Mirante Belvedere, Região Centro-Sul da cidade, com o tema “Do interior para a capital”.
Leia Mais
Adriana Fernandes, do restaurante Santa Matula, no distrito de São Gonçalo do Rio das Pedras, município no Serro, Região Central de Minas Gerais, é uma das chefs que carrega nas veias – e na comida – a sua origem.
Nascido em 2017, em outra cidade do interior mineiro, Ouro Preto, o Santa Matula sempre serviu uma comida “de roça”. “Na cidade éramos o único restaurante que servia frango caipira ao molho pardo, angu de milho verde…”, destaca Adriana.
Naquela época, o restaurante tinha seu nome complementado pelos termos “Casa Bistrô”. “Pesquisei a origem dos bistrôs e descobri que havia uma versão que dizia que eram restaurantes criados por mulheres quando seus maridos saíam de casa para lutar na Segunda Guerra Mundial. Achei isso significativo, já que o Santa Matula era comandado por mulheres, no caso, eu e minha mãe”.
Três gerações
Mãe e filha, Ana Maria e Adriana Fernandes homenageiam a matriarca da família, que não deixava ninguém sair de casa sem matula
A mãe de Adriana, Ana Maria Fernandes, ainda é peça essencial no funcionamento da casa. “Falo que minha mãe é infinita. Não tem um dia em que ela não me revela algo novo na cozinha”, conta a filha. Além das duas, o restaurante conta com o suporte de Luna Fernandes, a filha de Adriana que, já com 18 anos, toma decisões importantes sobre pratos do Santa Matula. “Ela sempre prova e opina no que servimos. Tem um paladar muito apurado.”
Se hoje o restaurante que reúne gerações existe, muito se deve à avó de Adriana, dona Zildete Campos, que a criou em boa parte da vida em Rio Vermelho, município pertencente à microrregião de Conceição do Mato Dentro. “Fui criada na roça com a minha avó. Me lembro que tudo que a gente cozinhava vinha de lá. Só íamos à cidade para comprar macarrão e sal”, explica a chef.
O Santa Matula fechou em fevereiro de 2024 em Ouro Preto e, em julho do mesmo ano, reabriu em São Gonçalo do Rio das Pedras, de onde é a família paterna de Adriana e onde ela viveu outra parte da vida.
Hoje, em vez de “Casa Bistrô”, o restaurante leva consigo o termo “Quintal”, já que trabalha ainda mais com ingredientes locais e que vêm, de fato, do quintal. O “Santa Matula” sempre vai continuar no nome, afinal, é uma homenagem à Zildete, que não deixava ninguém sair de casa sem uma matula.
Feijão e carne
No feijão ferrado, os grãos são misturados a farinha de mandioca e banhados por gordura de porco quente
Alguns pratos se destacam no cardápio, a exemplo do feijão ferrado (R$ 25), servido com farinha de mandioca, tempero de sal com alho e banhado por gordura de porco quente. Acompanha torresmo crocante e ovo frito. A receita foi base da alimentação dos tropeiros por dar sustância e ser facilmente preparada, direto no prato.
Um prato que tem valor simbólico especial para Adriana é a carne de porco de lata com farofa de couve e abacaxi grelhado (R$ 54). “Na minha infância, quando um porco era morto, precisávamos conservar a carne, já que ela precisava de durar muitos dias. Por isso, ou era realizado um processo de cura ou, o que era geralmente feito, a conservação dentro da banha do porco”, explica a chef, que leva esse elemento para o restaurante.
Casa de vó
Outro restaurante do Serro que busca valorizar produtos mineiros e, sobretudo, da região é o Quintal de Vó. Criado em 2019, o restaurante já precisou fechar as portas duas vezes (uma delas em decorrência da pandemia), até atingir a estabilidade necessária.
A chef da casa, Simone Cardoso, sempre esteve perto da cozinha, já que nasceu em uma família numerosa (ela é a caçula de 12 irmãos) e cada um ajudava de alguma forma, inclusive, no preparo de alimentos.
Por falar em infância e família, essas vivências traduziram bem para a chef o que é a gastronomia do Serro. “A gente tinha abundância de vegetais sempre, mas a carne precisava render mais. Por isso, até hoje, no quintal, trabalho com carnes servidas com outros alimentos, a exemplo do próprio mamão verde com costelinha (R$ 24)”. Para acompanhar, angu, arroz, feijão e couve.
Em todas as receitas, Simone imprime um traço bem típico da sua região por meio do que chama de “temperos de horta”, a exemplo do quitoco e da favaquinha (ambos são, inclusive, são plantas medicinais). “Faço uma espécie de molho pesto com essas ervas, alho, cebola, orégano fresco, manjericão, hortelã, pimenta, sal e óleo (para conservar)”, explica.
Um dos pratos preferidos dela, chamado “Trem do quintal” (R$ 24), é composto por costelinha pinga e frita, farofa de torresmo, picles de abacaxi e queijo do Serro.
Nem tudo são flores
A chef se formou em gestão ambiental em BH e trabalhou por mais de 10 anos no restaurante da irmã em Macacos (MG) antes de assumir um cargo na Secretaria de Meio Ambiente do Serro. A sua história com o Quintal de Vó só começou cinco anos depois do seu retorno ao interior.
Apesar de valorizar a cultura e identidade culinária local, Simone também é honesta quanto às dificuldades em retornar para sua cidade natal. “Depois de 20 anos fora, voltar para o Serro foi um processo complicado. A cidade é muito pacata e conservadora, às vezes não consigo ‘florescer’ ideias, e isso é um pouco frustrante”, explica.
Origem no gelato
Através de pesquisas, Marina Leite e Guilherme Azevedo descobrem receitas tradicionais da Lapinha da Serra para levá-las ao menu do Casulo de forma autoral
Os sorvetes italianos foram muito importantes para a história de Marina Leite na gastronomia. Logo após ter sua primeira filha, com apenas 21 anos, a chef belo-horizontina foi viver na Lapinha da Serra, distrito de Santana do Riacho, na Região Central, após um período em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Lá ela abriu, em 2015, uma gelateria e cafeteria chamada Casulo, dentro da própria casa.
No segundo ano, as vendas caíram significativamente durante o inverno e isso fez com que Marina investisse também em pratos salgados. Foi aí que a gelateria passou a ser também uma risoteria, restaurante especializado em risotos. As preocupações nunca mudaram. “Sempre prezei pelo natural. Por isso, inclusive, o cardápio era muito vegetariano, apesar de ter carnes, que são importantes para que o negócio seja rentável.”
Até então, Marina recebia os clientes em sua própria casa. “Minhas filhas recebiam as pessoas muitas vezes”, recorda. O Casulo ganha um espaço para chamar de seu no fim de 2018. “Construí em um terreno do meu pai e contei com a ajuda do meu marido (Guilherme Azevedo), que é formado em panificação na Alemanha e também morava na Lapinha”.
Fim das turbulências
Apesar do fechamento no início da pandemia de Covid-19, o fim de 2020 marcou um momento positivo no Casulo. “Toda a cidade estava fechada, muitas pessoas de outras cidades foram para lá trabalhar de home office. Nesse período, o Casulo bombou. Abríamos de segunda a segunda, nem estávamos preparados para tanto movimento”, explica.
Com a normalização da vida e o fim do distanciamento social, o restaurante passou a sofrer com a queda do movimento e chegou a fechar as portas. Em 2022, reabriu.
Depois de anos turbulentos, o Casulo vive hoje uma fase tranquila, serena e coerente. Todos os funcionários são locais. “Essa cidade é muito pacata. É importante ser daqui para trabalhar e morar.”
Diálogo com a história
O trabalho de resgate de tradições se tornou uma realidade. Por trás do cardápio do Casulo, existe uma pesquisa sobre receitas e ingredientes da região. “A Lapinha não tem um lado muito romântico da gastronomia, sempre esteve ligado ao instinto e à sobrevivência”. Por meio de conversas com os mais velhos que por lá vivem, Marina e sua equipe descobrem receitas tradicionais e afetivas e levam isso para o menu de forma autoral, catalogando os ingredientes típicos, inclusive.
Servido a cada dois meses, o menu degustação (R$ 285 + R$ 220 com harmonização de vinhos mineiros) conta com oito passos que dialogam com a história da localidade.
A sequência começa com uma espécie de empadinha que tem massa feita de banana, banha de porco e água, sem uso de farinha branca. Os recheios são variados: tartare de carne serenada com ora-pro-nóbis, gema caipira curada e pimenta cumari; requeijão de raspa, presunto caipira maturado (feito na casa), jabuticaba e pequi; coalhada seca, limão capeta, gabiroba, murici e lambari seco e defumado (processos naturalmente advindos da conservação perto do fogão à lenha); e pé e fígado de galinha caipira com figo e tamarindo.
“Esse primeiro tempo do menu leva insumos que existiam na Lapinha há 100 anos, produtos que fazem parte da identidade da cidade.” A técnica de cura típica do presunto parma é aplicada no pernil de porco preto da região.
“Vale ressaltar que araticum, pequi, murici, gabiroba e jatobá são frutos típicos do cerrado trabalhados ao longo do nosso menu degustação”, completa a chef. O quinto passo da sequência, por exemplo, é um nhoque de jatobá com almôndegas de cordeiro, enquanto o último preparo, servido em uma taça, leva cachaça, araticum e sorbet de jabuticaba.
De cenário a negócio
Quem vai a Montes Claros, na Região Norte, pode visitar a Venda do Fred, espaço inspirado em vendas antigas da cidade, que comercializa alimentos típicos do Mercado Municipal, como requeijão moreno, castanha de baru, óleo de pequi e a própria castanha de pequi, além de pratos tradicionais de lá.
Os responsáveis são Fred Rocha e Juliana Dourado, que se conheceram na pandemia e logo identificaram um passado comum de suas famílias em vendinhas.
“Criei um programa de TV [Empreender, transmitido pela InterTV, afiliada da Rede Globo] que tinha uma venda como cenário, onde entrevistava empreendedores. Nesse momento, percebi que não havia muitos lugares para levar os entrevistados depois, que contassem a história da cidade, sendo que Montes Claros é um município energizado na gastronomia, na música e na cultura em geral”, conta Fred.
Assim, há três anos, ele e Juliana resolveram levar o cenário para a vida real e criaram a Venda do Fred, espaço com o propósito de receber e reunir pessoas e contar um pouco da história do Norte de Minas. No cardápio da venda, é possível encontrar pratos como a carne serenada com tostones de mandioca (pedaços dourados por fora e macios por dentro) e picles de maxixe (R$ 79), que evidencia a região.
*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino
Anote a receita: Bombom de costelão de boi (Quintal de Vó)
Ingredientes:
- 2,5kg de costelão de boi sem gordura;
- 2kg de batata asterix;
- 600g de cenoura;
- 300g de alho triturado;
- 6 cebola grandes;
- 50g de chimichurri;
- Pimenta-preta moída na hora a gosto;
- Pimenta caseira em conserva a gosto;
- Sal a gosto;
- Folhas de louro a gosto;
- Cheiro-verde a gosto;
- Farinha de trigo e farinha panko (quanto baste para empanar);
- 100g de banha de porco ou óleo de soja.
Modo de fazer:
- Pique grosseiramente 2 a 3 cebolas e refogue na banha de porco até começar a dourar.
- Coloque a costela de boi e mexa até dourar a carne.
- Adicione alho, sal e folhas de louro.
- Cubra com água e leve para cozinhar na pressão até ficar bem macia e soltar dos ossos.
- Enquanto isso, descasque, cozinhe e amasse bem as batatas e a cenoura.
- Quando a carne estiver bem cozida, retire do caldo (reserve para usar como caldo de carne, em sopas e outras receitas) e desfie toda a carne.
- Misture bem com a batata e a cenoura.
- Em outra panela, refogue com um fio de óleo o que restou do alho e da cebola triturada com chimichurri e, depois, acrescente a massa de batata e carne. Misture tudo muito bem com as mãos.
- Ajuste o sal e coloque pimenta-preta moída na hora e um fio de pimenta caseira em conserva. Adicione também o cheiro-verde. Faça bolinhos com as mãos.
- Para empanar, faça um “mingau” grossinho com farinha de trigo e água. Passe os bolinhos neste mingau e depois na farinha panko.
- Frite em óleo não muito quente até dourar os bombons.
Serviço
Santa Matula (@santamatula.sgrp)
Travessa do Rosário, 117, São Gonçalo do Rio das Pedras, Serro
(31) 99594-6091
De terça a sexta, das 16h às 22h; sábado, das 11h às 23h; domingo, das 11h às 17h
Quintal de Vó (@quintaldevo.serro)
Praça Dom Epaminondas, 120, Centro, Serro
(38) 98809-2215
Segunda e terça, das 11h às 14h; de quarta a sexta, das 11h às 14h e das 17h30 às 23h
Restaurante Casulo (@casulolapinhadaserra)
Rua Olhos D`água, 01, Lapinha da Serra, Santana do Riacho
(31) 98408-0368
Segunda, das 18h30 às 22h; de terça a quinta, das 12h às 21h
Venda do Fred (@vendadofred)
Rua Deputado Antônio Pimenta, 489, Jardim São Luiz, Montes Claros
(38) 99976-7071
De terça a sexta, das 16h à 00h; sábado, das 12h à 00h