Bíblia nas escolas faz Minas discutir religião
Leis que autorizam a utilização do livro sagrado católico por professores em salas de aula de municípios mineiros dividem opiniões e provocam questionamentos
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Siga noO ano de 2025 vem apresentando mudanças significativas nas salas de aula em Minas Gerais. Em fevereiro, os estudantes foram recebidos pelas instituições de ensino com a proibição do uso de telefone celular, em uma medida de âmbito nacional. Agora, a novidade nas escolas públicas e particulares do estado é o acréscimo da Bíblia no material dos alunos.
Ao menos quatro municípios mineiros estão envolvidos diretamente nas discussões sobre conteúdo religioso. No Triângulo, a Prefeitura de Frutal sancionou, em 8 de maio, a Lei nº 6.871, de autoria do vereador Alexandre José Braz (Solidariedade), que dispõe sobre a leitura bíblica na rede municipal.
Na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), o tema ganhou mais espaço em duas cidades – isso até o momento. Em 15 de maio, a Prefeitura de Ribeirão das Neves sancionou o PL 023-C/2025, do vereador Pastor Dário (PP), permitindo a leitura de textos bíblicos. Já em Nova Lima, o PL 255/2025, do vereador Wesley de Jesus (Republicanos), foi sancionado pelo Executivo Municipal no último dia 4.
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Belo Horizonte teve a lei promulgada pelo presidente da Câmara, Juliano Lopes (Podemos), em 29 de maio. O PL que implementa a Bíblia em escolas públicas e particulares da capital para fins paradidáticos foi aprovado pelos vereadores e entrou em vigor após a sanção tácita do prefeito, já que ele não se manifestou dentro do prazo.
Assinado pela vereadora Flávia Borja (DC), o PL 825/2024 recebeu 28 votos a favor, oito contrários e duas abstenções. No dia da aprovação do PL, Borja celebrou, afirmando ser uma vitória contra o “obscurantismo” nas escolas de Belo Horizonte.
Filiada ao partido Democracia Cristã, a justificativa publicada pela legisladora diz que a Bíblia Sagrada é “mais do que um livro para cristãos”. Ela ainda explica que será muito “proveitoso” que as crianças tenham acesso aos textos.
A ideia de incluir a Bíblia em instituições de ensino não é novidade. Em abril de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu inconstitucional a lei estadual do Amazonas que obrigava escolas e bibliotecas a manterem, ao menos, um exemplar da Bíblia nos locais.
Relação com o sagrado
Em entrevista ao Estado de Minas, a cientista da religião, filósofa, pedagoga e professora doutora Andréa Silveira de Souza ressalta a importância da diferenciação entre religião e religiosidade. “A escola está sem religião, porque a feição social da escola não é a formação da religiosidade. Essa formação da religiosidade, do ponto de vista das instituições sociais, é da esfera privada. Essa função é para ser exercida pela família e pelas igrejas. Não é para ser desenvolvida pela escola, muito menos pela escola pública”, destaca.
Com a aprovação dos projetos, surge um questionamento: por que não adotar textos sagrados de múltiplas religiões, como o Alcorão, a Torá, mitos indígenas ou de religiões de matriz africanas? Andréa explica que, neste caso, uma vez que o país possui grandes tradições afro-brasileiras e indígenas, muitas vezes transmitido pela oralidade, as escolas poderiam convidar representantes para falar sobre suas crenças.
“Não são tradições escritas. Isso é transmitido pela oralidade. Então, quem é o livro dessas tradições? Os próprios líderes religiosos. É um pajé, um babalorixá. Eles são os livros vivos. A gente vai poder levar esses livros para a sala de aula?”, questiona a especialista. “O trabalho sobre religião na escola, nos componentes da igreja, importa no sentido, na função da religião para as pessoas, para as sociedades, né? Com a relação que as pessoas têm com o sagrado, como é que isso interfere na vida delas, principalmente, na vida pública. E isso pode, no caso, ser informado por outras obras que não sejam a Bíblia”, acrescenta.
Uso da literatura
Hoje, o ensino religioso é uma disciplina de matrícula facultativa, regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e pela Constituição Federal. A professora explica que, nesse caso, é trabalhada a religião como um conceito, “como uma chave de compreensão do mundo e do ser humano”. Por outro lado, a Bíblia, enquanto escritura sagrada, vai transmitir uma doutrina. “O objetivo dessa transmissão doutrinária é a doutrinação, né? É, ou a catequização ou a conversão a uma tradição religiosa. No caso, tradições cristãs ", aponta.
A especialista em pedagogia sugere outras formas de abordar a religião nas escolas: os clássicos da literatura. Ela não exclui o material didático, utilizado em aulas de história e geografia, por exemplo, mas não deixa de lado o poder que a área da literatura e artes tem para abordar este tema.
“Se você pegar um professor da área de artes, ele tem perfeitas condições de trabalhar ‘O Auto da Compadecida’, do Ariano Suassuna, que é uma peça teatral.” Ela cita ainda autores como Graciliano Ramos, Manuel Bandeira e Bernardo Guimarães como possíveis referências para um material paradidático.
Ela também questiona que tais projetos de lei não sejam elaborados, em sua maioria, por profissionais da educação. “Isso sempre parte de legisladores cristãos ou alinhados a esse grupo. Essas pessoas têm como forma de ação a política, uma agenda de cunho moral e religioso. A finalidade delas não é pedagógica.”
Pluralismo em questão
Entre colégios católicos de Belo Horizonte que oferecem a disciplina de ensino religioso, o Santa Doroteia, localizado na Região Centro-Sul, é um deles. O responsável pela coordenação do núcleo de orientação religiosa e de filosofia do colégio, Jean Teixeira, afirma que há uma diferença do que é tratado em sala de aula e outras atividades que são ofertadas de maneira opcional e extraclasse.
“O colégio tem um calendário com a vivência de todo o tempo litúrgico da igreja católica. Fora da sala de aula há atividades católicas programadas, mas nenhum aluno ou família é obrigado a participar, como missas, grupo de jovens e encontro de casais católicos para os pais.”
Ele explica que, em sala de aula, a instituição trabalha a partir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que prevê a disciplina de ensino religioso para tratar a questão como fenômeno. “Esse fenômeno não é restrito à religião cristã, muito menos católica”, destaca.
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A escola oferece a disciplina de ensino religioso desde a educação infantil, que tem a matéria nomeada “campos de experiência”. O coordenador conta que é uma aula que proporciona aos alunos uma experiência de “uma força maior de Deus”, para entender sua relação com a natureza, com os outros e com o mundo.
Já para as crianças mais velhas e os adolescentes, o colégio insere no cronograma escolar o ensino religioso adequado à faixa etária de cada turma, segundo Teixeira. A disciplina segue os mesmos padrões, com trabalhos e provas.
Ao EM, Teixeira explica que enxerga a lei como algo perigoso, uma vez que há uma diversidade de religiões no Brasil. “A sociedade brasileira é majoritariamente católica? Sim. Ela é só católica? Não. Ela é só evangélica? Não. E as religiões de matriz africana? Nós temos no Brasil hoje mais de 300 mil budistas. Eu não sei se esse pessoal está aberto a conviver com esse pluralismo.”
Ele também ressalta que, mesmo sendo um colégio católico, a instituição recebe alunos de outras religiões. “Eu tenho em sala de aula crianças e adolescentes que não professam a fé católica. Eu tenho famílias que não professam fé nenhuma. Tenho que acolhê-los, assegurar o direito desses jovens de terem acesso a proposta educacional que o colégio oferece a sociedade.”
Laicidade do Estado
A constitucionalidade da lei foi questionada pela vereadora Juhlia Santos (Psol), que afirma acreditar que o texto fere o princípio de laicidade do Estado, protegido pela Constituição Federal, que garante a separação entre o poder político e as religiões. “Nós não somos contra a Bíblia. Aqui não é o público de uma igreja, que as pregações sejam feitas nas igrejas. Aqui é um espaço onde a gente vai discutir, propor, fiscalizar leis. É um projeto de lei que não valoriza as pluralidades das religiosidades, que tem como único guia um instrumento único no país que é laico”, publicou em suas redes sociais.
A deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), presidente da Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), formalizou três ofícios denunciando a aprovação da lei ao Ministério Público Federal (MPF), ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e à Prefeitura de BH. Ao EM, a deputada estadual afirma que a lei é um “mecanismo de lacração”, em que se apropriam da religião, desviando o foco dos principais problemas que devem ser enfrentados pela Câmara Municipal. Nos três documentos, ela destaca que a lei privilegia uma única doutrina no currículo escolar, infringindo a liberdade religiosa e de ensino.
“As próprias pessoas que propõem esses projetos de lei sabem que há uma grande chance de serem declarados inconstitucionais. Essa polêmica é exatamente para dar visibilidade”, afirma o doutor em direito constitucional, Alexandre Bahia, professor da Faculdade de Direito da UFMG. Ele cita o artigo 19º da Constituição Federal, que fixa a separação administrativa entre Estado e Igreja.
O especialista ainda destaca a existência da disciplina de ensino religioso nas escolas. “A Constituição já fala sobre haver ensino religioso nas escolas, né? Como o ensino que é de oferta obrigatória e de matrícula facultativa. E isso está na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), é uma competência da União de fazer isso e não o estado, nem o município poderiam fazer isso. Nesse sentido, o STF (Supremo Tribunal Federal) já tem declarado inconstitucionais outras leis similares a essa.”
Bahia lamenta que outras questões da educação, vistas por ele como mais importantes, sejam deixadas de lado para debater esse tema. “Não é possível que a gente não tenha outras prioridades na educação, além de ficar criando mais um custo, né? Uma coisa que eu tenho dito muito, inclusive, é o quanto esse tipo de discussão faz com que o modelo legislativo perca tempo e dinheiro público que poderiam estar sendo direcionados para debates sobre problemas reais.”
Mesmo com a lei promulgada, é possível que ações de controle de constitucionalidade sejam feitas no Tribunal de Justiça de Minas ou até mesmo no STF.
* Estagiária sob supervisão da editora Crislaine Neves