Em busca de soluções para o sistema prisional em Minas
Estado tem até agosto para apresentar plano de enfrentamento à crise carcerária, marcada principalmente pela superlotação das unidades prisionais
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Siga noCom quase 70% das unidades prisionais superlotadas, Minas Gerais tem apenas um mês para apresentar um plano estadual de enfrentamento à crise no sistema carcerário. O estado ocupa o segundo lugar no ranking nacional de população carcerária e, agora, precisa colocar no papel soluções concretas para um problema histórico, crônico e profundamente desigual. A obrigação faz parte do Programa Pena Justa, lançado em 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Em Minas, o processo também conta com a contribuição da sociedade por meio de uma consulta pública, aberta até a próxima sexta-feira (18/7).
A elaboração do plano estadual está sob responsabilidade do Comitê de Políticas Penais, que reúne representantes do Tribunal de Justiça, Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), Ministério Público, Defensoria Pública, OAB e da Assembleia Legislativa. A primeira reunião do grupo ocorreu em maio. “Nunca tivemos essa oportunidade de trabalhar com as causas estruturantes. Nós não fomos acostumados a trabalhar em rede, e agora temos essa oportunidade”, afirmou a juíza Solange de Borba Reimberg Riemma, coordenadora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) do TJMG, durante audiência pública na Assembleia Legislativa, realizada no último dia 7.
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Após a entrega, o documento, que também está sendo construído por todas as unidades federativas do país, ainda passará pela validação do CNJ. A iniciativa nacional nasceu da pressão de familiares de pessoas presas, movimentos sociais e defensores de direitos humanos, que há anos denunciam as sistemáticas violações nos presídios brasileiros. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal reconheceu oficialmente a violação massiva de direitos fundamentais no sistema penal e o sistema prisional brasileiro foi declarado em "estado de coisas inconstitucional". Mas só agora esse marco jurídico impôs ao Executivo e ao Judiciário o dever de construir soluções. Foi nesse contexto que surgiu o Pena Justa, como uma estratégia nacional de enfrentamento ao encarceramento em massa.
Entre os pilares do programa estão a redução da população carcerária, a garantia de direitos básicos aos custodiados, o fortalecimento da Defensoria Pública, o enfrentamento ao racismo estrutural e a revisão das políticas proibicionistas, principalmente em relação às drogas. Também propõe a criação de indicadores para monitoramento contínuo, com base em dados concretos que permitam orientar políticas públicas mais eficazes. A proposta é que o programa seja aplicado ao longo de três anos para trazer a reestruturação do sistema carcerário.
Sistema saturado
A magnitude do problema carcerário em Minas acompanha a própria extensão territorial do estado e, como em outros assuntos, espelha o tamanho da complexidade brasileira. Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), segmentados pelo Núcleo de Dados do jornal Estado de Minas, o estado tem hoje 72.568 pessoas privadas de liberdade para 58.644 vagas. A taxa de superlotação é de 66,8% – sem considerar seis unidades que já operam muito acima do limite.
O presídio de Itapagipe, no Triângulo Mineiro, é o que apresenta a pior situação proporcionalmente: abriga 202 detentos em um espaço projetado para 65, o que representa 311% de ocupação, conforme os dados da Senappen. Entre as grandes penitenciárias do estado – aquelas com capacidade para mais de 500 pessoas –, apenas três das 20 não estão superlotadas. A Penitenciária de Três Corações, no Sul de Minas, tem 1.236 presos para 546 vagas, uma taxa de 226%.
Para o desembargador José Luiz de Moura Faleiros, superintendente do GMF, a superlotação e a alimentação precária são os principais gargalos. “O que está acontecendo hoje é que nós estamos naturalizando um processo de desumanização das pessoas. Não dá mais para admitir dentro desse estado de coisas inconstitucionais pessoas amontoadas dentro de um estabelecimento prisional e alimentação incompatível com a dignidade humana”, afirmou em entrevista ao Estado de Minas. Em resposta, o TJMG destinou R$ 1,3 bilhão do Fundo Judiciário para obras emergenciais, como ampliação de cinco mil vagas e reforma das cozinhas industriais. Os recursos foram repassados ao governo estadual por meio de um termo de cooperação.
Faleiros critica duramente o modelo terceirizado de alimentação. “Em Ribeirão das Neves, por exemplo, temos 12 mil presos. A comida é feita em Belo Horizonte e enviada em caminhões sem refrigeração. Chega fria, com cheiro ruim. Isso não é digno”, contou. A proposta é reinstalar cozinhas nos presídios, com nutricionistas e engenheiros de alimentos, e permitir que detentos que quiserem possam trabalhar nelas, como forma de qualificação e remissão de pena.
O rosto da prisão
A população carcerária em Minas e no Brasil tem rosto, cor e histórico comum: majoritariamente negra, pobre e com baixa escolaridade. Segundo dados do Ministério da Justiça, 48% dos detentos são pardos e 15,6% pretos. A maioria não concluiu nem o ensino fundamental. Muitos chegam ao sistema sem sequer ter documento ou histórico médico, com problemas de saúde mental não tratados e rupturas familiares profundas.
Uma das frentes que o programa Pena Justa prevê atacar é justamente a institucionalização do racismo estrutural. A juíza Solange Riemma exemplifica com o caso de Betim, na Região Metropolitana de BH. “Lá, quase todas as pessoas que entram no sistema prisional estão em vulnerabilidade acrescida ou em situação de rua. Qual é o plano individual que eu posso fazer para essa pessoa? Qual é o perfil dessas pessoas? O que eu posso oferecer enquanto rede de proteção social e de atenção à saúde?”, questionou.
Para a magistrada, o debate não pode se limitar à ampliação de vagas. É preciso discutir o perfil de quem está entrando no sistema. “Hoje, mesmo que eu tenha recurso, diante da gravidade, da complexidade, do caos que nós vivemos, não adianta só dinheiro. Precisamos saber quem é essa a população carcerária hoje. A questão do racismo terá que ser trabalhada de forma que atravesse todos os eixos”, afirma.
Familiares não se sentem ouvidos
Apesar da abertura da consulta pública, há críticas à real participação da sociedade civil na construção do plano estadual. “Deixar a população fora desse comitê (de Políticas Penais) é aprofundar a distância entre o discurso e a prática, é escolher o caminho da exclusão ao invés da participação. Quem garante que tudo que for dito ali nessa consulta pública vai ser usado, vai ser ouvido, vai ser colocado de fato no papel. Nós queremos estar lá, queremos ter voz, queremos falar pelos nossos, porque somos nós que passamos por todas as violações do sistema prisional”, cobra Míriam Estefânia dos Santos, presidente da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade.
Para ela, manter familiares fora do processo é perpetuar a exclusão. “Todo dia chegam relatos de tortura, de comida azeda, de falta de remédio. Somos nós que vivemos, são os nossos que estão sofrendo. Por isso, nós não chamamos as pessoas que passaram pelo cárcere de egressos. Chamamos eles de sobreviventes. Porque a pessoa que passa pelo sistema prisional e sai de lá vivo, mesmo que adoecida física e psicologicamente, essa pessoa é uma sobrevivente”, desabafa.
Autora do requerimento que originou a audiência pública, a deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos da ALMG e integrante do Comitê de Políticas Penais, destaca que as prisões têm se tornado espaços de tortura, dor e morte. “O encarceramento massivo de pessoas tem classe social, tem raça. Um encarceramento muitas vezes desmedido e muito intenso”, afirmou. A deputada sugeriu a criação de canais de consulta também dentro das unidades prisionais. “Se tem alguém que precisa abrir contribuição são essas pessoas dentro das unidades”, disse.
Para além da pena
O plano Pena Justa também quer transformar o olhar sobre o que significa cumprir pena. “Porque a prisão por si só, sabidamente, não leva a um efeito positivo concreto, e a criminalidade continua sendo uma das maiores preocupações da sociedade brasileira. Precisamos preparar o indivíduo para voltar à sociedade”, afirma o desembargador Faleiros. “É um ser humano que está ali, ele precisa ser respeitado em toda a sua dignidade. É preciso ter um tratamento humano, mas para que isso aconteça de uma forma eficiente, o Estado precisa preparar o indivíduo que está cumprindo a pena para, no futuro, ser reinserido na sociedade” completa.
Nesse contexto, o modelo das Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs) é visto como um trunfo do estado. O modelo mineiro, considerado referência internacional, abriga cerca de 6 mil detentos em unidades que, segundo o desembargador, promovem disciplina, trabalho, estudo e espiritualidade. “A APAC humaniza, dá perspectiva de vida. Já recebemos até delegações da República Tcheca interessadas no modelo. Se no exterior já estão buscando o modelo APAC, como que nós não vamos valorizar aqui no Brasil, aqui em Minas Gerais, que é praticamente o berço de tudo isso”, conta Faleiros.
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Mas, para ele, não basta criar ilhas de boas práticas. É preciso que todo o sistema avance. “As unidades prisionais como um todo precisam ter um foco voltado à possibilidade de oferta de aprimoramento educacional e também atividades que possam prepará-lo para após o cumprimento da pena. O sistema precisa ser repensado, eu digo sempre, em razão desta necessidade de oferecer ao indivíduo algo concreto que possa trazer perspectiva de vida após o cumprimento da pena, porque sem essa perspectiva, o que o espera é a situação de rua, é a reincidência”, afirma.