A Câmara Municipal de Belo Horizonte foi palco de um intenso debate nesta segunda-feira (7/7) durante a discussão do Projeto de Lei 11/2025, que propõe restringir a presença de crianças e adolescentes em eventos culturais com “nudez” ou “conteúdo considerado inapropriado”.
A proposta, apresentada pela bancada do Partido Liberal (PL), tem gerado forte reação entre parlamentares, movimentos culturais, especialistas em direitos da infância e representantes da sociedade civil.
Assinado pelos vereadores Pablo Almeida, Sargento Jalyson, Uner Augusto e Vile (todos do PL), o projeto defende a criação de uma classificação indicativa para manifestações culturais como blocos de Carnaval e paradas LGBTQIAPN+.
"Queremos aplicar uma classificação indicativa também a blocos carnavalescos e à Parada Gay. Isso não é censura, é proteção”, justificou o vereador Vile. Segundo ele, um grupo técnico seria formado após a aprovação da lei para definir o que configura conteúdo impróprio.
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O texto define como “inapropriado” para menores eventos que contenham nudez explícita, gestos, músicas ou danças com conotação sexual, mesmo em contextos artísticos. A medida valeria para espaços públicos e privados, e os organizadores seriam obrigados a divulgar a classificação com símbolos visuais. O descumprimento poderá gerar multa e suspensão de alvarás.
Apesar da centralidade do tema, nenhum dos quatro vereadores autores da proposta esteve presente para ouvir os posicionamentos da sociedade civil, especialistas, conselhos e movimentos culturais. A ausência foi criticada por participantes, que apontaram a importância do diálogo democrático em projetos que impactam diretamente os direitos da infância e da cultura.
“Projeto racista, inconstitucional e seletivo”
A vereadora Juhlia Santos (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos, foi uma das vozes mais contundentes contra o projeto de lei. Para ela, a proposta é “inconstitucional e uma tentativa de controle moral conservador sobre manifestações culturais legítimas”.
Ela afirma que o PL “fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), prejudica o direito à cultura e à convivência em ambiente plural, além de atacar diretamente o Carnaval e as paradas LGBTQIA+, que também são espaços de famílias”.
Juhlia também lembrou que o ECA completa 35 anos em 2025 e representa uma construção coletiva e democrática. “Esse projeto bate de frente com uma conquista social fundamental. Ele desrespeita o direito das famílias e das crianças ao pertencimento, ao acesso à cultura e aos espaços pluralizados. É uma proposta de natureza racista e classista, porque atinge diretamente culturas pretas, pessoas LGBTQIA+ e grupos historicamente marginalizados”, afirmou.
"Estamos perdendo tempo com o que não importa"
Representante do coletivo Mães pela Liberdade, Mariana Gonçalves criticou duramente a proposta, apontando que a pauta ignora os verdadeiros desafios enfrentados pela infância e pela cidade. “A gente podia estar discutindo saúde, educação, moradia, mobilidade urbana. Temos uma quantidade enorme de pessoas desabrigadas pelas enchentes todos os anos. Estamos à beira de uma emergência hídrica e com imóveis ociosos que não cumprem função social. E, em vez de enfrentar esses problemas, estamos aqui gastando tempo com um projeto que não atende ao interesse público”.
Ela também destacou que a classificação indicativa é uma atribuição federal, de natureza orientativa, e não pode ser usada como instrumento de punição. “Já existe um órgão responsável, o Ministério da Justiça, que define classificações de 10, 12, 14, 16 e 18 anos. Essas faixas são para orientar pais e responsáveis, que também são pessoas LGBT, que também formam famílias diversas”.
A ativista lembrou ainda que a cultura LGBTQIA+ é parte essencial da identidade da cidade. “Estamos lutando para que essa cultura seja reconhecida como patrimônio imaterial de Belo Horizonte. Em vez de censurar, deveríamos estar valorizando. Esse projeto é um absurdo”.
Cultura negra na mira?
Valéria Silva, representante da Associação de Blocos Afro de Minas Gerais (Abafro-MG), também criticou o projeto. “Esse projeto atenta contra a cultura negra e de matriz africana. Somos fazedores de cultura. Tudo que nasce em nós remete à arte e à ancestralidade. Quando o Estado tenta proibir crianças de estarem com a gente nos blocos afro, nas paradas, ele está dizendo que nossas histórias não importam. Isso é apagamento”, ressaltou.
Ela denunciou o racismo estrutural presente na proposta. “Quando os corpos negros ocupam a rua, querem impedir. Quando são corpos brancos em museus, é arte, é cultura. Isso é racismo. É seletivo”.
Carnaval como espaço de formação e convivência
Dirigente do Bloco das Crianças, Pedro Schafer criticou a proposta por ignorar problemas reais da infância. “Temos um alto índice de abuso infantil dentro de casa, um problema urgente que não está sendo tratado. Esse projeto é racista, homofóbico e persecutório”.
Mariana Fonseca, presidente do bloco “Então, Brilha”, classificou a proposta como “racista, homofóbica e inconstitucional”. “O Carnaval é cultura, lazer e entretenimento. Toda criança tem direito à cultura e ao lazer pelo Estatuto da Criança e do Adolescente”, afirmou.
O depoimento de uma mãe, que preferiu não se identificar, reforçou essa perspectiva. “Meu filho cresceu participando do Carnaval com a gente, sempre em espaços adequados para crianças. Esse contato com a cultura, a música e a diversidade fez dele uma pessoa mais aberta, respeitosa e feliz. Tirar essa possibilidade é privar nossas crianças de uma parte importante da sua formação e da sua identidade”.
O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Belo Horizonte (CMDCA-BH) também rejeitou o PL. Em parecer lido na audiência, o órgão apontou que a proposta viola direitos constitucionais e invade competências da União.
“O PL propõe sobrepor, por meio de uma lei municipal, regulamentações federais já vigentes. O ECA garante o direito à liberdade cultural, à convivência familiar e comunitária e à diversidade. Cabe ao governo federal a classificação indicativa de conteúdos culturais”, diz o documento.
Os autores do projeto afirmam que a exposição precoce de crianças a conteúdos sexuais pode causar “danos comportamentais e psicológicos graves”. A relatora da Comissão de Legislação e Justiça, vereadora Dra. Michelly Siqueira (PRD), deu parecer favorável à proposta, considerando-a constitucional. Segundo ela, o Estado tem o dever de agir quando os pais “não têm bom senso”.
O vereador Uner Augusto afirmou ainda que o PL complementa a Lei 11.730/2024, que proíbe o uso de recursos públicos em eventos que promovam a sexualização de crianças e adolescentes.
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A audiência escancarou que o debate vai muito além da proteção infantil. O PL 11/2025 coloca em confronto diferentes visões sobre infância, cultura, política e direitos civis. Em um cenário de crescente tensão ideológica, o tema promete continuar aquecendo os ânimos no Legislativo de Belo Horizonte.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Gabriel Felice