Nossas Desigualdades – Saúde

Parto sem anestesista e falta de médicos: a falência da saúde em Neves

Entre longas viagens e esperas frustradas, população convive com ausência crônica de profissionais e precisa buscar atendimento em outros locais

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A bolsa estourou, o nascimento se aproximava, mas o hospital que deveria acolher mãe e bebê estava sem médico anestesista. Foi assim, em meio à aflição e à pressa, que a vendedora Eulina Auxiliadora Pereira Carvalho, de 59 anos, viu-se obrigada a deixar Ribeirão das Neves com a filha, Fernanda, de 26, já em trabalho de parto. Essa peregrinação faz parte da rotina dos cerca de 330 mil moradores do município da Grande BH. De acordo com números segmentados pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas, com base no Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS), a cidade tem a segunda pior taxa de profissionais de saúde por 1 mil habitantes de Minas Gerais, à frente apenas da pequena Soledade de Minas (Sul), de população aproximada de 5,6 mil.

Eulina e a filha tentaram atendimento primeiro no hospital municipal São Judas Tadeu, no Bairro Status, onde a gestante fez todo o acompanhamento pré-natal de seu terceiro filho. Ficaram quase meia hora esperando. “Não tinha anestesista disponível para fazer o parto no São Judas. Nem previsão de quando chegaria um. Ficamos esperando achar, mas nada. A bolsa dela já tinha estourado”, disse a avó à reportagem do EM.

Foi com o corpo trêmulo e o coração acelerado que Eulina diz ter embarcado no carro com a filha naquela tarde de terça-feira, 21 de janeiro de 2025. Um trajeto que, fora dos horários de pico, como era o caso naquele dia, leva pouco mais de 30 minutos, mas, naquele momento, pareceu uma eternidade para a avó. “Fui com o coração na mão. Quer dizer que a gente mora numa cidade que não tem nem condições de fazer um parto? Eram duas vidas ali: minha filha e meu neto. E ainda o perigo, né? De sair andando com ela em trabalho de parto”, relembra.

Made with Flourish

A cena ilustra a fragilidade do sistema de saúde de uma das cidades com maior densidade populacional do estado. Neves tem uma população de cerca de 329 mil pessoas, conforme o último censo do IBGE, divulgado em 2022, e é a quinta do estado com maior número de moradores por metro quadrado. Segundo levantamento do Núcleo de Dados do EM, o município tem 7,8 profissionais de saúde por mil habitantes, praticamente um quarto da taxa registrada em Uberaba, no Triângulo Mineiro, que tem população semelhante (337 mil habitantes) e conta com 31,4 profissionais por mil moradores. Os números são de abril deste ano.

Minas Gerais conta, ao todo, com 505.544 profissionais de saúde atuando em diversas áreas. No entanto, a distribuição desse contingente é bastante desigual. No ranking estadual, Neves fica atrás até de cidades menos populosas, o que a coloca na 852ª posição no estado, à frente apenas de Soledade de Minas, que perde para o município da Grande BH em casas decimais. Do outro lado do espectro está Grupiara, no Alto Paranaíba, com quase 60 servidores por 1 mil habitantes (a maior proporção mineira), apesar da baixa população de 1,3 mil pessoas contribuir.

O contraste estatístico é vivido na pele por quem depende da rede pública de saúde no município. Com a experiência de quem já cansou de esperar, Eulina, que mora no município há pelo menos três décadas, muitas vezes prefere nem sair de casa. 

“Você vai lá, não consegue nada, você nem vai mais. Eu tomo remédio em casa e torço para não ser nada sério. Só quando acontece uma coisa mais grave é que a gente procura o médico”, confessa. Ela cita uma tentativa recente de atendimento no posto de saúde a três quarteirões de sua casa, no Bairro Florença, por conta de uma gripe, mas que acabou não acontecendo pela ausência de médico para atendê-la. “Sempre é assim, muito difícil. Às vezes até tem profissional, mas depois de um tempo, some. Fica o posto sem ninguém por semanas”, completa.

Além do posto

Quando os filhos adoecem, o destino de Rafaela Gonçalves Ferreira, de 22 anos, é quase sempre Belo Horizonte. Mãe de duas crianças pequenas, Helena, de 1 ano e 3 meses, e Bernardo, de 3, ela diz que é raro conseguir pediatra para os filhos no município. 

Entre aguardar por atendimento, muitas vezes sequer garantido, ou sair com os filhos no colo até o Hospital Infantil João Paulo II, na Região Centro-Sul da capital, ela escolhe o cansaço, como faz questão de enfatizar. BH registra a terceira maior taxa de profissionais por 1 mil habitantes do estado: 44,7, segundo os números do DataSUS. 

“Vou com criança no colo, mochila e tudo. Tem que ser de ônibus, porque a gente não tem como pagar táxi ou carro por aplicativo. Gasta o dia todo”, diz ela, que atualmente está desempregada e o sustento da casa vem do marido, que trabalha como motoboy.

Nascida e criada em Ribeirão das Neves, ela conhece bem os caminhos da cidade, mas já aprendeu que, quando o assunto é saúde, muitas vezes será preciso pensar em alternativas. Durante as duas gestações, Rafaela fez o pré-natal em Neves, mas não conseguiu realizar todos os exames pelo SUS, pela demora ou até mesmo indisponibilidade do sistema público de marcar os procedimentos básicos. Entre eles, o hemograma, que identifica problemas como anemia (falta de ferro no sangue), comum na gravidez.

“Não tinha. Também não explicaram porque não tinha. E a médica mesmo falava para fazer no particular, porque precisava. Se for esperar pelo SUS, não dá. Tudo muito demorado. Então fui pagando particular, mesmo com o dinheiro contado”, afirma. E, hoje, com dois filhos pequenos, a angústia se repete. “E ainda hoje tenho dificuldade para encontrar pediatra pros meninos”, diz.

Especialistas são raros

As queixas se multiplicam quando a demanda é por atendimento especializado. Ortopedistas, ginecologistas e cardiologistas são nomes que soam distantes em muitos bairros da cidade. Moradora de Ribeirão das Neves há mais de duas décadas, Maria da Silva, de 49 anos, viu o município crescer economicamente e o sistema de saúde, segundo ela, piorar. 

“Antigamente, era mais fácil conseguir uma consulta. Mas, agora, pra marcar um ortopedista, um especialista, demora demais. A coisa tá muito mais precária”, diz a dona de casa, que aguarda há quatro anos na fila para operar uma hérnia de disco. O problema lhe provoca dores intensas na lombar. Os documentos, segundo ela, chegaram a desaparecer do sistema, e ela espera por uma solução.

Apesar disso, Maria faz questão de elogiar o atendimento nos postos de saúde da cidade. Afirma que, quando procurou o serviço durante crises da hérnia, foi atendida com agilidade. Criou os dois filhos em Neves. O pré-natal do segundo, hoje com 21 anos, foi feito na rede pública. Ela diz que teve um bom acompanhamento, principalmente por ter tido uma gravidez anterior de risco, o que teria contribuído para a priorização do caso. "Eu não posso reclamar. Mas, como eu tive problema na minha primeira gravidez, aí eles me priorizaram. Fui muito bem tratada”, diz.

O maior abalo, no entanto, veio em fevereiro do ano passado, quando o filho mais novo sofreu um acidente de bicicleta, bateu em um poste e perdeu a visão. O caso exigia acompanhamento urgente com um neuro-oftalmologista. Mas, mesmo com os papéis marcados como urgência médica, o encaminhamento não saiu até hoje em Ribeirão das Neves, mais de um ano depois do acidente. 

“Eu entrei com o pedido aqui, mas já sabia que ia demorar. Então, registrei ele no sistema de Contagem (Grande BH), onde a avó dele mora, e conseguimos a consulta no mesmo mês. Agora, ele faz o acompanhamento lá”, conta. “Foi tudo colocado com urgência, mas até hoje não saiu nem papel dele aqui. Quando sair o que pedi aqui, ele já vai ter feito tudo por lá”, completa.

A reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Ribeirão das Neves para comentar os dados e as reclamações dos moradores. Até o fechamento desta edição, contudo, não houve retorno. O espaço permanece aberto para manifestação.

Baixa fixação

Descrita muitas vezes como cidade-dormitório, Ribeirão das Neves sofre com a alta rotatividade de médicos. A maioria mora em Belo Horizonte e se desloca para lá apenas para o trabalho. Soma-se a isso a ausência de residência médica no município para incentivar a retenção de médicos, transporte público deficiente e insegurança em bairros mais afastados. 

"Mesmo as contratações de médico PJ ali enfrentam esse desafio. Muitas vezes, o médico vai uma vez e não quer mais voltar”, diz Cristiano Túlio Maciel Albuquerque, diretor de Mobilização do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG).

Apesar das deficiências enfrentadas pelo sistema de saúde em Neves, há aspectos estruturais que colocam o município em posição melhor do que a de outras cidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte, avalia Albuquerque. Ele destaca que a prefeitura conseguiu manter um esqueleto institucional do SUS que respeita sua lógica de funcionamento. Há uma estrutura composta por postos de atenção primária, clínicas de especialidades, uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) e uma rede de urgência, embora aquém para o tamanho da população.

“Hoje, Neves tem uma saúde muito mais organizada do que Santa Luzia, Sabará, Vespasiano e até Ibirité, que já teve um sistema bom, tem um hospital, mas houve uma grande desorganização, e agora passa por dificuldade. Em Neves, eles conseguem seguir uma hierarquia e uma organização dentro dos princípios do SUS. Mas, a cidade tem dificuldade de competir com Belo Horizonte na retenção de médicos, porque a capital tem melhores condições de vida, mais oportunidades. Poucas cidades têm médicos morando lá”, afirma.

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Um dos pontos que sustentam essa engrenagem, segundo o diretor, é o fato de o município manter um corpo de médicos concursados, algo que raramente se vê em prefeituras vizinhas. Profissionais estes, em sua maioria, remanescentes de um período em que havia um plano de carreira mais atrativo. “Têm médicos reconhecidos em Belo Horizonte que se deslocam para atender lá e querem manter seus empregos. A oftalmologia em Neves é muito boa, faz procedimentos complexos. Isso é mérito desses profissionais antigos, que continuam lá”, diz Cristiano.

Mas, esse núcleo é hoje insuficiente para dar conta de toda a demanda, o que afeta, além da população, os próprios profissionais, que se sentem sobrecarregados. “Eles seguram o sistema como podem, mas não dão conta de atender a toda demanda”, diz Cristiano. 

A rotatividade também é alta. Postos em áreas mais remotas, confirma o sindicato, estão há meses sem médicos. Em alguns casos, o atendimento se limita à presença de enfermeiros ou agentes comunitários. "Agora, eles (a prefeitura) tentam voltar para o modelo de médicos concursados, mas com uma carreira menos atrativa e sem resolver problemas estruturais, como a questão da segurança, plano de carreira, um plano de aposentadoria, que seriam atrativos para esses médicos estarem naquele trabalho a longo prazo”, aponta o diretor do Sinmed.

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