Esgoto: conheça os riscos que se escondem nos subterrâneos das cidades
Essenciais no ambiente urbano, redes de esgoto enfrentam entupimentos por mau uso, ligações e despejos clandestinos que acabam se voltando contra moradores
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Siga noUm líquido viscoso, fétido e abundante escorre por uma grelha na rampa da garagem de uma empresa na Rua Grão Mogol, no Bairro Carmo, Região Centro-Sul de BH. A coloração cinzenta e o cheiro forte, semelhante a esgoto, não deixam dúvida quanto à sua contaminação.
O lançamento irregular é um flagrante de despejo clandestino de dejetos industriais encontrado pela equipe de reportagem do Estado de Minas, uma prática que a Copasa e a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) tentam coibir. Mas, como é uma situação difícil de documentar, o combate depende quase exclusivamente de denúncias e conscientização.
Todo aquele líquido cinzento deixa um rastro de pequenos filetes emaranhados, em uma trama que se estende pela sarjeta, agarrando-se a grelhas, grades, pneus de carros estacionados e irregularidades do pavimento, até descer pela boca de lobo na drenagem destinada à água de chuvas (pluvial). Cerca de 400 metros adiante, a tubulação do bueiro encontra a canalização subterrânea do Córrego Acaba Mundo, ajudando a poluir ainda mais um dos mais importantes afluentes da Sub-bacia Hidrográfica do Ribeirão Arrudas.
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E quem fiscaliza?
A Copasa informa que a ferramenta de que dispõe para rastrear e corrigir lançamentos clandestinos e irregulares da grande BH é o Programa Caça-Esgoto. Criada em 1997, a iniciativa já identificou e direcionou para a rede coletora foraml 970 lançamentos indevidos. Em média, são três a cada mês (até julho de 2025).
O estudo “Patologias em canais de drenagem em concreto – Estudo de caso de BH”, da Escola de Engenharia da UFMG (2012), define a situação flagrada na Zona Sul de BH ao destacar que “as estruturas de concreto das galerias e canalizações sofrem deterioração devido à ação física e química das águas a que estão destinadas a conduzir, que carreiam partículas sólidas – e frequentemente grandes objetos – e são contaminadas por esgoto e outros efluentes lançados indevidamente na drenagem pluvial. Além de danos estruturais de diversas causas, desde fundações de edificações que são executadas sobre as galerias como defeitos congênitos das estruturas e a falta crônica de manutenção”.
Vigiar e punir
Em nível municipal, a Vigilância Sanitária da Prefeitura de BH registrou 1.080 lavraturas relacionadas a esgoto clandestino entre 2021 e julho de 2025. A média corresponde a quase 20 ações a cada mês no período (o equivalente a uma por dia de semana).
Como consequência, foram emitidos 751 termos de intimação, que são avisos com exigência de adequações em até 30 dias. Podem acompanhar requisição de informações ou determinação de comparecimento do infrator.
Houve também 282 autos de advertência (notificações formais com prazos para correção, sob risco de multa). A sanção mais grave é o auto de infração, que contabilizou 47 registros seguidos de multa e que podem vir acompanhados de punições como a perda de alvará de funcionamento.
Você pode ajudar?
“A gente precisa que a população nos ajude a identificar os poluidores e faça denúncias para a PBH. Há vários tipos de atividades lançando efluentes nas drenagens. Tem até caminhões limpa-fossa, que, depois de remover dejetos domésticos, lançam o material à noite nos córregos”, afirma Filipe Bicalho, gerente de Manutenção Eletromecânica da Grande BH pela Copasa.
O artigo científico “Poluição difusa nas águas pluviais de uma bacia de drenagem urbana”, de Antonio Marozzi Righetto (professor aposentado da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte) indica que os lançamentos superficiais urbanos “influenciam a qualidade dos corpos aquáticos, transportando diversos tipos de poluentes (sedimentos, nutrientes, matéria orgânica, bactérias e outros patogênicos, hidrocarbonetos, metais pesados e agentes tóxicos)”.
O programa de identificação de lançamentos clandestinos de esgoto encontra principalmente ligações diretas nos córregos ou que caem nas galerias pluviais, chegando assim aos córregos afluentes do Rio das Velhas. “Depois de identificar o lançamento, a Copasa já parte para a fase de eliminação dos pontos. E muitas vezes isso pode levar algum tempo, porque é preciso fazer um projeto e levantar o orçamento para a obra de correção. Alguns são em áreas complexas”, explica Filipe Bicalho.
Até no Centro de BH?
E engana-se quem acredita que apenas áreas menos urbanizadas de periferia têm lançamentos irregulares. Mesmo endereço antigos e nobres da capital ainda têm ligações de esgoto nas redes pluviais, que chegam aos córregos. Segundo Filipe Bicalho, isso ocorre em áreas da própria Região Centro-Sul de BH, como a Avenida Brasil (que liga a Praça da Liberdade à Praça Floriano Peixoto) e a Avenida Prudente de Morais (que acompanha o Córrego do Leitão), e também no Córrego Ferrugem (que vem de Contagem e deságua no Ribeirão Arrudas, no Bairro Madre Gertrudes, Região Oeste). Ocorre ainda em pontos do Córrego Bonsucesso (que nasce no Barreiro e deságua no Ribeirão Arrudas na Reserva Ambiental Vista Alegre).
Em Belo Horizonte, a sina de contaminação do Córrego Acaba Mundo começa a apenas alguns metros depois de suas primeiras águas brotarem do solo, em uma mata pantanosa aos pés da Serra do Curral. No fundo do vale entre a Mina Lagoa Seca e a Vila Acaba Mundo, essa água emerge cristalina e fria, mas logo acaba recebendo lixo carreado das ruas e habitações acima, devido às chuvas. E bastam não mais que 300 metros para que uma intrincada rede de tubulações de esgoto improvisadas, dependuradas sobre escoras ou amarradas em arames despeje no curso d’água o esgoto doméstico dos barracões mais afastados. Dentro da Vila Acaba Mundo há várias bicas que seguem para o curso do córrego que corta a comunidade. Tubulações de esgoto da Copasa mostram que a ligação com a rede coletora seria possível e poderia, assim, poupar o córrego de contaminação.
Água já foi boa para beber
A situação deixa moradores preocupados. Sobretudo os mais antigos e saudosos, como o polidor e pizzaiolo Hilton do Nascimento Alves, de 47 anos. “Hoje a água do córrego não é tão limpa como antigamente, porque tem muita gente que ainda joga esgoto e lixo. Tinham de canalizar esse esgoto direitinho, para não sujar a água. Porque tem rede de esgoto que a Copasa fez”, costata.
“Essas nascentes do Córrego Acaba Mundo antigamente tinham até mais água. Hoje estão mais secas, mas ainda correm e com água boa e pura que brota da terra. Sou nascido e criado aqui. Quando era criança, não tinha água da Copasa. Então o pessoal usava essa água, que vinha da mina e depois virava o córrego. Usava para beber, cozinhar, lavar roupa da casa, para tudo”, lembra.
Incomparavelmente mais poluído atualmente, depois de deixar a vila o Córrego Acaba Mundo flui por galeria aberta ladeando o Parque Municipal Juscelino Kubitschek, último lugar onde seu leito pode ser visto, pois, pouco antes de atravessar a Avenida Bandeirantes, o curso ingressa em galeria subterrânea até desaguar no Ribeirão Arrudas, nas proximidades do Parque Municipal Américo Reneé Giannetti.
Onde os lançamentos irregulares de esgoto são menos evidentes do que no Acaba Mundo, há vários meios de rastreá-los. “Uma das formas é verificando os cadastros da rede coletora. Imoveis mais antigos não constam como interligados e provavelmente estão lançando em local indevido. Não é por maldade ou má fé. Na época da concepção de BH, não existia rede de esgoto e tudo era lançado direto no córrego ou nas galerias”, explica Filipe Bicalho, da Gerência de Manutenção Eletromecânica da Copasa.
Outra forma de identificar se o esgoto está caindo nos córregos é pelo monitoramento da qualidade da água. Ao perceber aumento na concentração de poluentes, sabe-se que há lançamentos irregulares. Começa então um mapeamento e busca para identificar a fonte.
Nas galerias de chuva ou dos córregos isso é feito por inspeções visuais. “Muitas, vezes, vemos tubos jorrando esgoto e então começa a nossa busca para encontrar de onde vêm, se são de alguma rede ou imóvel. Fazemos o caminho inverso, com cruzamento de dados, de plantas, com levantamento topográfico para conseguir chegar à fonte”, afirma Filipe Bicalho.
Quem paga por isso?
Todos esses lançamentos precisam ser corrigidos e integrados à rede coletora, que leva para as Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs). A Copasa arca com todos os investimentos. “No caso dos efluentes industriais, cabe ao emissor tratar os resíduos, pois se chegarem à ETE podem matar todo o tratamento biológico”, alerta Bicalho.
Quando os lançamentos irregulares estão próximos de redes coletoras, a correção é relativamente simples. “Mas há intervenções mais onerosas. É complexo quando se precisa, por exemplo, atravessar a Avenida do Contorno. Imagine ter de parar o trânsito para escavar. É preciso localizar linhas subterrâneas da Cemig. Em alguns casos a gente perfura túneis para fazer as ligações, em operações muito complexas”, descreve o gerente da Copasa.
O problema vem à tona
Mesmo quem tem ligações regulares com a rede sanitária precisa saber usar a estrutura, uma vez que o chamado que a Copasa mais atende sobre esgoto é justamente devido a entupimentos, além do lançamento de água da chuva nos dutos coletores. A concessionária registra na Grande BH, em média, 6 mil ordens de serviço mensais de extravasamento (quando o esgoto vaza na rua) e refluxo (quando retorna para as moradias), considerados os piores problemas da rede.
A Bacia do Ribeirão Arrudas é a mais afetada. A causa mais frequente é o lançamento indevido de água de chuva nas redes coletoras, já que as tubulações de esgoto não são dimensionadas para esse tipo de fluxo. “Há casas e prédios que ligam suas calhas diretamente ao esgoto, que não está preparado para esse volume adicional”, explica Filipe Bicalho.
Outra causa frequente de entupimento é o lançamento indevido de resíduos nas redes de esgoto, como gordura e óleo de cozinha, absorventes e fraldas descartáveis. O gerente da Copasa orienta: “Se cabe na mão, no esgoto, não. Esse lixo se junta e forma uma espécie de bucha na rede”.
Há ainda o problema de imóveis sem caixas de gordura, que lançam o resíduo diretamente na rede coletora. “O óleo de cozinha é um veneno. Endurece e vira uma pedra, junta com restos de cabelo, absorvente, fralda e aí entope mesmo”, afirma Filipe Bicalho.
Para resolver casos de entupimento, a Copasa envia equipes especializadas para a desobstrução, que pode ser manual ou com caminhões de alta pressão. Pelo regulamento, a companhia tem até 24 horas para corrigir casos de extravasamento, conforme a Resolução Arsae-MG nº 130/2019. >>>
Programa controla a poluição na Pampulha
O combate aos lançamentos clandestinos de esgoto que desafiam a estrutura de saneamento em Belo Horizonte tem entre suas principais preocupações a Bacia da Pampulha, marco de um dos cartões-postais da capital. Atualmente, as iniciativas do Programa Caça-Esgoto da Copasa têm como foco principal o Programa Reviva Pampulha, com investimento estimado em aproximadamente R$ 5 milhões.
A preocupação se justifica: o despejo irregular de esgoto nas redes de drenagem e diretamente em córregos afluentes é o maior causador da poluição que degrada e contamina a Lagoa da Pampulha. Desde março de 2023, quando os trabalhos do Reviva Pampulha foram intensificados, mais de 44 quilômetros de rede foram inspecionados e limpos. Até julho de 2025, 627 imóveis não conectados, principalmente em áreas de interesse social, tiveram iniciadas obras do programa.
Iniciativa da Copasa, o Reviva Pampulha visa à universalização da coleta e tratamento de esgoto na bacia. O Plano de Ação, homologado em março de 2023, prevê a interligação à rede oficial de 9.759 imóveis em até cinco anos. Até junho de 2025, 4.910 ligações foram finalizadas, atingindo 50% da meta total.
O investimento previsto é de R$ 146,5 milhões até 2028. Desse valor, R$ 74.352.598,33 (51% da previsão) foram empenhados desde janeiro de 2022. O plano detalha metas em categorias. Para Obras de Pequeno Porte em 4.789 imóveis, 2.266 (47%) foram finalizados. Em Ocupações Desordenadas, de 308 imóveis, 65 (21%) foram concluídos.
Para Áreas de Interesse Social em Contagem, de 3.112 imóveis, 1.206 (39%) foram ligados. Na categoria de Mobilização Social, dos 1.550 imóveis, 1.373 (89%) foram conectados. A Copasa também executou 5.137 novas ligações gratuitas devido ao crescimento urbano e à expansão.
Há solução para a lagoa?
Mas solucionar o problema de degradação da Pampulha não é simples. Marco do complexo que se tornou patrimônio da humanidade, a represa que é centro do cartão-postal idealizado por Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer está com quase metade de seu volume original perdido devido ao assoreamento e à poluição.
Atualmente, cerca de 5% dos habitantes da Bacia da Lagoa da Pampulha ainda não estão conectados à rede de esgoto da Copasa. Destes, 75% possuem rede disponível e 25% ainda não têm sistema implantado. Os córregos Ressaca (BH) e Sarandi (Contagem e BH) são responsáveis por cerca de 70% da vazão que chega à lagoa. São também onde a Copasa identifica o maior número de imóveis não interligados.
O que se esconde na água
O esgoto irregular carreia para a bacia e para a lagoa coliformes fecais, fósforo, manganês e zinco. Lixo e detritos de obras, loteamentos e bota-foras também chegam aos córregos e aceleram o assoreamento da represa.
Inspeções da Copasa em 12.185 imóveis revelaram que 34% tinham as chamadas “contribuições parasitárias”, ou seja, ligações clandestinas com redes de drenagem, despejos de gordura ou efluentes não tratados, que causam entupimentos.
Um dos maiores obstáculos para enfrentar o problema é a conscientização da população. Há resistência quanto ao pagamento das tarifas, além de dificuldades técnicas para a conexão. Para incentivar a adesão, a Copasa oferece a Tarifa Social, com até 50% de desconto. Em julho de 2025, 17.494 imóveis estavam cadastrados, um aumento de cerca de 50% desde 2023.
A fiscalização de efluentes não domésticos também é um desafio. De 10.733 vistorias previstas, 707 foram realizadas até junho de 2025, qualificando 342 imóveis para o programa. O descarte irregular de lixo e sedimentos é outro grande problema. A Estação de Tratamento de Águas Fluviais (ETAF) da Pampulha removeu aproximadamente 1.300 toneladas de detritos nos últimos 12 meses.
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Visitas de porta em porta
Em âmbito municipal, ações de Vigilância Sanitária resultaram na finalização de 388 ligações a partir de 659 processos encaminhados. A mobilização social porta a porta registrou 955 visitas em 2025 até junho, buscando conscientizar moradores da Pampulha.
No monitoramento da qualidade da água, 21 pontos foram implantados. Na última amostragem (junho de 2025), 86% das amostras estavam classificadas nos níveis “aceitável”, “bom” ou “ótimo”. Houve melhorias notáveis, como o Córrego Cabral, que evoluiu da classificação “ruim” em março de 2023 para “bom” em junho de 2025.
Para regiões sem sistema de esgoto, 12 Soluções Técnicas Alternativas provisórias foram implantadas (10 em Contagem e 2 em Belo Horizonte). A Copasa também mantém um convênio com o Tribunal de Contas do Estado (TCE-MG) desde outubro de 2024, visando ações integradas de combate à poluição e implementação de um Sistema de Governança e Gestão da Bacia.