Os lugares de BH que ainda enfrentam falta de saneamento básico
Com a maior parte da cidade com tratamento de esgoto e abastecimento de água, Venda Nova, em BH, ainda convive com falhas no saneamento, mesmo após obras
compartilhe
Siga no
A família Pereira, formada por nove pessoas, se divide em quatro barracões na Rua José Maria Botelho, Bairro Santa Mônica, em Venda Nova, BH. O lote é cercado por galinhas, cães da raça shih-tzu (uma paixão de quem vive ali) e árvores frutíferas. Pedro, o mais jovem, ainda criança, recebe a reportagem com olhar curioso, enquanto se apronta para ir à escola. O que parece uma rotina comum de um lar belo-horizontino, no entanto, é marcada pelo medo a cada tempo nublado que se forma no céu da capital. Os Pereira convivem com a inundação das águas do Córrego Marimbondo a cada período chuvoso, uma marca do deficiente saneamento básico da região – um dos raros pontos da maior cidade do estado ainda sem universalização do direito obrigatório.
Leia Mais
A matriarca da família, Maria Vicentina Pereira, de 83 anos, tem na lembrança um misto de sentimentos ao falar do córrego que passa nos fundos do lote. Quando era adolescente, o curso d’água, ainda limpo, era fonte de peixes para a alimentação dos entes queridos. O tempo passou, e a ocupação do bairro junto ao despreparo das autoridades transformaram o manancial num esgoto a céu aberto. “Quando chove, eu fico em pé ali esperando pra ver se vai encher. É uma correria danada. Já fiquei aqui de madrugada espiando”, diz.
O mais recente drama vivido é recordado com detalhes por Geraldo Ferreira Dias, genro de Maria Vicentina. Uma enchente invadiu o lote após destruir completamente o muro de concreto que protegia o lar das águas da canaleta do Marimbondo. “Foi um desespero total. Lembro que tivemos que salvar os cachorros quando eles já estavam boiando. Muitas galinhas morreram”, afirma.
A lembrança dos cães não é acaso. Ao entrar no lote onde vive a família, o visitante é recebido com carinho por um gato e aproximadamente cinco shih-tzus – Keno, o mais comportado e com nome inspirado no ex-atacante do Atlético, parece entender a pauta e guiar a reportagem até o córrego. Além do susto com os bichinhos durante as enchentes, a família Pereira convive com a destruição de eletrodomésticos, móveis e outros objetos quando a chuva cai forte.
“Eu já falei com minha esposa. Temos um terreno no interior e penso em ir para lá. Estou aposentado. Trabalhei por décadas no transporte coletivo e convivo com dores na coluna. Estou cansado disso aqui. Com planejamento, até daria para investir aqui no meu barraco, melhorar as condições. Mas, com esse córrego aqui, jamais farei isso. Tenho medo. A cada chuva que vejo (se) formando no céu, eu tenho medo”, afirma Geraldo.
Obras
A urbanização do Córrego Marimbondo era uma demanda antiga de Venda Nova. Junto ao Lareira, o curso d’água dá origem ao Nado, um dos principais abastecedores do Vilarinho, manancial já conhecido pela população de BH pelas tragédias acumuladas na avenida de mesmo nome.
Leia Mais
A região foi atendida na chamada primeira etapa de obras ligadas ao saneamento básico em Venda Nova. Entre 2019 e 2022, a prefeitura investiu R$ 98 milhões nas sub-bacias do Lareira e do Marimbondo, a partir de intervenções como tratamento de fundo de vale, contenção, canaletas, redes de drenagem, desapropriações e indenizações. O dinheiro veio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e de uma contrapartida do Fundo Municipal de Saneamento.
Parte dessa intervenção chegou nas imediações da família Pereira, a partir da construção de um muro de concreto para proteger a moradia da canaleta do córrego. No entanto, o líder comunitário Paulo Barzel alega que falta uma estrutura para abrigar a água do manancial durante chuvas de alta intensidade, aquelas semelhantes a um piscinão, como a prefeitura instalou nas imediações da Avenida Vilarinho e da Rua Doutor Álvaro Camargos, antiga 12 de outubro.
“Veja só, essa canaleta recebe as águas da parte superior do bairro. Quando chove muito, ela até aguenta levar a água até o final (do córrego), mas quando chega na confluência (no encontro com o Córrego do Nado) não tem para onde a água ir. A estrutura não suporta. Então, ela volta com toda intensidade”, diz. Foi esse “retorno” do manancial que derrubou o muro da família Pereira, que confirma a versão de Barzel.
Mau cheiro
No Córrego Lareira, outra sub-bacia do Nado, o problema é diferente. Apesar de não conviver com a água de esgoto dentro de sua casa, o aposentado Nelson Lopes, 64, reclama da água suja que fica empoçada nos dois piscinões de concreto armado feitos pela prefeitura em 2022, na altura do Bairro São João Batista, também em Venda Nova.
Leia Mais
“Quando a tarde chega, e o sol vai embora, isso aqui vira um enorme bueiro. É um mau cheiro inacreditável que entra na casa da gente. Fica muito difícil mesmo. Fora que corremos o risco de doenças, como a dengue, por exemplo, porque a água fica ali parada o tempo inteiro”, diz.
O aposentado é grato pela obra feita pela prefeitura. No entanto, diz não entender o tamanho das bacias construídas. “Na minha visão, eles gastaram dinheiro além do necessário aqui. Desde 2022, nenhuma chuva encheu sequer metade disso aqui. Quando vimos o projeto, pensamos que as águas do Vilarinho viriam para cá. Quando percebemos que era só a água do bairro, ficamos impressionados. Pra mim, é quase um elefante branco”, afirma.
Outra preocupação da comunidade local é com o Centro de Saúde Alameda dos Ipês, atualmente em construção no São João Batista, ainda em Venda Nova. A unidade está localizada ao lado das bacias em questão. Há o temor de que o mau cheiro comprometa o atendimento. “Fora o risco de dengue aqui ao lado. Essa água fica parada por dias, até meses dependendo do período de estiagem”, diz Paulo Barzel, liderança comunitária de Venda Nova.
Outro lado
Em nota, a Prefeitura de BH informou que a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) fará "uma vistoria conjunta com a Defesa Civil para avaliar a situação" do muro caído na casa da família Pereira, enquanto a Zeladoria Urbana e a Sudecap irão vistoriar a bacia do Córrego Lareira, diante do esgoto a céu aberto parado na estrutura.
Quanto às acusações de desproporcionalidade na obra do Lareira, a PBH esclareceu que a bacia não ter enchido, até o momento, "não significa que não esteja cumprindo sua função. Pelo contrário, desde sua implantação, a região não foi atingida por eventos críticos de chuva, que são aqueles de maior intensidade e duração, que geram volumes de água suficientes para ocupar a bacia".
Segundo a administração pública, "quando esses eventos ocorrerem, a bacia estará preparada para desempenhar seu papel fundamental na segurança da região. Portanto, a obra representa um investimento preventivo, que muitas vezes só é percebido em sua totalidade quando acontece uma chuva severa. Até lá, a função da bacia é permanecer disponível, como um mecanismo de proteção coletiva para os moradores".