Conscientização

Minas tem 4 mil pessoas na fila do transplante, e profissionais fazem apelo

No Dia Nacional de Doação de Órgãos, o EM ouve especialistas e famílias para incentivar as contribuições

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A morte de uma pessoa não significa o fim da vida dela. “Nem todo fim precisa ser um ponto final. Pode-se colocar uma vírgula e deixar seu fruto viver em outras pessoas”. Este é o lema dos médicos e enfermeiros do Hospital Municipal de Contagem, na Grande BH, que fazem parte, todos, de um departamento de transplantes, a Comissão de Infraestrutura Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos de Transplante (CIHDOTT). A reflexão ganha ainda mais força diante de uma data especial: o Dia Nacional de Doação de Órgãos, celebrado ontem.

Quem conta isso são a médica Luiza Melo e a enfermeira Cynthia Oliveira, integrantes do CIHDOTT e que acabam de vivenciar mais um caso de doação de órgãos capaz de emocionar a todos. No dia 6 de setembro, no final da madrugada, deu entrada um paciente, Bruno Franklin Farias, de 43 anos, que se envolveu num acidente na BR-040, próximo ao Ceasa. Ele bateu sua caminhonete na traseira de uma carreta, que estava parada no acostamento.

Teve fraturas no crânio, inclusive na base. Estava entre a vida e a morte. Foi levado para o CTI e entubado. Teve início, então, uma tentativa de salvar a vida de Bruno. Para determinar a morte de uma pessoa é preciso realizar o exame de morte encefálica, mas como ele estava entubado, seria necessário a retirada do aparelho, e resistir, oito minutos, sem essa ajuda mecânica.

O exame de morte encefálica só foi feito no dia 10 de setembro, uma quarta-feira. O resultado constatou que nada mais poderia ser feito. Teve, então, uma nova etapa: a preservação dos órgãos para a retirada, o que aconteceria no dia seguinte.

A decisão da doação foi feita pela mulher de Bruno, R. M. D., de 41 anos, e teve apoio da família dele. “Este é um gesto de humanidade e sei que, no futuro, poderei dizer para nossas filhas que o pai delas vive em outras pessoas. Não sei quantas, mas essa é a verdade”, conta. Assim foi feito.

Orgulho mineiro

"Agora sou campeã brasileira". A vitoriosa frase vem da nadadora mineira Maria Eduarda Porto, a “Duda”, de 17 anos, que subiu ao lugar mais alto do pódio quatro vezes na 3ª edição dos Jogos Brasileiros de Transplantados, disputada neste mês. 

Valeska Porto, mãe de “Duda”, conta que, quando a filha tinha três anos, teve de retirar o rim direito, ficando apenas com o esquerdo, que também não era bom, pois tinha apenas 40% das funções.

E foi por causa dessa deficiência, que ela foi para a natação. “Levei ela para a natação para tentar impedir a hemodiálise. Deu certo, pelo menos por um tempo”, diz a mãe. Quando ela fez 11 anos, a situação piorou, pois o rim que tinha caiu de 40% para 11% das funções. Duda, até os 11 anos, já tinha feito 19 cirurgias renais. Mas, naquele momento, seria preciso um transplante.

Duda sempre esteve, desde os 3 anos, na lista de transplantes. “O nosso drama durou até 18 de novembro de 2020. Foi quando uma família, de Itabira, doou os órgãos da filha, de apenas 13 anos. A menina teve um AVC. E a Duda recebeu um rim direito. Está viva por isso”, conta Valeska.

Dificuldades

O transplante no Hospital Municipal de Contagem é feito desde 2019. Desde então, 159 doadores já passaram por lá. “A decisão de doar deve ser feita pela família. Não tem validade aquela campanha que fizeram há alguns anos, de que a pessoa pode colocar na carteira de identidade que é doador. Isso não tem validade jurídica”, diz Cynthia Oliveira, da Comissão de Infraestrutura Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos de Transplante. 

Durante os três anos de pandemia de COVID-19, não houve doações. As restrições impostas para conter o vírus paralisaram o programa em todo o estado. Conforme o MG Transplantes, o índice despencou. Só agora, em 2025, há sinais de recuperação.

Neste ano, o hospital retomou a retirada de pulmões, suspensa desde o início da pandemia. Os órgãos captados em Contagem são encaminhados ao Hospital das Clínicas.

Em 2025, o Hospital Municipal de Contagem fez 24 doações, sendo 13 de múltiplos órgãos, ou seja, de pessoas que estavam internadas, com problemas, mas com os órgãos perfeitos. As outras 11 doações foram de órgãos individuais. Atualmente, cerca de 4 mil pessoas aguardam uma doação em Minas, segundo o MG Transplantes.

“Todo transplante é feito em acordo com a Central Estadual de Transplante, que é comunicado e aciona o MG Transplantes, para recolher os órgãos”, explica Luzia Melo, da mesma comissão. A médica explica que toda equipe do hospital passou por capacitação para detectar um caso de doação. “Falta divulgação. Falta interesse. Falta solidariedade das pessoas, famílias, para com a doação de órgãos”, diz.

Cynthia lembra dos lemas dos profissionais do hospital. Um deles serve para a causa tema desta reportagem. “Doação não salva um paciente, não salva uma família que sofre. Mas, salva pacientes, que passam a ter condição de uma vida normal, novamente”.

Desafios

A engrenagem dos transplantes depende, acima de tudo, da doação. É justamente nesse ponto que residem os maiores entraves. A lei brasileira estabelece que somente parentes de primeiro e segundo grau podem autorizar a doação de órgãos e tecidos, mesmo que o desejo tenha sido manifestado em vida pelo doador. Na prática, isso significa que a decisão quase sempre acontece em meio ao luto. 

A recusa familiar é, por isso, um dos principais obstáculos enfrentados pelas equipes de saúde. “Quando a família já sabe que aquela pessoa era uma doadora, aquilo deixa a família muito mais tranquila dessa decisão. Ela já sabe daquilo e vai tomar essa decisão muito mais tranquila, porque sabe que era um desejo daquela pessoa”, diz a gerente assistencial do MG Transplantes, Sílvia Zenóbio

Segundo ela, a recusa é movida, em grande parte, pelo desconhecimento e por medos que ainda cercam o processo. Há também barreiras culturais e religiosas. Por isso, campanhas de esclarecimento são consideradas fundamentais para reduzir resistências. Setembro é um mês em que o tema ganha maior visibilidade, mas as ações se estendem ao longo de todo o ano.

A gestora acredita que dar visibilidade a histórias de pacientes que tiveram a vida transformada após um transplante é uma das formas mais eficazes de sensibilizar a população. “Quando as pessoas conhecem alguém que estava esperando e, depois do transplante, voltou a estudar, casou, teve filhos… Isso sensibiliza quanto à importância do transplante como tratamento”, diz. 

Para ela, a decisão de doar pode transformar o luto em esperança. “Mesmo naquele momento de muita dor, da perda de uma pessoa muito querida, a doação pode ser uma forma de consolo muito grande, de ressignificar aquela perda. É dar uma segunda chance para uma outra pessoa.”

Paciência

O tempo de espera, segundo Sílvia Zenóbio, não está ligado à falta de estrutura do sistema, mas ao baixo número de doações. “A estrutura existe. A gente trabalha muito para que ela seja o mais eficaz possível, mas a gente precisa que tenha a doação. Quanto menos doadores tivermos, maior é o tempo de espera nas listas de transplantes. É isso que temos que trabalhar: mais doação para a gente ter mais transplante”, afirma. 

O cenário vivido em Contagem se repete em outras unidades de saúde de Minas. A gerente assistencial do MG Transplantes explica que o período pós-pandemia foi marcado por uma reconstrução. “Não existe programa de transplante sem doação. Quando há queda na doação, inevitavelmente cai também o número de transplantes. Estamos em processo de recuperação. Ainda não atingimos os números de 2019, mas estamos melhores do que em 2024 e 2023”, disse em entrevista ao Estado de Minas.

Atualmente, 4.196 pessoas aguardam órgãos sólidos em Minas. A fila por córneas já passa de 4,5 mil pacientes. “Isso nos assusta muito”, admite a gestora, que acompanha diariamente a pressão sobre o sistema. O maior gargalo é o rim, com quase 4 mil pessoas à espera. Depois vêm fígado, com pouco mais de 100, e o coração.

A fila de córneas se destaca pela mudança de cenário. Há uma década, Minas havia zerado a lista. Hoje, o tempo de espera pode levar anos. “Você imagina o que é a visão na vida de uma pessoa. Ela é muito incapacitante. Uma pessoa que perde a sua capacidade visual fica impossibilitada de exercer as suas capacidades mínimas, de trabalhar, de exercer sua função”, lamenta a gerente.

Se a doação é o ponto de partida, a logística é outro desafio. Todo o processo é regulado pelo Sistema Nacional de Transplantes, que organiza a distribuição de forma transparente e segura. Em geral, os órgãos captados em Minas vão para receptores cadastrados no próprio estado, mas podem ser transferidos a outros locais em situações específicas, como casos emergenciais ou quando não há compatibilidade disponível na região. 

Nesses casos, a mobilização precisa ser imediata. Equipes médicas são deslocadas com o apoio de aeronaves da Polícia Militar ou da Força Aérea, para que os órgãos cheguem a tempo para o implante. “Não é um procedimento simples. Às vezes dura 24, 36 horas até que tudo se finalize, e o paciente possa receber seu órgão”, diz Sílvia.

Além do câncer

Outro equívoco recorrente é associar transplantes diretamente ao câncer. Sílvia faz questão de esclarecer que a maioria das indicações está ligada a doenças crônicas e degenerativas, e não oncológicas. “As principais causas estão ligadas a condições muito comuns, como hipertensão e diabetes, além de doenças cardíacas. O câncer de fígado é uma das poucas situações em que o transplante é uma opção consolidada”, explica.

No caso dos rins, a demanda é ampliada justamente por essas doenças prevalentes. Como a hemodiálise prolonga a vida, a fila cresce continuamente, já que muitos pacientes sobrevivem em condições limitadas até receberem um órgão. “Por isso, a maior fila é a de rim. É possível o transplante intervivo, mas nem sempre há um parente compatível. A maioria acontece com doadores falecidos”, afirma.

A lógica é semelhante em outros órgãos, como coração e fígado, em que a espera pode ser fatal mais rapidamente. O contraste reforça o valor de cada decisão familiar de doar: um gesto capaz de transformar não apenas um destino, mas vários, num país em que milhares aguardam a chance de recomeçar.

Hospital das Clínicas

Ontem, o Hospital das Clínicas da UFMG anunciou a retomada do transplante de pulmão na unidade. A oficialização aconteceu durante o evento Caminhantes – encontro de pacientes transplantados e que estão na fila de espera aguardando por um órgão. Entre os anos de 1998 a 2014, foram realizados 24 procedimentos do tipo em Minas Gerais. 

Após este período, pacientes mineiros que necessitavam do órgão passaram a ser cadastrados em listas de espera de outros estados (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo). Desde 2023, após anúncio do secretário de Estado de Saúde de Minas Gerais, Fábio Baccheretti, o HC-UFMG tem realizado todas as etapas para retomada do serviço.

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