Em abordagem conotativa, os termos “político” ou “diplomático” foram por décadas utilizados como uma maneira de descrever atitudes que buscam o consenso por meio do diálogo, uma estratégia não agressiva de defesa dos interesses sem entrar em rota de colisão com uma parte que advoga por outra causa. Sustentar o sentido figurado desses termos atualmente se faz quase impossível à luz do noticiário internacional. A era de Jair
Bolsonaro, Donald Trump, Vladimir Putin, Mohammad bin Salman, Benjamin Netanyahu, Nayib Bukele, entre outros se apresenta com um momento de relações diplomáticas e domésticas marcadas pela agressividade e obliteração dos oponentes. É este cenário que Giuliano da Empoli descreve em seu novo livro, “A hora dos predadores” (Vestígio).
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A mais recente obra do analista político ítalo-suíço publicada no Brasil é um conjunto de ensaios que mesclam experiências vividas por Empoli como professor e assessor do político florentino Matteo Renzi, momentos marcantes da história global e clássicos da literatura para mostrar como o momento contemporâneo é marcado pela ascensão de lideranças autocráticas.
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O livro é curto, tem pouco mais de 100 páginas e é dividido em 12 ensaios que narram episódios políticos com referências que nos ajudam a formar um repertório para entender um pouco sobre o cenário atual. A capacidade de comparar a contemporaneidade aparentemente tão disruptiva com momentos e teorias clássicas da política é a marca registrada nos três títulos de Empoli publicados no Brasil, o analítico “Os engenheiros do caos” (Vestígio, 2019, best seller traduzido em 12 idiomas e que vendeu 66 mil exemplares apenas no Brasil), o romance “O mago do Kremlin” (2022, 5 mil exemplares vendidos no país) e agora, “A hora dos predadores”.
Uma das obras que alicerçam o livro é “O príncipe”, de Nicolau Maquiavel (1469-1527). As percepções do clássico autor florentino sobre a família Bórgia e como César Bórgia atuava de forma inescrupulosa nos primeiros anos do século 16 servem como base para a análise dos predadores atuais e também para a falta de resposta de seus antagonistas.
“Os borgianos focam no conteúdo, não na forma. Eles prometem resolver os verdadeiros problemas do povo: a criminalidade, a imigração, o custo de vida. E o que respondem seus adversários, os liberais, os progressistas, os bons democratas? Regras, democracia em perigo, proteção das minorias…”, escreve Giuliano da Empoli em um dos capítulos do livro.
A necessidade urgente de regulação do alcance de atuação das big techs é outro tema central de “A hora dos predadores”. Nesta discussão está a melhor analogia feita pelo autor, quando compara a crença dos usuários da inteligência artificial (IA) na forma de comando social descrita por Franz Kafka (1883-1924) em “O castelo”.
Ao Pensar, Empoli fala sobre o cenário da política global atual e cita os expoentes brasileiros Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL). O analista também explica a relação entre os moradores submetidos à enigmática e quase metafísica presença do castelo na aldeia visitada pelo agrimensor K. com a lógica não democrática dos resultados oferecidos pela IA e os governos de predadores aliados às empresas gigantes da tecnologia. Ao não se entender a forma como as soluções são formuladas, tanto em governos autocratas como nos serviços de inteligência artificial, o que se espera dos governados é uma crença cega no poder e em sua inefável capacidade de tomar decisões eficientes. Leia, a seguir, a entrevista de Giuliano da Empoli ao Estado de Minas.
Mesmo quando a IA evolui, todo o sistema é construído de uma forma que você não consegue realmente rastrear o processo de decisão. E isso é exatamente o oposto da democracia, que rastreia de forma transparente o processo e inclui as pessoas na decisão
No início do livro, você fala sobre como Lula ainda é um líder carismático. Mas, neste mandato atual, ele tem sido criticado por estar preso às técnicas políticas e diplomáticas do seu primeiro mandato como presidente. Você acha que estamos testemunhando o fim de líderes como Lula?
Quando os primeiros líderes predadores surgiram, como quando Trump foi eleito em 2016 e depois teve o Bolsonaro no Brasil, o que aconteceu foi que, depois que essa primeira onda passou e de certa forma entrou em colapso, em vez de surgirem novos líderes, o sistema, de certa forma, apenas reproduziu os líderes antigos. Basicamente, teve o Joe Biden sendo eleito nos EUA e teve o Lula voltando no Brasil, e depois outros casos semelhantes na Europa. Na realidade, isso não foi uma resposta ideal no sentido de que foi apenas a coisa antiga voltando porque a nova havia falhado. Mas não foi como um passo adiante para integrar a lição que veio do primeiro Trump e do primeiro Bolsonaro para produzir algo novo do outro lado. Então o Biden saiu. O novo mandato do Lula tem sido, embora eu não conheça tão bem a realidade brasileira, menos bem-sucedido do que o seu primeiro mandato. Vamos dizer que o modo antigo de estar na política e de ser um líder político está desaparecendo.
No Brasil, os últimos seis anos foram marcados por ataques sistemáticos de Jair Bolsonaro e seus apoiadores ao sistema eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal, o que levou a esquerda a assumir um papel de defesa das instituições, muitas vezes confundido com a defesa do establishment. Essa situação ocorre em outros países do mundo? Como a esquerda pode tentar escapar desse estigma no cenário dos “predadores”?
Eu acho que esse é todo o perigo. Eu falo sobre isso no livro, eu observei que, desde 1980, todos os candidatos do Partido Democrata, tanto a presidente quanto a vice-presidente, eram todos advogados. Desde 1980, por 45 anos, portanto. Isso diz algo também sobre a atitude que eles tiveram ao combater o Trump, que foi defender que ele deveria estar na cadeia porque é um criminoso, e os juízes deveriam impedi-lo e ele é um perigo para o Estado de direito, para a democracia e suas regras. Tudo isso é verdade. São todos argumentos verdadeiros, mas, ao mesmo tempo, são um pouco politicamente fracos no sentido de que os predadores, pessoas como o Trump, pessoas como o Bolsonaro, basicamente dizem: ‘nós quebramos as regras para lidar com os problemas do povo, e as regras são uma ferramenta do establishment. Nós quebramos as regras porque queremos resolver os problemas reais das pessoas’. Isso é um argumento poderoso. Então, se você é aquele que está apenas dizendo que está defendendo as regras – o que está certo – ao mesmo tempo está caindo em uma armadilha. Você ainda precisa mostrar que tem soluções para os problemas, que você não está ali só para defender as regras e proteger as regras e os procedimentos. Que você ainda está lidando com os problemas reais e com as preocupações reais do povo.
Você acha que existe uma boa resposta aos predadores?
A única maneira de derrotar os predadores é, basicamente, mostrando que você tem soluções melhores para os problemas das pessoas. E que os modos deles de quebrar as regras, na verdade, vão piorar os problemas e produzir mais corrupção, mais violência. Para fazer isso, você precisa realmente oferecer soluções. E alguns líderes estão tentando fazer isso. Alguns estão até fazendo isso de forma eficaz. Mas não é suficiente ter a posição de advogado da democracia ou advogado das regras e ser apenas um defensor disso. Eu também acho que são necessárias regras para a esfera digital. É fundamental, porque é um campo de jogo e ele não tem regras, e você não pode jogar em um campo que é apenas uma selva, onde só a agressão e o extremismo são recompensados. Então, então você precisa fazer duas coisas: você precisa ter soluções para os problemas das pessoas no mundo real, mas também precisa impor regras para o mundo digital. Eu acho isso muito importante.
No livro, em texto escrito em setembro do ano passado, você prevê que uma vitória eleitoral de Trump “levaria à completa extinção dos embaixadores de carreira”. Quase um ano depois, você acredita que sua previsão se concretizou?
Infelizmente, estamos vendo isso. Aqui em Paris, ele enviou o pai que, na verdade, era um condenado — mas o pai do seu genro, Jared Kushner — Charles Kushner é o novo embaixador americano em Paris. Já da primeira vez, em 2016, ele praticamente só nomeou amigos e financiadores de campanha como embaixadores praticamente em todos os lugares, e agora ele está fazendo isso ainda mais. Mas isso em si não é uma coisa tão grande. Eu usei isso no livro para falar, de certa forma, do declínio da diplomacia e dessa insurgência de um modo muito mais musculoso, violento, agressivo e também corrupto de lidar com as relações internacionais. Isso está totalmente em exibição agora com o Trump, de todas as formas possíveis.
No capítulo ambientado em Berlim, você diz que os advogados ainda não entenderam que uma pequena disputa entre Trump e Musk não vai mudar o jogo. Como você explicaria isso? Existe uma tendência geral de comportamento à la Musk no setor de big tech que não se limita ao executivo da Tesla?
Meu livro é muito feito de cenas. Eu tentei construir assim para que os leitores também fossem imersos em algumas situações. Mas a linha comum e a história que eu conto é basicamente esse tipo de amadurecimento político da tecnologia.
Eles começaram há 30 anos, você via aqueles jovens com seus moletons, pareciam meio que garotos legais. Então, eles começaram a ganhar muito dinheiro e você pensava: ‘bem, é só negócio’. E então vira um negócio muito grande, mas você ainda pode pensar que é só um negócio. E eu acho que agora estamos começando a entender que não é isso, é um novo modelo, basicamente uma mudança de regime em termos políticos. Uma forma diferente de governança, de tomada de decisões, de governar sociedades humanas, e está cada vez mais claro que isso tem um impacto político muito grande — e antes isso era implícito. Eu falo no livro sobre o fato de que, antes de Musk e Trump, você já tinha Eric Schmidt, o chefe do Google, que teve um papel muito importante na reeleição do Obama em 2012, mas ninguém percebia isso. Quero dizer, ele era muito discreto. Ele fingia que não tinha papel político e ele estava com o ‘cara bom’, o Obama, então todo mundo estava feliz. E hoje você vê o “casal” Musk e Trump, que agora se desfez, mas foi a primeira vez que vimos, basicamente, um oligarca da tecnologia quase no mesmo nível que o presidente. E mesmo que eles tenham brigado, e isso era previsível, estamos vendo cada vez mais o papel político da tecnologia e a escolha explícita que muitas pessoas da tecnologia estão fazendo de apoiar abertamente extremistas predatórios na política, porque de certa forma, os interesses deles estão alinhados. Eles também são outsiders. Eles querem se livrar do sistema antigo. Eles querem se livrar do establishment, da velha classe política. E a coisa mais importante é que eles não querem regras. Eles não querem ser limitados por nenhum tipo de regra. Objetivamente, predadores políticos e oligarcas da tecnologia são aliados.
Você acredita que essa oligarquia da tecnologia pode explicar a proximidade entre governos que não são culturalmente semelhantes, como Mohammed bin Salman e Trump, Bukele, Orbán dentre outros?
Minha ideia basicamente é que o que acontece é que as nossas democracias e a nossa conversa pública, o espaço público, estão cada vez mais se deslocando para a esfera digital. E decidimos que não podíamos realmente regulá-la. Houve tentativas na Europa, no Brasil também, mas com sucesso limitado, digamos. Então, basicamente, como essa esfera digital é uma esfera onde o agressor é recompensado, onde a agressividade é recompensada, onde ideias e posições extremas são recompensadas, onde o uso da força é recompensado mais do que qualquer outra coisa e há uma ação hipnótica constante, você tem um novo tipo de figura política que emerge disso, e elas são muito mais agressivas do que aquelas que tínhamos antes.
Em relação à sua comparação entre a inteligência artificial e “O castelo”, de Kafka, podemos entender que haverá uma relação mais distante entre as pessoas e os governos? Uma falta de compreensão da relação entre eleitores e o poder, e a criação de uma relação de crença irracional nos governantes?
Sim, porque basicamente o que o pessoal da IA nos diz é que, mesmo quando a IA evolui, todo o sistema é construído de uma forma que você não consegue realmente rastrear o processo de decisão, você não consegue realmente descobrir por que uma decisão foi tomada de um jeito ou de outro. O que você pode fazer é, basicamente, rastrear e descobrir que a decisão é cada vez mais eficiente, que há cada vez menos erros, que ela é cada vez mais pontual e apropriada. E isso é exatamente o oposto da democracia, no sentido de que democracia compreende rastrear o processo de decisão, incluir as pessoas na decisão, ter um processo transparente — quando funciona, idealment. Na democracia, o processo de tomada de decisão é muito claro e então, e então a decisão pode ser boa ou ruim. Frequentemente não é a decisão mais eficiente, mas é uma boa decisão porque você sabe que ela foi tomada democraticamente. A IA é basicamente o oposto. A decisão supostamente é eficiente e boa, mas você não sabe nada sobre como se chegou a essa decisão.
É complicado no sentido de que vamos precisar usar IA em algumas áreas, mas também precisamos saber que, basicamente, sempre que a usamos, perdemos o controle e perdemos uma forma de responsabilização e de transparência, e portanto também de legitimidade. Então, onde está o limite?
Acho que cada sociedade tem que decidir, mas é importante fazer essa escolha, não apenas estar em um processo em que se acha que é automático e simplesmente se chega às respostas. É um verdadeiro desafio democrático e de poder. Não é apenas uma decisão técnica. É realmente algo importante em termos da nossa democracia.
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Na sua opinião, vai demorar muito para encontrar esse limite?
Eu sou relativamente otimista quanto a isso. Nem sempre é fácil, mas é por isso também que fico feliz que o livro esteja sendo lançado no Brasil, porque acho que é um dos países do mundo onde o debate e também as ações nesse campo estão mais avançados. Na Europa isso também acontece, em parte. Agora há o risco de que a gente ande para trás. Há uma postura muito agressiva sendo adotada pelo governo dos Estados Unidos em relação à regulação da tecnologia. Basicamente, o que eles estão dizendo é que, se a gente regula a tecnologia, nos tornamos inimigos deles. Isso é, fundamentalmente, o que eles estão dizendo. Então, isso é algo que pode assustar alguns na Europa e talvez no Brasil também. Mas precisamos resistir a isso e precisamos encontrar nosso próprio caminho e é totalmente possível. Não é um problema técnico. Todas as soluções técnicas estão aí. É só uma questão de tomar a decisão, de ter um debate sobre isso e tomar uma decisão política.
“A hora dos predadores”
• De Giuliano da Empoli
• Tradução de Julia da Rosa Simões
• Vestígio
• 128 páginas
• R$ 59,80