Como um ex-combatente dos EUA tornou-se um pacifista
No livro "A bomba", o historiador Howard Zinn, que participou da Segunda Guerra Mundial, diz que a maioria não entende a "realidade cruel" do bombardeio aéreo
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Siga noEram cerca de 3 horas da manhã quando Howard Zinn acordou no dia 14 de abril de 1945 na base aérea de Anglia Oriental para sua última missão de bombardeio pelos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Junto a outros combatentes, entrou em um caminhão com destino às salas de instrução e então foi informado que eles atacariam uma guarnição de alemães que estavam instalados em Royan, pequeno vilarejo de férias na Costa Atlântica da França, perto do porto de Bordeaux.
A princípio, era apenas mais uma missão contra o regime nazista desde que a guerra havia começado, em 1939, e que contava com o esforço militar dos EUA desde 1941. O problema era encontrar uma justificativa para o ataque na França. Havia pouco mais de dez meses, as forças aliadas desembarcaram na Normandia, e em alguns dias estariam nas ruas de Berlim – três semanas depois a guerra na Europa chegaria ao fim.
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“Certamente não havia razão para um novo bombardeio, nem mesmo a justificativa grosseira de ‘necessidade militar’. (...) Os alemães não estavam atacando o local – apenas esperavam sentados pelo fim da guerra, mas nós acabaríamos com eles”, lembra Zinn na introdução do livro “A bomba”, lançado pouco depois da sua morte, em 2010, como parte da série Open Media, da editora norte-americana City Lights, e que chega ao Brasil pelo Manjuba, selo de não ficção da editora Mundaréu.
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Howard Zinn nasceu em Nova York, em 1922. Na juventude trabalhou em um estaleiro e, logo depois, foi incorporado à força aérea estadunidense. Após a Segunda Guerra, obteve um doutorado em história pela Universidade de Columbia, foi bolsista de pós-doutorado em Estudos do Leste Asiático em Harvard e lecionou Ciência Política na Universidade de Boston até se aposentar, em 1988. Com mais de 40 livros, foi um dos principais intelectuais dos EUA, ativista e fiel aliado dos movimentos em prol da paz e antiguerra.
“A bomba” é um forte relato histórico de alguém que viveu a Segunda Guerra Mundial e se tornou um importante pacifista após o fim do conflito. Não se trata de falar apenas sobre os horrores dos combates, até porque o autor reforça a posição de impessoalidade de quem solta bombas a nove quilômetros do chão, mas é um reforço da incoerência que leva o massacre de civis e soldados rendidos mesmo quando a guerra na prática estava vencida. A obra de Zinn é um manifesto contra a hipocrisia de quem detém o poder para decidir quem vive ou quem morre.
Logo de início, o historiador ressalta um dos seus principais argumentos ao dizer que “a maioria das pessoas não entende a realidade cruel de um bombardeio aéreo”. “Uma operação militar desprovida de sentimentos humanos, um evento noticioso, uma estatística, um fato a ser digerido rapidamente e então esquecido. Na prática, o mesmo acontece com as pessoas responsáveis por soltar as bombas – pessoas como eu, um artilheiro sentado no nariz de acrílico de um B-17 que opera a mira, observando flashes de luz lá embaixo enquanto as bombas explodem, sem ver nenhum ser humano”, escreveu.
A obra se divide entre dois ensaios que somam 96 páginas: “Hiroshima: quebrando o silêncio” e “O bombardeio de Royan”. O primeiro relata o lançamento da bomba atômica em Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945, quando 140 mil pessoas morreram pelos efeitos da chamada “little boy”, missão da qual Zinn não teve participação. O segundo fala sobre o uso de 1.300 B-17 Flying Fortress para lançar 460 mil galões de fogo líquido em um vilarejo de 20 mil habitantes – era a primeira vez que o napalm seria utilizado em situação de guerra.
“Hiroshima e Nagasaki foram terrorismo”
Quando a guerra na Europa terminou, em maio de 1945, Zinn e a tripulação do seu bombardeiro voaram de volta para os Estados Unidos com uma licença de 30 dias para reencontrar os familiares antes de seguir para o Pacífico e participar de missões no Japão. O historiador lembra que um dia decidiu ir para o campo junto com a esposa, Roslyn, no meio do caminho pegou um jornal em uma banca e leu a manchete: ‘Bomba atômica lançada em Hiroshima’.
“Lembro da nossa reação: nós ficamos felizes. Não sabíamos o que era uma bomba atômica, mas, sem dúvida, era algo grandioso e importante que sinalizava o fim da guerra contra o Japão; e se isso acontecesse, eu não seguiria para o Pacífico e em breve poderia voltar para a casa em definitivo”.
Segundo Zinn, o choque de compreensão veio anos mais tarde quando leu as reportagens de John Hersey, um dos primeiros jornalistas americanos a chegar a Hiroshima e entrevistar sobreviventes do ataque. “As reportagens me fizeram pensar em minhas próprias missões de bombardeio, e em como lancei bombas despreocupadamente sobre cidades sem pensar no que os seres humanos lá embaixo estavam vivenciando”.
Para o historiador, apenas as cenas de horror relatadas pelos seis sobreviventes entrevistados por Hersey permitem julgar os argumentos usados para defender o uso da arma nuclear contra civis japoneses, uma vez que continuam a circular para que o poder organizado do Estado continue perpetrando atrocidades. Nessa linha, Zinn classifica os ataques ao Japão como terroristas.
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“Se a palavra ‘terrorismo’ tem um significado útil (e acredito que tenha, porque define como intolerável um ato que envolva o uso indiscriminado de violência contra seres humanos para um propósito político), ele se aplica com exatidão aos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki”, disse.
O ensaio “Hiroshima: Quebrando o silêncio” foi publicado pela primeira vez em junho de 1995, perto do aniversário de 50 anos do bombardeio atômico. Agora, quase 80 anos depois que o Enola Gay atravessou o céu japonês para lançar “little boy”, ele se torna mais atual do que nunca.
No momento em que potências militares como Estados Unidos e Israel atacam o Irã sob o argumento de que a república islâmica estava próxima de desenvolver armamento nuclear, a leitura de Howard Zinn nos confronta com uma questão pertinente: por que um país pode deter o poder de matar mil hares de inocentes instantaneamente?
É uma questão moral à qual o historiador dedicou a sua vida. Ele explica que durante o conflito era fácil responder tendo em vista que a brutalidade do fascismo era inquestionável, o que causa um problema argumentativo se considerarmos que o inimigo sendo inquestionavelmente mal, nós seríamos inquestionavelmente bons. Para Zinn, o problema está no pronome “nós”, que confunde a consciência individual dos cidadãos com as motivações de estado.
Os Estados Unidos foram levados à guerra após o ataque a Pearl Harbor, mas informes já mostravam um ano antes que a expansão do império japonês no Pacífico ameaçava o acesso a materiais importantes como estanho, borracha e petróleo. A ilusão de que norte-americanos e soviéticos entraram na guerra pelo bem moral comum acabou quando no pós-guerra as duas potências enviaram seus exércitos para dividir o mundo em dois.
No caso dos ataques atômicos em Hiroshima e Nagasaki, após o fim da guerra na Europa, o Japão já demonstrava claro interesse em uma rendição negociada mantendo apenas a posição do seu imperador. Novamente, era questão de tempo para o fim do conflito, porém, os Estados Unidos queriam uma rendição incondicional. Para Zinn, a ideia sugere que o país estava mais interessado em demonstrar seu arsenal atômico do que encerrar a guerra o quanto antes. “É possível compreender o assassinato de 200 mil pessoas para fazer valer o poderio americano?”, indagou Zinn.
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Documentos mostram que o presidente Harry Truman foi aconselhado de que usar a bomba daria aos Estados Unidos a possibilidade de ditar o fim da guerra e marcar posição sobre a União Soviética, o que explica a pressa para atacar em agosto, dias antes da data marcada para o exército vermelho entrar na guerra no Pacífico. Ao ser informado do ataque, Truman disse: “É o maior acontecimento da história”.
Ao falar sobre a bomba de Nagasaki, Zinn tece observações sobre a moral por trás dos cientistas do Projeto Manhattan. Chamada de “Fat Man” esse artefato funcionava ligeiramente diferente com plutônio ao invés de urânio, mas era igualmente mortal – 70 mil pessoas morreram instantaneamente no bombardeio. O historiador ressalta que operações militares já foram realizadas para testar novos armamentos, e vidas humanas sacrificadas pelo “progresso tecnológico”.
Zinn acredita que os cientistas da equipe de Robert Oppenheimer não fizeram as perguntas necessárias sobre o uso da bomba, pelo contrário, ele cita o historiador Michael Sherry que descreveu o ambiente de trabalho em Los Alamos como de “fanatismo tecnológico”. Alguns cientistas demonstraram um arrependimento como Leó Szilárd que chamou o uso da bomba atômica de “uma das maiores cagadas da história”, mas não era o mesmo que confrontar a questão.
No fim, o principal argumento que precisava ser rebatido era que foram os japoneses que iniciaram a guerra, fundamentado em xenofobia e no clima de retaliação, “como se as crianças de Hiroshima tivessem bombardeado Pearl Harbor”. Argumento que Zinn, que morreu em 2010, classifica como “rasteiro e brutal”.
“O argumento estratégico, que eu e outros historiadores tentamos rebater apontando indícios de que não havia necessidade militar de usar a bomba, não basta. Precisamos confrontar a questão moral de forma direta: existe ‘alguma necessidade’ militar-político-estratégica capaz de justificar os horrores impostos a centenas de milhares de seres humanos pelos bombardeios em massa das guerras modernas? Se a resposta for não, como acredito que seja, o que podemos fazer para nos libertarmos do pensamento que nos faz cruzar os braços (sim, como fizeram os alemães, como fizeram os japoneses) enquanto atrocidades são cometidas em nosso nome?”
“Uma operação militar desprovida de sentimentos humanos, um evento noticioso, uma estatística, um fato a ser digerido rapidamente e então esquecido. Na prática, o mesmo acontece com as pessoas responsáveis por soltar as bombas – pessoas como eu, um artilheiro sentado no nariz de acrílico de um B-17 que opera a mira, observando flashes de luz lá embaixo enquanto as bombas explodem, sem ver nenhum ser humano”
Howard Zinn (1922-2010), em “A bomba”
Entrevista/ Greg Ruggiero
(Editor da Seven Stories Press)
“Um belo mundo sem bombas é possível”
Autor do prefácio “Pequenos e grandes atos de rebelião”, Greg Ruggiero colaborou com Howard Zinn desde que se conheceram em 1991. Juntos, publicaram dezenas de ensaios que viriam a se tornar livros na Open Media series como “Power, History and Warfare” (1991) e “Columbus, the Indians and Human Progress” (1992). Ruggiero também trabalhou com outros importantes intelectuais, como Noam Chomsky e Angela Davis.
Em entrevista ao Estado de Minas, ele destaca que Zinn foi um grande humanitário que tinha como resposta a violência em massa, a desobediência civil e a construção de movimentos sociais, acreditando no poder da pessoa comum. “Zinn nos incentivou a nos encontrarmos, a nos conectarmos, a protestarmos e a construirmos instituições alternativas para tornar o mundo um lugar melhor.” Leia a seguir a entrevista com Greg Ruggiero.
O senhor menciona Zinn como intelectual pacifista. Pelo que você conhecia dele, como a experiência na Segunda Guerra Mundial podem ter influenciado a carreira de historiador e ativista?
Howard Zinn não foi apenas um grande intelectual. Ele foi um grande humanitário, tão influenciado por sua educação na classe trabalhadora das “favelas de imigrantes do Brooklyn” quanto por sua experiência na Segunda Guerra Mundial. Sua origem humilde foi provavelmente a verdadeira fonte de sua convicção de que todos importam, independentemente da situação financeira da família, origem cultural ou raça. O senso de solidariedade de Zinn com os oprimidos lhe proporcionou a mais profunda fonte de percepção e compreensão — a lente através da qual ele interpretou o massacre que testemunhou na Segunda Guerra Mundial e os movimentos de justiça social que surgiram posteriormente nos Estados Unidos.
Nos últimos anos, temos visto as chamadas guerras contra o terrorismo serem usadas como justificativa para invasões como as do Afeganistão e do Iraque pelos Estados Unidos e a Faixa de Gaza por Israel. O terrorismo ampliou a justificativa para ataques a civis?
Rótulos contemporâneos de “terrorismo” são frequentemente usados para justificar ataques a civis, mas a matança de civis pode estar acontecendo com menos frequência no Ocidente do que nunca. Por exemplo, Angela Davis cresceu em uma região de Birmingham, Alabama, chamada “Dynamite Hill”, devido à alta frequência de atentados perpetrados por brancos contra famílias negras. Até os movimentos pelos direitos civis das décadas de 1950 e 1960, o terrorismo branco contra comunidades negras era normal. Embora a polícia vise mais pessoas de cor do que brancos, linchamentos, violência de multidões e atentados a bomba contra civis não são mais tolerados. Apesar disso, os séculos de atrocidades perpetradas contra negros e nativos americanos não são geralmente ensinados e lembrados como terrorismo e genocídio, e os legados da supremacia branca ainda estão por toda parte ao nosso redor. Por exemplo, a antiga fazenda de escravos do notório matador de índios, Andrew Jackson, é anunciada hoje como um “belo” lugar de “encantamento”. Zinn defendeu a resposta de Henry David Thoreau e Martin Luther King às atrocidades do poder: desobediência civil e construção de movimentos. Zinn encontrou inspiração e poder em pessoas comuns que aboliram a injustiça com a não violência em massa.
Durante a Guerra Fria, o mundo temia uma escalada para a Terceira Guerra Mundial. Agora, estamos presenciando uma nova guerra na Europa com o conflito entre Ucrânia e Rússia, e no Oriente Médio os ataques entre Israel e Irã, reforçados recentemente pelos EUA. Acredita que um conflito de proporções globais está mais próximo do que as pessoas imaginam?
Sim. Como Carl Sagan disse certa vez: “Imagine uma sala inundada de gasolina, e há dois inimigos implacáveis nessa sala. Um deles tem 9.000 fósforos, o outro tem 7.000 fósforos. Cada um deles está preocupado com quem está na frente.” Agora temos Israel, Coreia do Norte, Paquistão, Índia, França, China, Reino Unido, EUA e sabe quem mais com gasolina até o pescoço lutando por mais fósforos. Ao mesmo tempo, também temos economias ecocidas e uma corrida para criar inteligência artificial “agente”, que também representam ameaças existenciais. Todos os três parecem estar fora do nosso controle, mas Zinn argumentaria o contrário. Howard argumentaria que cabe a você e a mim fazer algo a respeito por meio de organização, protesto, rebelião e mudança coletiva consciente. Podemos fazer a diferença.
Fala-se que o potencial destrutivo das armas nucleares é o que impede seu uso. Ao mesmo tempo, isso é usado como justificativa para que os países não se desfaçam de seus arsenais. Como o senhor avalia os argumentos usados para mantê-las?
Zinn defende que trabalhemos juntos para desnormalizar a causa subjacente ao desenvolvimento de tais armas: o nacionalismo. Ele nos perguntou: “O nacionalismo — aquela devoção a uma bandeira tão feroz que gera assassinatos em massa — não é um dos maiores males do nosso tempo, juntamente com o racismo e o ódio religioso?” Israel está atualmente usando a fome em massa como arma contra milhões de palestinos. Zinn apontaria que o problema não seria resolvido fornecendo comida às famílias que estão sendo vítimas da fome israelense, mas abolindo o nacionalismo, o racismo e o ódio religioso que tornam o genocídio aceitável. Até que cheguemos à raiz da intolerância, crimes contra a humanidade, como as atrocidades de israelenses contra famílias palestinas, continuarão. Nos Estados Unidos, cidadãos comuns têm permissão para obter armas, e temos um nível obsceno de violência como resultado. As pessoas costumam dizer que obtêm uma arma para se proteger, mas a maior parte da violência relacionada a armas não é em legítima defesa. A mesma lógica falha é usada por nações para o desenvolvimento de armas de destruição em massa. Não há razão sensata para desenvolver, possuir ou usar essas armas.
O senhor acredita que os líderes mundiais estão se tornando mais insensíveis às guerras? Ou acredita que a própria sociedade está se tornando mais insensível?
Acredito que as populações dos países desenvolvidos estão se tornando mais sensíveis, não menos. Uma certa parte de cada população tem consciência e age de acordo com ela para organizar a resistência. Essas são as pessoas cujas histórias e trajetórias Zinn adorava compartilhar. Zinn frequentemente falava sobre nossa responsabilidade de romper com a doutrinação e nos unir a movimentos. Ele adorava apontar o quanto de bem poderíamos fazer se parássemos de desperdiçar dinheiro com armas e guerras e, em vez disso, usássemos o recurso em educação, saúde e no desenvolvimento do bem-estar coletivo. Até que isso aconteça, Zinn nos incentivou a nos encontrarmos, a nos conectarmos, a protestarmos e a construirmos instituições alternativas para tornar o mundo um lugar melhor. Como Zinn disse em “A bomba”, tornar o mundo um lugar melhor “significa agir de acordo com o que sentimos e pensamos, aqui e agora, pela carne e pelos sentidos humanos, contra as abstrações do dever e da obediência”. Nas palavras de Paulo Freire, isso também significa que “os oprimidos não devem, ao buscar recuperar sua humanidade (que é uma forma de criá-la), tornar-se, por sua vez, opressores dos opressores, mas sim restauradores da humanidade de ambos”. Qual é o mundo belo que tantas pessoas lutam para criar? Um belo mundo sem bombas, onde casas não sejam destruídas, onde crianças vão à escola e brincam no pátio sem perder um braço ou a vida é possível. Até que todos vivamos nesse mundo, precisamos de intelectuais como Angela Davis, Paulo Freire e Howard Zinn para nos educar e inspirar a continuar caminhando, marchando, resistindo, amando e nos organizando.
“A BOMBA”
• De Howard Zinn
• Tradução de Bruno Cobalchini Mattos
• Manjuba
• 96 páginas
• R$ 56