Alícia Penna conta como nasceu o livro, que terá lançamento neste sábado
O livro "Na cidade brasileira entre os séculos XIX e XX" nasceu de debates em sala sobre desigualdade e lutas por terra e moradia
compartilhe
Siga noAlícia Duarte Penna
Especial para o EM
O livro “Na cidade brasileira entre os séculos XIX e XX - periferias e centros, pobrezas e riquezas” começou a nascer em sala de aula, quando estudantes e professora debruçados sobre a urbanização brasileira implicamos com o fenômeno “desigualdade”. O gatilho veio de um aluno que, aborrecendo-se, perguntou: Mas qual desigualdade, professora? A resposta foi buscada com o que tínhamos em mãos e na cabeça, mas algo – o que, exatamente? – ficara faltando. Mais perguntas saíram daquela, e mais foram saindo dessas enquanto em bando trabalhávamos, na mesma escola, com grupos sociais organizados em luta por terra e por moradia.
Logo, a cornucópia de perguntas sobre a urbanização brasileira desigual virou um projeto de doutorado. Com a orientadora do mestrado, Heloisa Costa, voltei ao Instituto de Geociências da UFMG para reencontrar a teoria crítica, sem a qual, como sintetizaria outro aluno, também se aborrecendo: “Parece que estamos fazendo uma arquitetura de papel!”, isto é, que supõe arquitetar num cenário, não num drama – o das relações sociais de produção. Não sem razão, o livro saído daquela cornucópia traz, do Henri Lefèbvre, a dramática, e sem exagero algum, epígrafe: “A produção do espaço não é um incidente de percurso, mas uma questão de vida ou morte.”
Leia Mais
A tarefa era não somente responder a perguntas que iam sendo reformuladas à medida que se buscavam respostas, mas encontrar um modo de fazê-lo que nos permitisse apreender dramaticamente o espaço, o nosso, e sua história, a qual, para nós, só poderia ser uma geografia. Explico. Quem alguma vez já se debruçou sobre a história da cidade brasileira, com certeza se deparou com expressões tais como “cidade republicana” ou “cidade comercial” etc, períodos estabelecidos quer segundo a política, quer segundo a economia, e não segundo o espaço, que à economia e à política estaria subordinado. Ora, ocorre que ele mesmo, espaço, diferente do que aquelas periodizações pressupõem, é também uma força, fundindo, em si, economia & política. Vejamos nesta página a cena, fotografada por Marc Ferrez no Rio de Janeiro, em 1875. Ao fundo, o que se deixa ver, docilmente, é um mercado. “Cidade comercial” é suficiente para designar essa cidade? Como nomeá-la, então?
- UFMG sobe no ranking de melhores universidades do mundo; confira
- Saiba como o Cefet-MG também virou polo literário
- Brad Pitt muda hábitos de higiene a pedido da nova namorada
Não seria o caso, porém, de botar fora isso que havia sido pesquisado e publicado sobre a cidade brasileira, à época um abundante isso, do qual, por exemplo, duas pesquisadoras haviam extraído, só sobre as favelas cariocas, 688 títulos. Também não seria o caso de acrescentar, a esses e outros, mais um, sob mais um micro-recorte, ainda que cirúrgico, espaço-temporal. Ao contrário, seria o caso de valer-se d’isso, reunindo em diálogo títulos (e seus autores) de diferentes áreas do conhecimento, na tentativa de abranger um universo de seis cidades – Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo –, atravessando-se um século. Além d’isso, com certeza precisaríamos da fotografia, mas também da literatura e da memória oral, capazes de restituir algo daquele onde em que estiveram escritores, narradores e fotógrafos, e não puderam pesquisadores estar.
Fontes assim nos permitiriam abrir cada realidade a uma primeira, a um aí. Aí, a lavação de roupas é também descer, subir, carregar água, carregar roupa, brigar, topar com a rapa. Aí, a expressão das crianças parece indicar esforço, e também satisfação ao fazer rolar o barril de água? A gambiarra e seu nome, “rola-rola”, não sugerem uma brincadeira? Aí, a casinha fora de casa faz de “lavar o rosto e satisfazer as exigências do organismo” também um ritual de escape: dentro de casa não há “nada”.
Menos do que isso não sustentaria as hipóteses que àquela altura eram três para uma só tese. Por nos impormos tamanha tarefa, no exame de qualificação (há um, antes da banca final) a última pergunta partiu da orientadora, dirigindo-se à banca: “Mas, afinal, vocês consideram isso uma loucura, ou não?” A resposta, negativa, era o que faltava para prosseguirmos na aventura. Ao final dela, esboçamos a tal periodização histórica orientada ao espaço, indicando as correspondências entre estruturas intraurbanas, vidas (mortes) na cidade e modos de produção no Brasil entre os séculos 19 e 20.
Defendida a tese, indicada para publicação, aprovada por um conselho editorial, subtraído do texto original - nascido ensaístico - a outra tese que se desenvolvia nos pés-de-página, negociados os direitos de imagens, escritos o prefácio, as orelhas e a quarta capa, uma última revisão, uma aquarela, uma capa, um projeto gráfico, a impressão etc etc etc: eis o livro. Só posso esperar que, ao lê-lo, sintam-se como me senti ao tocar na questão de vida ou morte.
ALÍCIA DUARTE PENNA é poeta, arquiteta e doutora em Geografia Urbana
Meneses foi para casa, sem pensar no que havia prometido; e, como guiado por
instinto, subiu e desceu morros, tomou atalhos e acabou se deitando muito naturalmente
no seu miserável canapé. Não quis comer; a embriaguez lhe havia tomado inteiramente.
Despertou no dia seguinte, sem saber o que tinha feito nas últimas horas em que
estivera fora. Lembrava-se vagamente que parara no botequim habitual. Tendo saído
para fora de casa, a fim de lavar o rosto e satisfazer as exigências do organismo,
quando voltou, já encontrou sua irmã de pé a lhe dizer, como quase todas as manhãs:
Não temos nada em casa, Juca.
Trecho de “Clara dos Anjos”, de Lima Barreto.
“Aí eu tinha que saí como lavadeira, pegava roupa e era muito difícil, porque aqui
num tinha água pra lavá. Tinha uma biquinha lá embaixo no Serra Negra, e hoje já
não existe mais, já foi muito tempo, tudo asfaltado, aí acabou. Então a gente pagava
para buscá água, lavava roupa na biquinha e era o maior sacrifício. Eu tinha duas
lavage de roupa e pegava água na cabeça, era aquela confusão toda, né? E muita
briga no torneirão, a “rapa” vinha três ou quatro vezes por dia. A radiopatrulha. Eles
chamava “rapa”. E tinha muita briga entre as mulher lá. Umas dizia: – Eu vou enchê
agora, no peito e na raça.”
Depoimento de Maria de Lourdes de Araújo, apud Adão Soares, Sueli Alves Antunes (org.), “Pedreira Prado Lopes: memórias” (editora Mazza)
“Na cidade brasileira entre os séculos XIX e XX: periferias e centros, pobrezas e riquezas”
• De Alícia Duarte Penna
• Editora UFMG
• 278 páginas
• R$ 64
• Lançamento neste sábado, a partir das 11h30, na Livraria Scriptum (Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi, BH)
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia