Três anos após o lançamento de “O invencível verão de Liliana” no Brasil, a tradução de “Autobiografia do algodão” para o português oferece ao leitor acesso à uma nova empreitada da mexicana Cristina Rivera Garza, ainda mais ousada e criativa que no primeiro título.

Ambas as obras publicadas pelo selo Autêntica Contemporânea oferecem uma instigante reflexão sobre a forma de produção escrita ao se aventurar por diferentes gêneros de narrativa e se debruçar sobre a relação entre o escritor e seu ofício sem nunca deixar em segundo plano a eficiência em contar a história proposta: no primeiro caso o feminicídio da irmã da autora e, no segundo, o apagamento da história dos habitantes da fronteira do país latino com os Estados Unidos, também perpassada pela experiência familiar de Garza.

Em “Autobiografia do algodão”, Garza faz uma sucessão de incursões não cronológicas no tempo para contar como a história de sua família se entrelaça com uma histórica greve de trabalhadores do campo no norte do México nos anos 1930. Através de arquivos, telegramas, viagens a povoados fantasma à la Juan Rulfo e, principalmente, pelas páginas do romance “El luto humano”, de José Revueltas, o livro narra a ascensão e o ocaso das plantações de algodão na fronteira com os Estados Unidos e suas infindáveis implicações sociais.

A jornada pela descoberta da história de sua família acaba por desvelar várias informações inéditas para a autora, que narra sua própria reação ao escrever o livro em uma metalinguagem que Garza defende como conceito de uma literatura produzida de forma coletiva, construída com a percepção de quem faz parte da história.

No caminho ela descreve sobre as relações de gênero em uma sociedade em que o ‘casamento por rapto’ - situação vivida pelos avós de Cristina Rivera Garza - era comum; a historicamente conflituosa relação entre México e os EUA; a violência no apagamento da história dos trabalhadores do algodão, da greve e, agora, na epidemia de crimes causada pelo domínio do narcotráfico na região; e a redesignação dos indígenas como operários.

Assim como quando discutiu a importância da linguagem ao tratar sobre o termo ‘feminicídio’ e ter como o base o crime que vitimou sua irmã em “O invencível verão de Liliana”, Garza repete a dose ao ter em sua família o fio condutor para contar uma história rica em detalhes, interpretações e tipos de texto que variam entre o arquivo, o relato, as fotos e a prosa literária.

“Eu acho que o importante dessas diferentes pesquisas não é só ir ao passado para documentá-lo, mas, desde o presente, fazer perguntas que nos convidem a reativar essas forças do passado que em muitos casos foram subjugadas ou derrotadas, mas que permanecem em suspenso”, afirma Garza, em entrevista ao Estado de Minas. 

Uma boa forma de compreender os princípios da escrita da vencedora do Prêmio Pulitzer de 2024 está na coletânea de ensaios de Rivera Garza em “Os mortos indóceis: Necroescritas e desapropriação” (WMF Martins Fontes, 2024). Em suas elucubrações sobre a literatura, a mexicana apresenta discussões interessantes como na série de questionamentos reproduzidos a seguir em perguntas que ela mesma responde em obras como “Autobiografia do algodão”.

“Você diz que o passado se instalou no poder, mas ainda fala da originalidade como bastião literário? Preocupa-se com o estado de coisas, mas, quando escreve, acha que a estética não combina com a ética? Está disposto a transformar o mundo, mas, quando narra, faz o sinal da cruz diante da divina trindade início-conflito-resolução? Diverte-se escrevendo como um louco ou uma criança, mas chama isso de exercícios ou apontamentos e nunca de ‘literatura’? Você é um ás nas redes e faz muito copy-paste, mas, quando narra, sua única preocupação é a verossimilhança? Quer mudar tudo, mas acha que o texto publicado é intocável? Questiona a autoridade, mas se dobra diante da autoria? Em resumo: você é contra o estado de coisas, mas continua escrevendo como se na página nada estivesse acontecendo?”, provoca.

Às vésperas de vir ao Brasil como convidada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Cristina Rivera Garza concedeu entrevista ao Pensar do Estado de Minas. Entre outros temas, a autora de “Autobiografia do algodão” explica sobre seus métodos de escrita, defende a participação do escritor como um personagem do trabalho literário e projeta a importância da atual geração de escritoras na América Latina.

ENTREVISTA

Em “Autobiografia do algodão”, assim como em “O invencível verão de Liliana”, a senhora se aprofunda em documentos complexos, não apenas por serem difíceis de encontrar, mas porque fazem parte da história de sua família e são marcados por passagens traumáticas. Como foi voltar a se debruçar sobre este arquivo e quais as diferenças no trabalho para a “Autobiografia do algodão”?

Foi um trabalho de pesquisa de muitos anos. Passei um tempo em arquivos institucionais, em arquivos do estado de Tamaulipas, arquivos também familiares, fiz pesquisa de campo também. Trabalhei com documentos estatais, documentos civis, também em diferentes ramos do arquivo, eu acho que isso é importante também, questões que tinham a ver com distribuição de ‘tierras ejidales’, com mobilizações camponesas e de agricultores e, como explico no livro, inclusive com uma seção bastante heterodoxa de telegramas sociais que se enviavam de diferentes instâncias do governo. Também fiz pesquisa de campo com viagens pela região que me permitiram fazer entrevistas, como antropólogos e etnólogos fazem regularmente para seu trabalho.

Tudo isso foi entrelaçado também com conversas com membros da minha família e isso faz parte do trabalho da escrita, do trabalho literário. Trata-se aqui, é claro, de fatos traumáticos graves tanto em termos da história comunitária e social quanto da familiar e pessoal.

Eu acho que o importante dessas diferentes pesquisas não é só ir ao passado para documentá-lo, mas, desde o presente, fazer perguntas que nos convidem a reativar essas forças do passado que em muitos casos foram subjugadas ou derrotadas, mas que permanecem em suspenso.

Acho que o trabalho da pesquisa e também da escrita é fazer com que muitas dessas forças que permanecem em suspenso floresçam de novo, façam parte do nosso discurso e da nossa ação contemporânea.

Ainda sobre a forma da escrita, em ambos os livros publicados no Brasil, a senhora narra também o processo de escrita, como foi encontrar o material de pesquisa e discute o que sentiu em vários momentos. Como se dá essa escolha por narrar no próprio livro o seu processo de escrita?

Usualmente, quando você frequenta ou assiste a cursos de escrita mais tradicionais, uma frase que se repete muito é que — não sei se isso acontece no Brasil, mas se diz muito no México — é que não se note a costura no escrito. Isso sobretudo quando se pensa em termos de ficção, que a escrita pareça como que nasceu do nada. 

Eu discuto isso em ‘Mortos indóceis’, tenho me interessado por uma escrita que é exatamente o contrário. Uma escrita, primeiro, que se responsabilize por seu processo de produção, uma escrita na qual se note e se tornem visíveis as marcas dos outros. Por isso me parece importante, nesse sentido, uma escrita na qual se notem as costuras.

Me parece que é importante que o leitor sinta que está lendo algo que foi escrito, não que o leitor ou a leitora entre em algo como se aquilo nunca tivesse sido escrito de fato, como se você estivesse num processo de telepatia. Mas me interessa muito que os leitores estejam cientes das muitas mediações pelas quais a escrita passa para poder se converter no livro que estão lendo.

Há pesquisa, há reflexão, há discussão, há dissenso, há entrevistas, e me parece que é importante, se o que queremos é produzir efeitos de presença nos quais a participação do corpo é importante, que essas mediações nos alertem precisamente para o fato de que a escrita não nasce do nada, de que é uma prática concreta na qual também estão envolvidos corpos concretos com distintos níveis de fricção e de luta.



Em “Autobiografia do algodão”, o livro de José Revueltas (“El luto humano”, livro publicado em 1943 e no qual Revueltas relata sua experiência na greve dos campos de algodão nos anos 1930 como um enviado do Partido Comunista Mexicano) é de grande importância para recordar histórias de difícil rastreamento via documentação oficial. Como a senhora avalia, neste contexto, a importância da literatura enquanto produção de memória e cultura de um povo que pode, a qualquer momento, ser apagado da história?

É fundamental e fico feliz com a pergunta. Como digo no livro, se José Revueltas, então um jovem ativista, militante do Partido Comunista, não tivesse estado em Estación Camarón no início da primavera de 1934, pouco ou nada saberíamos de uma mobilização que deixou sua marca importante no norte do país. Aqui é preciso notar e sublinhar o fato de que a literatura que José Revueltas estava praticando não era a literatura, digamos, consagrada, tradicional, aquela que se aproxima das fronteiras da ficção.

José Revueltas foi um autor que documentou suas ações, aparece como personagem no próprio livro. Estava prestando muita atenção não apenas na vida pessoal de seus personagens, mas na relação com o território.

O livro de Revueltas foi, de fato, muito criticado quando foi publicado. As grandes autoridades literárias do México o consideraram um romance fracassado, entre outras coisas porque envolvia muitos tipos de discursos. Porque não era uma ficção suave.

Esse tipo de livro, que agora chamaríamos de limítrofes ou híbridos ou de difícil categorização, neste caso, foi fundamental para trazer à luz, de maneira esteticamente relevante, uma experiência fundamental na luta da classe trabalhadora no norte do México.



Seu livro narra ainda sobre a gênese dos povoados fantasma como um castigo, “o silêncio e o desaparecimento como castigo”. Explica também como a ancestralidade indígena foi reclassificada a partir de funções de trabalho. De alguma forma, escrever a “Autobiografia do algodão” deu indícios de como evitar que o capitalismo e a violência obliterem completamente a história de um povo?

Para mim, o desvendamento das raízes indígenas da minha própria família foi realmente um dos grandes momentos surpreendentes ao escrever o livro. É uma conversa que não havíamos tido.

As certidões de nascimento dos meus avós paternos indicavam não só que eles eram indígenas de San Luis Potosí, mas que eram integrantes de comunidades indígenas, pois todas as testemunhas cujos nomes aparecem nessas certidões de casamento, todos são descritos como indígenas.

Como digo no livro, depois começa o processo de migração para o norte e, com esse processo de migração, começa também um apagamento que pode ser tanto imposto por parte do Estado, mas também buscado estrategicamente como forma de sobrevivência, inclusive para os meus próprios pais.

Eu acho que aí voltamos à pergunta anterior. Há uma discussão importante no México sobre a questão da mestiçagem, cuja posição oficial hegemônica do Estado tem sido que a mestiçagem ocorreu no México no processo nos anos posteriores à conquista.

Um grupo muito ativo e com evidências pertinentes de historiadores indígenas e não indígenas está discutindo que esse processo de mestiçagem, que se acredita concluído ou consumado durante o processo colonial, não está tão distante assim.

É um processo que continuou e está mais próximo de nós do que acreditamos. Para colocar em contexto, é preciso lembrar que a população indígena no México, depois da conquista, foi dizimada — estamos falando de um genocídio tremendo — mas que durante a época colonial se multiplicou de tal forma que o México entra em sua etapa independente, demograficamente, sendo um país totalmente indígena.

Esse tipo de dado e o encontro com os documentos, ao menos para mim, me alertam para uma conversa que é urgente de ser mantida. Não só em relação a uma situação pessoal, mas em termos de uma discussão muito mais ampla.

Claro que isso tem suas consequências em termos de acesso à terra, de autonomia no trabalho agrícola e no campo, autonomia também das comunidades indígenas, em mobilizações muito concretas. Creio que, a partir da trincheira da escrita, o que podemos fazer é colocá-las na mesa da discussão. Reativá-las como parte de um discurso público importante e urgente hoje.

Há, na “Autobiografia do algodão”, a discussão sobre o conceito de casamento por sequestro. Como essa história se conecta com o debate sobre a violência de gênero e o termo feminicídio que você desenvolve em “O invencível verão de Liliana”?

O que despertou a perturbação, a perplexidade, foi uma pequena nota na certidão do terceiro casamento do meu avô paterno, onde literalmente dizia — a frase agora não me lembro de cor — que ele a raptava.

Eu sou historiadora, tenho trabalhado sobretudo com o final do século 19 e o início do século 20 no México e estava ciente de que esse conceito foi usado historicamente para justificar e defender também a liberdade dos noivos frente à autoridade das famílias e do Estado.

No entanto, a frase tem uma ressonância grave e terrível nos dias de hoje. Tive que interromper a escrita, pensar muito bem e fazer pesquisas — ainda em relação ao passado, a gente sempre vai continuar tendo perguntas.

O certo é que, na pesquisa e quando voltei a escrever o livro, o que vi ali é que foi o homem, meu avô paterno, quem se somou, se uniu à família da noiva, da minha avó materna Petra Peña. O que indica uma relação de forças muito mais dinâmica do que poderíamos imaginar.

A questão aqui, acredito, é que o que se ativou em mim precisamente foi a necessidade de nunca perder de vista não só a questão de gênero em geral, mas a questão da violência de gênero que é parte da estrutura das nossas sociedades patriarcais. 

Em “Mortos indóceis”, a senhora se recorda de uma série de questionamentos feitos no Twitter com a hashtag Escritas Contra o Poder em que trata sobre a quebra de conceitos tradicionais e convencionais da literatura. Podemos entender que, em suas obras, a senhora busca responder a essas questões? Busca romper com o tradicionalismo como forma de inovação criativa?

Para mim, a escrita é uma prática crítica. Uma de suas potências é produzir realidade. Não é só representar, mas produzir realidade. E, nesse sentido, me parece também que a escrita pode se fazer a partir de perguntas amplas e frequentemente enigmáticas. Perguntas cuja resposta é a própria escrita.

Por isso me parece importante que a escrita não fique limitada às tradições herdadas, é importante que a escrita conserve esse espírito de interrogação radical que inclui seus próprios meios e suas próprias tradições.

Para mim, não é uma opção deixar de questionar, de discordar, de explorar formalmente, sempre em relação a essas preocupações. Sou menos propensa à exploração formal por si mesma, mas me parece que se realmente estamos escrevendo com o presente, e se estamos questionando nossos instrumentos, paradigmas e tradições, vamos ter que nos aproximar dos nossos materiais de tal forma que possamos mudar nossas tradições e propor outras, à medida que as vamos interrogando com seriedade.



No Brasil tivemos lançamentos recentes de obras mexicanas assinadas por autoras como Dahlia de la Cerda  (“Cadelas de aluguel”) e Sayak Valencia (“Capitalismo gore”). Neste momento em que o país vive suas questões internas com a violência do narcotráfico e está no centro de uma briga diplomática com o historicamente complicado vizinho Estados Unidos, a senhora acredita que a produção de autoras mexicanas será importante como documento histórico de dias conturbados para as gerações futuras?

Não são apenas um documento histórico, mas também obras de grande peso significativo e simbólico. Há autoras em toda a América Latina, não só refletindo sobre o presente, mas também nos oferecendo uma visão alternativa para o nosso futuro.

Penso em poetas como Elisa Díaz Castelo (autora de livros como “Malacria”), Mónica Nepote (de “Las trabajadoras”) e seus percursos pela montanha. Penso no trabalho de Selva Almada (argentina, autora de livros como “O vento que arrasa) no sul. Enfim, agora me vêm à cabeça um monte de poetas e suas figuras e suas obras, não necessariamente seus nomes, mas por sorte, incluindo as duas autoras que você menciona, me parece uma onda importante com uma pluralidade de vozes que, por sua vez, iluminam uma pluralidade de futuros.


SERVIÇO

“Autobiografia do algodão”

  • Cristina Rivera Garza
  • Tradução de Silvia Massimi Felix
  • Autêntica Contemporânea
  • 336 páginas
  • R$ 89,80

“O invencível verão de Liliana”

  • Cristina Rivera Garza
  • Tradução de Silvia Massimi Felix
  • Autêntica Contemporânea
  • 304 páginas
  • R$ 74,90




“Os mortos indóceis: Necroescritas e desapropriação”

  • Cristina Rivera Garza
  • Tradução de Joca Reiners Terron
  • WMF Martins Fontes
  • 318 páginas
  • R$ 69,90


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Sobre a autora

Cristina Rivera Garza nasceu em 1964 em Matamoros, cidade no norte do México fronteiriça com o estado americano do Texas. Sua obra contempla diversos gêneros como romances, contos, poesia e não ficção. É professora da Universidade de Houston, onde fundou o doutorado em escrita criativa. Em 2024, venceu o Prêmio Pulitzer na categoria “Memórias ou Autobiografia” com seu livro “O invencível verão de Liliana”.

Programação na Flip

Cristina Rivera Garza participa da Flip no auditório da matriz no sábado (2/8), às 17h, na mesa 17. Com o título “Invenção, memória”, a conversa será feita entre a autora mexicana e María Negroni, poeta e ensaísta argentina, diretora do mestrado em Escrita Criativa da Universidade Tres de Febrero, em Buenos Aires. A mediação será feita por Guilherme freitas, jornalista e editor-assistente da revista serrote.

“Subverter os gêneros literários, propor formas renovadas de literatura, resgatar a memória sempre viva e inventar realidades para acertar as contas com o passado: na experiência de duas escritoras geniais, nascem novas possibilidades de expressão”, diz a descrição da mesa em que Rivera Garza e Negroni participarão.


Trechos de “Autobiografia do algodão”

I

“Não tenho como saber se foi uma mera omissão pessoal de meu avô ou uma decisão estratégica de sobrevivência em um território que, como o nortenho, costuma contar sua história como a história do desaparecimento das nações indígenas. Devastar é um verbo. Exterminar também. Mas a verdade é que o Estado mexicano, por meio de seus múltiplos órgãos locais, deixou de fazer essa pergunta e de anotar essas respostas. Sistematicamente. Metodicamente. Cruelmente. Em algum momento do início do século XX, e mesmo depois da Revolução, todos os indígenas deslocados que vinham para o norte, bem perto em busca de trabalho, passaram a ser classificados como peões, operários, lavradores. E tudo isso é verdade, A falta, o que meu pai, minha mãe e minha irmã precisavam, o que meu filho e eu precisávamos, era daquela origem que, obviamente, se torna invisível com o tempo”. - Sobre como os mexicanos de origem mexicana perderam suas designações de origem e passaram a ser reconhecidos por sua função laboral.



II

“O rapto e a fuga dos amantes no final do século XIX frequentemente colocavam a autoridade da família (sobretudo do pai) contra a autoridade do Estado e suas novas leis familiares. Não era incomum que jovens ansiosos para se casar apesar das maquinações paternas concordassem em

"tomar” a noiva com seu pleno consentimento. Tratava-se, em alguns casos, de confirmar sua independência e de antepor os casamentos por amor aos cálculos dos casamentos arranjados. Talvez uma lógica semelhante tenha guiado as ações de José María e Petra. Talvez não. A verdade é que, desde a celebração do casamento, foi José María quem se juntou à família de Petra, e não o contrário, como era a regra não escrita que muitas vezes deixava a mulher em uma situação de extrema dependência da autoridade do marido”. - Sobre o complexo conceito de ‘casamento por rapto’.



III

Embora o estado de ruína varie de povoado para povoado, é verdade que, mesmo que alguns dos edifícios permanecessem intactos, esses locais expulsos da história já carecem de energia e visão, de trabalho e empenho que os fizeram palpitar em algum momento. Nesse sentido, Estación Camarón é uma cidade-fantasma como Selma, no estado do Alabama.

Embora na cidade do sul algumas das mansões do algodão ainda estejam de pé e pelas ruas transitem os carros de hoje, basta andar pelo espaço em um dia de muito sol para que fique claro que tudo ali é uma armadura sustentada apenas com os pivôs da discriminação e da precariedade. Estación Camarón e Selma compartilham mais do que apenas a rica produção algodoeira em seu passado. Ambos os lugares, embora em momentos distintos, testemunharam mobilizações sociais que puseram em xeque o sistema de produção destrutiva. Tanto a greve de 1934 quanto o movimento pelos direitos civis conseguiram se conectar com críticas mais amplas e generalizadas contra o estado das coisas. Ambos agora mostram os vestígios de seu castigo. O silêncio é seu castigo. Seu desaparecimento é o castigo. Sua expulsão da memória coletiva é seu castigo” - Sobre o desaparecimento de povoados enquanto castigo através de uma comparação feita entre uma cidade mexicana e uma americana.

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