
"A falta de linguagem � avassaladora. A falta de linguagem nos algema, nos sufoca, nos estrangula, nos atinge, nos esfola, nos isola, nos condena.” O trecho do primeiro cap�tulo de “O invenc�vel ver�o de Liliana” (Aut�ntica Contempor�nea) se refere ao uso de termos espec�ficos, como ‘feminic�dio’, para designar adequadamente situa��es de opress�o socialmente enraizadas. Para al�m disso, o fragmento apresenta ao leitor um ponto central sobre como a autora Cristina Rivera Garza ir� conduzir a hist�ria de sua irm� ao longo do livro, com aten��o meticulosa � linguagem a cada p�gina e transformando esse cuidado no grande trunfo da forma como narrou a vida de sua irm� mais nova, interrompida h� mais de tr�s d�cadas por um crime de �dio.
Cristina nasceu no M�xico, em 1946, e vive nos Estados Unidos desde 1989, onde hoje � professora na Universidade de Houston, no Texas. Autora premiada, em “O invenc�vel ver�o de Liliana” ela se debru�a sobre a hist�ria de sua irm� ca�ula. E trata-se, de fato, de um livro sobre a hist�ria de Liliana Garza, n�o sobre seu feminic�dio. O crime, � claro, � o ponto central da narrativa e apresentado desde o in�cio do livro, mas o foco em trabalhar de forma minuciosa e polif�nica o personagem da irm� d� � obra uma pot�ncia que dificilmente seria alcan�ada se o objetivo da autora fosse dissecar detalhes do ato que interrompeu a vida da irm�.
A autora inicia o livro com sua jornada kafkiana pelo sistema de Justi�a mexicano em busca do processo criminal acerca do feminic�dio de Liliana. Os entraves burocr�ticos e a displic�ncia dos funcion�rios do Estado, somados �s tr�s d�cadas que separam a busca pelos autos do momento do crime, apresentam inicialmente uma das dores de quem tem no sistema judici�rio um obst�culo na luta por justi�a, como Cristina descreve em entrevista ao Pensar do Estado de Minas.
� a partir dos cap�tulos seguintes que a linguagem ganha destaque central na narrativa, que faz varia��es cronol�gicas para voltar � inf�ncia e adolesc�ncia de Liliana. A autora apresenta centenas de correspond�ncias e relatos de amigos e familiares da irm�, organizados de maneira que tornam a leitura fluida e, mais importante, constr�i a partir de diferentes vozes a hist�ria da personagem e conta como ela se manifestava em seu meio em diferentes est�gios da vida.
Liliana documentou a pr�pria vida com min�cia de detalhes em relatos e cartas, acervo em que Cristina mergulhou para a escrita do livro. Novamente, a linguagem ganha destaque na organiza��o dos arquivos e tamb�m na forma. A caligrafia da irm� foi transformada em uma fonte tipogr�fica para reproduzir todos os trechos oriundos de seus escritos. Dessa forma, Cristina conta a hist�ria da irm�, sua inf�ncia e adolesc�ncia em Toluca at� a mudan�a para a capital mexicana, onde ela ingressou na faculdade de arquitetura da Universidade Aut�noma do M�xico. A polifonia empregada na narrativa ajuda a destacar as mudan�as de fase na vida da estudante, como novas rela��es foram constru�das, outras deixadas para tr�s e, essencialmente, como a personalidade e o comportamento de Liliana foram afetados pela rela��o com �ngel Gonz�lez Ramos.
� medida que a hist�ria da vida de Liliana vai se aproximando de seu ponto final, abreviado pelas m�os do ex-namorado, o impacto destrutivo de �ngel na vida de sua v�tima ganha espa�o na narrativa. Com relatos pr�prios, de seus pais, da irm�, de amigos, trechos de jornais e cita��es acad�micas, Cristina Rivera Garza deixa clara a import�ncia de n�o exonerar o criminoso de culpa, bem como a estrutura de viol�ncia sist�mica que vitima mulheres no mundo todo.
Na entrevista ao Pensar, a autora comenta a escolha de uma abordagem individual para tratar sobre o amplo problema da viol�ncia de g�nero, revela como foi mergulhar na hist�ria da irm�, e discute formas de escrita e tratamento de feminic�dios e agress�es contra as mulheres. Leia, a seguir, a entrevista com Cristina Rivera Garza.
"Muitas produ��es audiovisuais continuam a considerar a viol�ncia contra a mulher como um evento isolado e extraordin�rio, e, por isso, dedicam grande parte ou toda a sua aten��o � motiva��o e � mente do assassino (como se fosse muito dif�cil entender isso, quando o sistema os favorece, � muito f�cil cometer crimes contra mulheres)."
O livro re�ne uma grande quantidade de material escrito por Liliana, relatos de amigos e parentes, bem como documentos e registros sobre o assassinato. Voc� resgatou esse material durante o per�odo de cerca de 30 anos desde o crime ou mergulhou em um per�odo mais curto para escrever o livro?
Todo o processo de escrita � acompanhado por um processo de pesquisa – e quero dizer pesquisa no sentido mais amplo da palavra. Nesse caso, a investiga��o envolveu o processo de luto, a recupera��o de material institucional em arquivos do Estado, a produ��o de material a partir de entrevistas com familiares e amigos e o encontro com o que chamei de arquivo dos afetos, o acervo documental de si mesma que Liliana realizou durante sua estada na Terra. Cada uma dessas facetas exigia um tempo diferente, mas posso dizer que o trabalho mais dif�cil e intenso aconteceu depois de abrir as caixas com os pertences de minha irm�. Essa descoberta desencadeou todo o resto.
No livro, a senhora prop�e uma reflex�o sobre a linguagem, em especial sobre o termo ‘feminic�dio’. Como avalia a import�ncia de usar e ter uma linguagem adequada para tratar de quest�es sociais urgentes, como a viol�ncia contra a mulher?
O que n�o nomeamos torna-se invis�vel, o que n�o quer dizer que n�o fa�a mal. Nas sociedades dominadas pela linguagem patriarcal, que continuamente esconde, justifica ou diminui a import�ncia da viol�ncia contra as mulheres, esse pr�prio sil�ncio torna-se uma forma de viol�ncia. Identificar as coisas pelo nome, digo no livro e reitero, exige produzir novos nomes. O feminic�dio � uma delas, a forma mais letal de viol�ncia de g�nero, mas existem outras: ass�dio, discrimina��o, estupro. Esses novos nomes designam velhas pr�ticas que, com o tempo, se tornaram “naturais”. A linguagem produzida pelos protestos nas ruas e pelos movimentos de mulheres, incluindo o feminismo, permitiu retirar o v�u e mostrar as desigualdades de poder que d�o origem a essas pr�ticas. Essa mesma linguagem tornou poss�vel contar essas hist�rias do ponto de vista das v�timas com dignidade e empatia.
O sexto cap�tulo do livro traz relatos de pessoas pr�ximas em que se pode perceber que houve uma percep��o da escalada de viol�ncia sofrida por Liliana por parte de seu ex-namorado. Como a senhora avalia a import�ncia de perceber esses sinais e tamb�m entender o impacto destrutivo que acontece na vida da v�tima antes do feminic�dio?
Rachel Snyder, autora de “No visible bruises” (“Sem hematomas vis�veis”, em tradu��o livre), livro que cito muito no meu, afirma que todo feminic�dio � precedido por atos de viol�ncia constante e crescente. Estudos contempor�neos e mecanismos como o medidor de viol�ncia, elaborado por especialistas do Instituto Polit�cnico Nacional do M�xico, tornaram vis�vel essa escalada de viol�ncia que, por se confundir com a linguagem do amor rom�ntico, muitas vezes passa despercebida. Perceber a tempo, nome�-lo bem, para n�o nos confundir, � justamente essa linguagem que questiona e subverte as verdades do patriarcado.
O livro tamb�m prop�e uma discuss�o sobre como familiares e amigos das v�timas se culpam por n�o ter oferecido prote��o ou antecipado o feminic�dio e como esse sentimento exime de culpa o criminoso. Diante de um cen�rio de viol�ncia constante, como adotar e promover condutas preventivas sem mudar o foco da culpa?
Em 1990, quando minha irm� foi assassinada, um senso comum silencioso ditava que o ato havia sido um crime passional, terminologia que implicitamente culpa a v�tima e exonera o autor do crime. Questionar essas figuras, tanto culturais quanto legais, � fundamental para apontar o verdadeiro culpado nesses casos: a viol�ncia estrutural, sist�mica e sistem�tica, que a todo momento violenta os corpos das mulheres. E os homens, produtos desse patriarcado, que, sabendo que podem se safar sem sofrer consequ�ncias, sabendo que t�m a impunidade do sistema e a cumplicidade da indiferen�a p�blica com o sofrimento das mulheres, se convertem em feminicidas. Portanto, tanto a impunidade quanto a indiferen�a devem ser apontadas como c�mplices do estado de terror em que vivem muitas mulheres no planeta.
A busca pelo processo criminal de Liliana tamb�m mostra como os entraves burocr�ticos podem ser um obst�culo na luta por justi�a em casos como o de sua irm�. Como foi resgatar esse processo ap�s tr�s d�cadas?
Como em outros locais da Am�rica Latina, um dos primeiros grandes obst�culos � obten��o de justi�a � o pr�prio sistema judicial. A lentid�o burocr�tica � capital, assim como a indiferen�a. Como tantas fam�lias que perderam entes queridos para a viol�ncia, a minha teve que pagar os custos da investiga��o, pagando detetives fora da acusa��o, porque ningu�m de dentro se dedica a fazer isso prontamente ou com responsabilidade. Advogados devem ser contratados para realizar procedimentos que teriam de ser r�pidos e claros. Logo se compreende que existe um grande muro, um muro de propor��es inimagin�veis, entre a papelada e a justi�a.
O cen�rio de viol�ncia contra a mulher no Brasil n�o est� distante da realidade mexicana apresentada no livro. Muitas vezes, esse contexto � apresentado a partir de estat�sticas que mostram a gravidade do problema. No livro, a senhora conta uma hist�ria com vi�s pessoal, mas com cuidado especial em apresentar diferentes vozes, inclusive a de Liliana, e dar rosto e hist�ria a uma v�tima de feminic�dio. Como voc� v� a import�ncia dessa abordagem para lidar com a viol�ncia que costuma ocorrer de forma mais generalista?
A ind�stria de Hollywood, romances sensacionalistas e baladas rom�nticas muitas vezes exploram os corpos de mulheres massacradas para obter lucro. Muitas dessas produ��es continuam a considerar a viol�ncia contra a mulher como um evento isolado e extraordin�rio, e, por isso, dedicam grande parte ou toda a sua aten��o � motiva��o e � mente do assassino (como se fosse muito dif�cil entender isso, quando o sistema os favorece, � muito f�cil cometer crimes contra mulheres). Poucas dessas produ��es entendem que estamos diante de uma viol�ncia estrutural que se desenrola diante de nossos olhos na correria do dia a dia. Por isso � importante n�o transformar essas mulheres massacradas em n�meros ou reduzi-las aos momentos do crime. Ainda � essencial mergulhar na especificidade de cada vida, na felicidade e luminosidade de cada vida, para verificar tudo o que perdemos – e aqui este plural se refere � comunidade em geral – quando uma mulher nos � tirada de forma violenta. Talvez assim possamos avaliar seus espa�os vazios ao nosso redor e proteger as mulheres aqui e agora ao mesmo tempo. E no futuro.
A senhora acredita que a forma polif�nica empregada para contar a hist�ria de sua irm� com riqueza de detalhes pode se tornar um paradigma para a forma como se noticiam crimes e situa��es de opress�o? A caracteriza��o das pessoas al�m da atribui��o como v�tima pode ajudar a dar uma dimens�o mais clara sobre a crueldade de crimes como o feminic�dio?
� dif�cil escrever sobre viol�ncia. Os riscos s�o muitos: pornoviol�ncia, banaliza��o, e tamb�m reduzir as mulheres ao papel de v�timas passivas, sem ag�ncia ou vontade pr�pria. Uma das grandes li��es que os pap�is de Liliana nos oferecem � que nunca, nem mesmo nos momentos mais dif�ceis, ela deixou de se ver como autora de sua pr�pria vida. Havia muitas coisas que a falta de uma linguagem precisa n�o lhe permitia ver, e suas anota��es tamb�m apontam para essas lacunas e opacidades. Mas foram tantos outros que ele passou a vislumbrar, e j� tomava decis�es sobre isso: deixar para tr�s um relacionamento t�xico, apaixonar-se de outra forma, apostar na sua liberdade. V�-la assim, com todas as suas luzes e sombras, nos seus altos e baixos, permite-nos aproximar de toda uma vida. Este sentimento de proximidade � essencial para alcan�ar o tipo de contato do qual pode emergir, nos seus momentos mais felizes, uma empatia que leva � solidariedade e ao acolhimento. E isso �, entre outras coisas, um grande poder da escrita.
Trechos do livro
“O feminic�dio n�o foi criminalizado no M�xico at� 14 de junho de 2012, quando o C�digo Penal Federal o incorporou como crime: "Artigo 325: O crime de feminic�dio � cometido por quem priva uma mulher de sua vida por raz�es de g�nero". Grande parte dos feminic�dios cometidos antes dessa data foram chamados de crimes passionais. Foram chamados de andar em passos errados. Foram chamados de por que ela se veste assim? Foram chamados de uma mulher sempre tem que se dar ao respeito. Foram chamados de algo que ela deve ter feito para terminar assim. Foram chamados de seus pais a negligenciaram. Foram chamados de a garota que tomou uma decis�o errada. Foram chamados, inclusive, de ela mereceu. A falta de linguagem � avassaladora. A falta de linguagem nos algema, nos sufoca, nos estrangula, nos atinge, nos esfola, nos isola, nos condena.”
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“As respostas s�o poucas e os fatos, incontest�veis: h� trinta anos, sinto falta de Liliana todos os dias e, dentro de cada dia, todas as horas de cada dia. E dentro de cada hora, cada minuto. Cada segundo. O luto para aqueles que perderam entes queridos, mulheres queridas, devido a atos de terrorismo de parceiro, � uma coisa tortuosa. Como Snyder bem analisou em ‘Sem hematomas vis�veis’, os sobreviventes costumam culpar a si mesmos, a sua neglig�ncia ou cegueira, com uma dureza sem precedentes. Eles n�o protegeram os que mais amavam; n�o perceberam o que deveria estar claro diante de seus olhos; n�o detiveram o predador. A dor que n�o se afasta, nem um mil�metro, da culpa ou da vergonha, fica estagnada antes de chegar ao luto propriamente, permanecendo num limbo informe onde as palavras perdem o sentido e a conex�o com os outros e com o mundo se esvai pouco a pouco. As fam�lias fogem para dentro, escondendo-se at� de si mesmas. Com que direito podem exigir justi�a do Estado, quando n�o foram capazes, elas pr�prias, de proteger os seus, a sua, do perigo?”
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“O sistema encarregado de culpar a v�tima, ali�s, come�a a funcionar quando as coisas ainda est�o frescas e n�o se det�m de forma alguma com o passar dos anos. � um maquin�rio met�dico e triturador. Est� l�, funcionando perfeitamente, entre os que sussurram: se n�o a tivessem deixado ir para a Cidade do M�xico, se ela n�o tivesse come�ado a namorar t�o jovem, se tivesse sabido escolher melhor, se tivesse esperado o casamento para ter rela��es, se tivesse tomado uma decis�o melhor, se n�o tivesse se equivocado. E tamb�m est� a�, mais tarde, independentemente da quantidade de anos, entre aqueles que apontam que os pais passam tempo fora de casa, a m�e trabalhava, o pai n�o lhe dava dinheiro suficiente, os namorados a assediavam, as mulheres a amavam. Est� nos olhares sombrios e nos sorrisos falsos. Na comisera��o. Naqueles que se sentem seguros e elaboram aquela linha moral que divide o n�s de voc�s. Est� na exig�ncia imperativa, inevit�- vel e avassaladora de que a v�tima seja culpada e de que voc� se culpe com ela. Est� na que a exig�ncia imperativa, inevit�vel e avassaladora de exonerar o assassino a todo custo.”
“O invenc�vel ver�o de Liliana”
- Cristina Rivera Garza
- Tradu��o de Silvia
- Massimini Felix
- Aut�ntica Contempor�nea
- R$ 304 p�ginas
- R$ 67,50. E-book: R$ 47,90