Dia Bárbara Nobre
“Futuro passado”
Era um sábado, na hora do céu rosado, quando ela parou o carro na estrada sem acostamento. Passou uns minutos observando um cabritinho balir desalentado atrás da mãe, que enveredara caatinga adentro. É, concluiu, ali seria um bom lugar.
Agarrou o embrulho enrolado no xale azul e entrou no tabu leiro até encontrar uma clareira no meio do buxeiro. Se ajoelhou e começou o trabalho. Rompeu a crosta da terra, primeiro com uma pedra, depois com as mãos:
uma,
duas,
três vezes.
As unhas perfuraram o solo com veemência e todos os olha res invisíveis se voltaram a ela. O primeiro corte foi o mais difícil— a terra resistia. Não queria ser minada por uma estranha.
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Ela era miúda, mas sua força impressionava. A dois palmos, o barro vermelho e úmido se soltou. A quatro, os músculos dos braços destreinados se retesaram, cãibras no pé da barriga dificultaram o movimento, bolhas foram surgindo no tecido fino das mãos e os joelhos se abriram em ranhuras.
Onilé, a mãe-terra, observou as caretas que formavam rugas fundas no rosto da mulher, intrincados veios de rio por onde o suor vertia. Ela queria descansar, mas o xale azul e a noite que se aproximava pediam urgência.
Quando julgou que havia cavado o suficiente, abriu o xale, desdobrando-o feito mar na terra molhada de sangue e lágrimas. Cuidadosa, acomodou a criatura na boca retangular e acariciou a cabeça flácida uma última vez, tentando reter na ponta dos dedos o formato daquele rosto. Cobriu o corpinho com o xale, e os braços cansados arrastaram o barro solto ao redor do buraco, repetindo a mãe no gesto de agasalhá-la quando dormia no sofá.
Quando terminou de cobrir o buraco, encostou os lábios na terra. Com os joelhos e a cabeça no chão, entregou a oferenda. A oração cantada ecoou entre os mandacarus. Ela chorava ou gargalhava, não dava para saber ao certo. Pediu perdão, jurou vingança. Na barriga da terra, a vida se mexia: víboras, lacraus e escorpiões choravam a morte da quase mãe que ela foi.
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Ela ainda não sabia, mas tinha plantado uma semente. Na caatinga, a natureza regenerava a morte, tudo se reinventava e trocava de pele, feito a serpente que a observava curiosa enquanto, entre soluços, ela se levantava e ia embora.
Onilé recebeu a oferenda e começou sua longa digestão. Nem cruz nem pedra marcaram o lugar.
Guiada por uma procissão de vaga-lumes, ela voltou à estra da. A rodovia esburacada e mal iluminada acentuava o rasgar-se do ventre vermelho nas pernas. Pegou a mochila no banco de trás e tirou de lá uma toalha pequena. Sentada ao volante, tentou se controlar, esfregou o rosto. Não percebeu a serpente emburacando dentro do carro.
Uma dormência a envolvia, mas, ao girar a chave, o engasgo do motor a arrancou do torpor. Todo o corpo acordou de uma vez e latejou pelo esforço de cavar, que nos filmes os homens faziam parecer tão simples. A noite caía, fazendo subir uma bruma den sa, e ela acelerou, com medo de que o carro resolvesse quebrar no meio da estrada e a deixasse sozinha na noite sem lua.
Sobre a autora
Nascida em Juazeiro do Norte (CE), em 1984, Dia Bárbara Nobre é doutora em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRG). Sua tese de doutorado “Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do Oitocentos”, premiada pela Capes, foi adaptada e publicada em livro sob o mesmo título em 2024. É também autora da coletânea de contos “No útero não existe gravidade”, finalista do Prêmio Mix Literário em 2021. “Boca do mundo” é o primeiro romance da autora cearense.
Sobre o livro
“Dia Bárbara Nobre é uma voz que destoa e que ecoa. Pela coragem, pela inventividade, pelo doce destempero de se permitir desvios de rota. ‘Boca do mundo’ se agarra da linguagem para contar uma história que é prece, réquiem e novo começo para todas as mulheres desse mundo - e de outros. Belíssimo”, Marcela Dantés
“Boca do mundo”
•De Dia Bárbara Nobre
• Companhia das Letras
• 200 páginas
• R$ 79,90
• Lançamento em Belo Horizonte na próxima quarta-feira (23/7), em bate-papo da autora com a escritora mineira Marcela Dantés, às 19h, na Livraria Jenipapo (R. Fernandes Tourinho, 241, Savassi)
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