Ao contrário do que garantia, ironicamente, o título de um cultuado filme italiano estrelado por Gian Maria Volonté, a classe operária não foi ao paraíso nos anos 1970. Muito pelo contrário. Em especial, para os que deixaram a terra natal em busca de melhores condições de vida. A dureza concreta do chão de fábrica, mais os sonhos e as desilusões dos trabalhadores e de suas famílias estão presentes na literatura nacional graças a nomes como o de Roniwalter Jatobá. Para Luiz Ruffato, o mineiro “praticamente instaurou a literatura proletária brasileira”.
Nascido em 1949 em Campanário, no nordeste mineiro, Roniwalter foi morar no interior da Bahia quando tinha dez anos. Ainda na juventude, fez parte do movimento migratório que marcou a sociedade brasileira na segunda metade do século 20. Deixou sua região e se estabeleceu no ABC Paulista.
Trabalhou, por pouco tempo, em uma indústria química que já emitia sinais de decadência e posteriormente na fábrica da Karmann-Ghia. Essas experiências foram fundamentais para a construção de uma literatura baseada na vivência e na observação. “A partir do mundo operário da periferia de São Paulo, tentei mostrar artisticamente, não pelo que existe de documental, mas sim pelo que há de universal, o trabalhador urbano sempre às voltas com as precárias condições da sociedade”, afirma ao Estado de Minas.
A editora Boitempo oferece uma chance preciosa para a (re)descoberta da obra de Roniwalter Jatobá a partir da publicação, com novas capas e apresentações, da chamada “trilogia da vida operária”: “Sabor de química”, “Paragens” (finalista do Jabuti) e “Crônicas da vida operária” (finalista do Prêmio Casa das Américas, em Cuba). “Essas reedições, num país de poucos leitores, representam muito para um mineiro da região mais pobre do estado”, garante o escritor.
Em recente edição do programa “Entrelinhas”, da TV Cultura, o apresentador e crítico literário Manuel da Costa Pinto apresentou Roniwalter como o “grande cronista da vida operária na literatura brasileira” e definiu as reedições como “livros concêntricos, giram em torno dos mesmos temas e lugares. Na verdade, toda a obra é quase como um poliedro, pois tem várias faces e estão no mesmo elemento”, acredita Costa Pinto. “E os contos têm uma dinâmica que capta as mutações históricas, já que vão da ditadura militar até o século 21”, ressalta o crítico.
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Ao Pensar, Roniwalter Jatobá define o que buscou com os seus escritos. “Em busca de sensibilidade poética, envolvendo minha vivência e experiência, tentei mostrar o fluxo migratório na direção Norte-Sul, quando milhares de pessoas foram empurradas dos confins do sertão para servir de mão de obra barata à indústria de construção e transformação em São Paulo”, resume. “Saber que tudo isso revela um momento histórico do mundo brasileiro, acho que cumpri meu papel como escritor”, complementa. Ao lado, Roniwalter Jatobá comenta as reedições de sua obra.
Infância no norte mineiro
“Lembro um pouco o tempo anterior ao meu nascimento. Em meados da década de 1930, meus pais, João e Maria, viviam no município de Campo Formoso, no sertão da Bahia. Sobreviviam do garimpo de cristal de rocha, usado na fabricação de artefatos bélicos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com o final do conflito, veio a desvalorização do principal produto. Assim, minha futura família, juntamente com a minha irmã mais velha, Risoleta, foram em busca de sobrevivência e sonhos no norte mineiro, precisamente no distrito de Campanário, no município de Itambacuri, um povoado à beira da estrada Rio-Bahia, que na época nem era asfaltada. Nasci ali em 1949. Eram tempos difíceis, época de desbravamento de uma inóspita região. Criança, fiz então o curso primário na escola pública. Conheci as histórias em quadrinhos e o cinema, até hoje minhas grandes paixões. Aprendi a nadar e pesquei muitos lambaris nas tranquilas águas do rio Itambacuri, na época despoluídas. Recordo com nitidez do meu padrinho e madrinha de batismo: o farmacêutico Sebastião de Oliveira e Souza e a professora Uirana Duarte. Quando começou a chegar o progresso, por exemplo o asfaltamento da Rio-Bahia, minha família retornou ao sertão baiano. Foi a minha primeira migração das muitas que fiz em busca do meu destino. Era 1960. Eu tinha dez anos.”
“MESMO SENDO UM JOVEM ESCRITOR MINEIRO, O PONTO DE PARTIDA DE RONIWALTER JATOBÁ NÃO É a galinha que cisca minhocas no fundo de quintal de Belo Horizonte nem a nostalgia das porteiras e dos carros de boi que até em Minas foram engolidos pelo progresso. A explicação talvez esteja no fato de que, enquanto sua geração decifrava angústias existenciais, Roniwalter pilotava um caminhão de carga pelas estradas do norte da Bahia ou apertava parafusos como operário da indústria automobilística em São Paulo.”
Fernando Morais, no prefácio à primeira edição de “Crônicas da vida operária” (1978)
“Sabor de química”
• De Roniwalter Jatobá
• Boitempo Editorial
• 192 páginas
• R$ 47,70
“Sempre o li como um ‘romance de estilhaços’, livro fundador sobre aquilo que fizemos de nós mesmos e numa época muito particular, cinzenta. Eram os anos de chumbo. Segue quase solitário no retrato de valor literário de uma época sombria e de uma parcela de gente que tanto lutou e contribuiu para que São Paulo se tornasse o que é, isso que somos.”
Fernando Bonassi, escritor e dramaturgo
A palavra do autor
“Foi o meu primeiro livro a ser publicado. Vencedor do Prêmio Escrita de Literatura de 1976, em São Paulo, saiu como encarte da revista literária Escrita e, em seguida, em livro, atualmente com várias edições, inclusive em capa dura pelo Círculo do Livro. São contos curtos, alguns até curtíssimos, porém tão interligados e ao mesmo tempo independentes, que parecem partes de um romance. Nele mostro que sou um seguidor da literatura social que tanto mostrou a verdadeira face do Brasil e contou com nomes como Graciliano Ramos. A partir do mundo operário da periferia de São Paulo, tentei mostrar artisticamente, não pelo que existe de documental, mas sim pelo que há de universal, o trabalhador urbano sempre às voltas com as precárias condições da sociedade. De certa forma, busco devolver ao leitor aquele Brasil que já esteve presente em nossa literatura de ficção, sobretudo a partir dos anos de 1930, que tanto ajudou na formação de uma consciência nacional.”
“Crônicas da vida operária”
• De Roniwalter Jatobá
• Boitempo Editorial
• 72 páginas
• R$ 42,30
“Publicado pela primeira vez em 1978, ‘Crônicas da vida operária’ fica a cada dia mais atual (...). Em poucas palavras, com relatos breves e linguagem exata, o autor abre os portões e nos coloca dentro da fábrica, acompanhando a perspectiva dos operários, sentindo seus calos, a dor nos músculos no fim do dia, a vontade de fazer um serviço bem-feito apesar de tudo.”
Regina Dalcastagné, professora e crítica literária
A palavra do autor
“Meu segundo livro, finalista do Prêmio Casa das Américas, em Cuba, em 1978. As sete histórias começaram a nascer quando comecei a trabalhar no ABC Paulista. Foram frutos de minha vivência ali por três anos, bem como das minhas viagens de trem e ônibus entre São Bernardo do Campo e o bairro de São Miguel Paulista, na zona leste da capital, onde passei a morar após chegar do sertão da Bahia. Nele tentei reconstruir o universo dos trabalhadores, revelando por dentro o inferno da indústria automobilística, descrito por quem o conheceu como trabalhador; o inferno dos turnos de trabalho; o inferno do facão (a ameaça permanente de demissão, como instrumento de chantagem contra os que se recusavam a fazer horas extras ou a trabalhar nos domingos). E tudo isso com o olhar atento a tudo que aprendi de literatura, insuflando alma aos personagens, cinzelando seus rostos, criando suas identidades perdidas e sempre em busca da felicidade, supremo objetivo dos homens.”
“Paragens”
• De Roniwalter Jatobá
• Boitempo Editorial
• 184 páginas
• R$ 47,70
“A arte de Roniwalter está em, a partir da crise social, construir uma visão da crise ética decorrente e conseguir uma solução ética consistente, por meio do recurso de reminiscências das formas velhas de narrar subjacentes às características modernas. Desta forma, a crise da sociedade, externa, passa também a ser força de estilo – parte interna, forma portanto – da obra literária.”
Flávio Aguiar, professor e tradutor
A palavra do autor
“Finalista do Prêmio Jabuti de 2004, traz três novelas: “Pássaro selvagem”, “Paragens”, que dá título ao livro, e “Tiziu”. A primeira conta a história de um menino que termina por migrar para a cidade grande, saindo de uma cidadezinha praticamente ressurgida das cinzas com o asfaltamento da Rio-Bahia em Minas Gerais, em cujo enredo uso a minha memória da infância e faço uma reflexão sobre a passagem do tempo. “Paragens” evoca o mergulho de um trabalhador numa viagem de metrô pela capital paulistana. Uma curiosidade: pela primeira vez esse meio de transporte foi abordado na literatura brasileira. De estação em estação, busca seu destino, que é nenhum. “Tiziu” é a história de uma tragédia, de um operário que perdeu a mão em um acidente de trabalho. Veio para São Paulo, desencontrou-se da vida. Enfim, é a saga de um homem que vive a dura e descarnada história vivida por milhões de brasileiros, aqueles que nascem e vivem bem longe até mesmo dos mínimos direitos de um cidadão, lutando duramente pela sobrevivência e sonhando sonhos que, embora pequenos, não têm qualquer chance de realização. O enredo, no entanto, é a volta. A volta para encontrar a si mesmo em um lugar que não é mais o mesmo.”