Tecnologia na medicina: avanços, dilemas e o futuro do cuidado em saúde
Ferramentas digitais aceleram diagnósticos e personalizam tratamentos, mas especialistas alertam para desafios de acesso no Brasil
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Siga noInteligência artificial, ferramentas digitais e outros mecanismos não estão limitados apenas à casualidade da internet. O uso de tecnologias na medicina, por exemplo, deixou de ser uma promessa para se tornar parte do cotidiano de médicos e pacientes.
De consultas apoiadas por inteligência artificial a cirurgias robóticas de alta precisão, as inovações já impactam diagnósticos, tratamentos e a gestão de dados clínicos. No entanto, ao lado das oportunidades, surgem também desafios concretos: desde a desigualdade de acesso até a necessidade de preservar o vínculo humano entre médico e paciente.
Esse debate esteve no centro da segunda edição do Afya Summit, que reuniu especialistas nacionais e internacionais em saúde, no último sábado (23/8), para discutir tendências e estratégias que já influenciam a prática médica.
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“Mais do que antecipar tendências, queremos entender como essas mudanças já transformam a rotina médica, seja no consultório ou no cuidado com o paciente”, explica Gustavo Meirelles, vice-presidente médico da Afya - uma hub de educação e tecnologia para a prática médica.
A medicina do futuro
Entre os especialistas, há o consenso de que a tecnologia pode ampliar o alcance do atendimento e reduzir sobrecargas burocráticas. O médico húngaro Bertalan Meskó, conhecido como “O Futurista Médico”, faz uma analogia que une ficção científica. “Falar sobre o futuro da saúde é como planejar uma missão a Marte. Precisamos criar sistemas capazes de manter alguém vivo em condições extremas, à quilômetros de distância e trazer essa lógica para a Terra. Só assim levaremos a medicina, de fato, ao século 21”.
Para Bertalan, um sistema de saúde moderno deve ser acessível, personalizado, preventivo e paradoxalmente “mais humano do que nunca”. Ele defende que a tecnologia não substitui o médico, mas pode aliviar tarefas administrativas, permitindo que o profissional esteja mais próximo do paciente.
A médica Mariana Perroni, do Google for Health, destaca que o cuidado sempre foi influenciado pela tecnologia, desde o surgimento dos primeiros exames de imagem. “A maleta do médico do século passado não comportava mais todas as ferramentas que a prática moderna exigia. Hoje, temos medicamentos eficazes, exames altamente precisos e até cirurgias feitas por robôs. O desafio agora é cultural: precisamos usar essas ferramentas para melhorar a jornada do paciente e não apenas o diagnóstico em si”, afirma.
Maria também destaca que mesmo sem a inserção avançada da tecnologia na rotina médica, o profissional pode inserí-la durante o tratamento. "Se o tratamento é complexo ou você quer melhorar a explicação do mesmo, você pode usar o ChatGPT ou Gemini para pedir para resumir ou facilitar essa explicação. Para muito é um desafio facilitar termos técnicos para uma linguagem mais fácil", exemplifica.
Realidade brasileira
No Brasil, onde o Sistema Único de Saúde (SUS) atende milhões de pessoas, a transformação digital enfrenta barreiras estruturais. “A má distribuição de profissionais é um problema crônico. A tecnologia pode ajudar, mas precisamos integrá-la ao sistema de forma que garanta continuidade do cuidado e evite a repetição de exames, por exemplo”, observa Ana Estela Haddad, secretária de Informação e Saúde Digital.
A pesquisa TIC Saúde 2024 ilustra esse cenário. Apenas 17% dos médicos no país utilizam inteligência artificial generativa em sua rotina. Nos hospitais privados, o índice é maior (20%) do que nos públicos (14%). O uso mais comum é para apoio em pesquisas e elaboração de relatórios médicos. “Ainda estamos em um processo lento e desigual de incorporação”, reconhece Leonardo Vedolin, diretor-geral médico da Dasa.
Ainda, o estudo também indicou que apenas 23% dos médicos e enfermeiros realizaram algum tipo de capacitação em informática em saúde nos últimos 12 meses. Os principais temas abordados nessas capacitações foram segurança do paciente (95%), ética e privacidade (85%) e qualidade dos dados (82%).
Além de aspectos técnicos, há também a dimensão humana. “Cada vez mais os pacientes serão protagonistas das decisões sobre seus cuidados. Compartilhar esse protagonismo é fundamental para a adesão aos tratamentos e para a continuidade do cuidado”, ressalta Paulo Chapchap, diretor médico do Instituto de Estudo de Políticas de Saúde.
Mas a tecnologia, por si só, não é solução. O médico gerontólogo Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade, alerta para o risco de se depositar fé cega nas ferramentas digitais. “A tecnologia pode oferecer recursos valiosos, mas sem vontade política e políticas públicas adequadas, continuará sendo apenas sofisticação sem impacto real. Saúde é construída no cotidiano: onde se mora, como se trabalha, como se vive”, afirma.