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Estado de Minas PROTE��O � MULHER

Condom�nios t�m que denunciar viol�ncia dom�stica. Na pr�tica funciona?

Pelo menos 18 estados j� contam com lei, mas nem todos os s�ndicos, porteiros e funcion�rios conhecem ou t�m preparo para cumprir as novas regras


02/12/2021 13:59 - atualizado 02/12/2021 14:27

Ilustração com imagem de rostos masculinos
(foto: AzMina)

A briga come�ou por causa de uma chuteira. Ao se recusar a comprar o objeto para o ent�o namorado, Juliana Guineli, 44 anos, foi agredida por ele com socos na cabe�a. A primeira rea��o dela foi correr, tirar o interfone do gancho e gritar. “Chama a pol�cia, ele vai me matar.” Do outro lado da linha, a porteira de plant�o atendeu ao pedido e acionou os agentes de seguran�a p�blica. O homem foi preso enquanto fugia correndo pela rua. 

Esse caso aconteceu h� alguns anos, mas ainda hoje o desespero de Juliana aparece nas estat�sticas de viol�ncia dom�stica. Em 2019, 30% dos homic�dios contra mulheres ocorreram dentro de casa, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE). Em 2020, o cen�rio foi mais grave por conta da pandemia do coronav�rus, e 54% dos feminic�dios ocorreram no interior das resid�ncias, segundo o F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica (FBSP). 

Agress�es verbais e amea�as transcendem as paredes, em gritos escutados da portaria e pelas janelas vizinhas. Com o isolamento social e todo mundo em casa, essas situa��es ficaram mais frequentes e expostas. Surgiram iniciativas para ajudar poss�veis v�timas de viol�ncia, como recados nos elevadores que diziam: "Voc� n�o est� sozinha". A partir da�, cada vez mais s�ndicos, porteiros e vizinhos foram implicados a romper com a l�gica de que “em briga de marido e mulher ningu�m mete a colher”. 

Espalhou-se no Brasil, de 2020 para c�, a cria��o de leis estaduais obrigando os respons�veis pelos condom�nios a comunicarem �s autoridades policiais situa��es de viol�ncia contra mulheres, crian�as, adolescentes ou idosos. Alguns governos limitaram o vigor das regras durante o per�odo de calamidade p�blica decorrente da Covid-19. 

Pernambuco foi o pioneiro, aprovando um projeto desse tipo, antes da pandemia, em junho de 2019, mas outros 17 estados adotaram medidas semelhantes (veja no mapa abaixo). Em cinco estados, havia projetos de lei em tramita��o. Parte das novas legisla��es prev� multa - que pode chegar a R$ 10 mil - em caso de omiss�o. Tamb�m pode depender “das circunst�ncias da infra��o, das condi��es financeiras e do porte do condom�nio”. 

Quando a lei foi aprovada em Pernambuco, a s�ndica Railene Fernandes, 42 anos, espalhou cartazes e orientou os funcion�rios dos dois condom�nios que administra com mais de 500 unidades, em Jaboat�o dos Guararapes, regi�o metropolitana do Recife. Desde ent�o, ela j� enfrentou pelo menos quatro situa��es em que precisou ligar para a pol�cia para proteger uma mulher - mas n�o sabe se conseguiu acabar com a viol�ncia sofrida por elas.

Proposta quer alterar c�digo penal

Em �mbito nacional, tramita na C�mara dos Deputados o projeto de lei 2510/20, que adiciona os moradores tamb�m como atores que devem fazer a den�ncia. O PL 2510/20 modifica o Estatuto dos Condom�nios, o C�digo Civil e o C�digo Penal.

No m�s de novembro, a lei estadual nº 17.406/2021 entrou em vigor em S�o Paulo. Os ind�cios de viol�ncia dom�stica e familiar devem ser comunicados, por telefone ou aplicativo, quando est�o acontecendo no momento da den�ncia, ou por escrito, em at� 24 horas, depois de saber do fato. Tamb�m h� a determina��o para a instala��o de cartazes educativos. A multa de at� R$ 2,9 mil, no entanto, foi vetada pelo governo estadual.

Em Pernambuco, onde regras j� vigoram h� mais de dois anos, os registros de casos de viol�ncia ocorridos dentro de apartamentos e condom�nios aumentaram 13% entre 2018 e 2020, conforme dados da Secretaria de Defesa Social (SDS-PE). 

Todos os entrevistados para esta reportagem lembraram de pelo menos um caso de viol�ncia ocorrido no pr�dio onde moram ou trabalham. Ouvimos tr�s porteiros, uma governanta e quatro s�ndicos, assim como ativistas dos direitos das mulheres e dois representantes de sindicatos de administradores e funcion�rios de condom�nios. 

Frustrados

Durante seis anos trabalhando em um pr�dio na Zona Norte do Recife, Elias Campelo, 39 anos, j� presenciou duas situa��es. A �ltima ocorreu h� cinco meses, quando um casal discutiu dentro de um carro, na garagem, e foi interrompido pela vizinhan�a. Moradores come�aram a gritar depois de ver o homem puxar a mulher com for�a. Pediram para fechar a sa�da, mas Elias abriu o port�o. Ele n�o conhecia a lei sancionada no estado, s� foi instru�do pelo s�ndico a “ligar para o 180” diante de qualquer situa��o, quando um flagrante, na verdade, � para ser comunicado ao 190. 

“Ela estava batendo nele, e ele � um homem grande. A�, ele se irritou numa certa hora e deu um empurr�o nela. Eu abri o port�o para cessar aquilo dentro do condom�nio”, contou o porteiro. Ainda assim, os vizinhos chamaram a pol�cia. De imediato chegou uma viatura. "A�, no outro plant�o, os policiais estiveram l�, mas a mulher disse que n�o queria [denunciar] nada, j� estava tudo certo”, comentou Elias, que se mostrava desapontado. 

O ar de frustra��o tamb�m era percept�vel na fala de Heleno Ribeiro, 42 anos, que presenciou uma situa��o de viol�ncia no dia anterior � entrevista para AzMina. O casal estava brigando na frente do pr�dio, e o homem entrou com o carro em alta velocidade na garagem. Heleno ligou para a s�ndica na hora e pediu orienta��o. "Quando parte para o lado da agress�o, eu n�o vou me meter. Minha profiss�o � porteiro e n�o defender algu�m de uma confus�o”, argumenta Heleno.

A postura dele vem de outra experi�ncia em um pr�dio onde trabalhou anteriormente. Um casal discutiu, a mulher come�ou a gritar e o homem saiu, arrancando o port�o. “Meu amigo foi tentar ajudar. E, resumindo, a moradora, ao inv�s de ficar � favor do porteiro, ficou contra ele", narrou Heleno, que tirou o fato como uma 'li��o'. "Nossa profiss�o n�o � valorizada”, complementou.

Desafios para colocar em pr�tica

Mapa do Brasil com a indicação de projetos em defesa da mulher
(foto: AzMina)
 

Engajar a comunidade condominial requer outros esfor�os, pois a normativa legal tem limites de execu��o. Na pr�tica, h� alguns entraves, como: a falta de forma��o de porteiros, s�ndicos e vizinhos em quest�es de g�nero, o medo de repres�lia trabalhista e o machismo. Tudo isso vira obst�culo para que as den�ncias sejam realizadas e que as  v�timas e os denunciantes estejam realmente protegidos. 

Na �poca da discuss�o do projeto de lei em Pernambuco, o principal receio do Sindicato da Habita��o (Secovi-PE) era o de repres�lias aos s�ndicos. “Eles ficaram temerosos, porque al�m de s�ndicos s�o vizinhos. E estariam batendo de frente com uma pessoa que est� demonstrando hist�rico violento”, afirmou Norberto Lopes, advogado da entidade que representa os s�ndicos e administradoras de im�veis. 

regra pernambucana foi alterada em setembro deste ano, retirando a necessidade de reportar o caso em at� 48 horas do ocorrido, e diz que � preciso colocar cartazes informativos no pr�dio. De acordo com o Secovi-PE, o melhor seria fazer uma den�ncia an�nima. “J� tivemos caso de uma s�ndica agredida com uma bicicleta na cabe�a depois de fazer uma den�ncia", exemplificou Lopes. Por conta disso, foram colocadas algumas orienta��es no site do sindicato.

J� o sindicato dos empregados de condom�nios pernambucanos, o Sieec-PE, t�m orientado a fazer a den�ncia e registrar a viol�ncia dom�stica e familiar no livro de ocorr�ncias do pr�dio. “A entidade prega que o trabalhador n�o seja omisso, mas entende que a den�ncia n�o pode cair no bra�o s� do porteiro, � de toda a coletividade”, esclarece o presidente do Sieec-PE, Rinaldo Junior. Eles oferecem apoio jur�dico a quem denunciar.

A governanta Marina Tavares, 57 anos, foi demandada pela s�ndica do pr�dio onde trabalha, em Recife, para repassar orienta��es aos 9 funcion�rios quando a lei foi aprovada em 2019. No ano passado, foi necess�rio denunciar uma ocorr�ncia e logo a retalia��o quase chegou. 

“Um casal come�ou a discutir. O porteiro chamou a pol�cia. Depois, a propriet�ria ficou querendo saber quem havia sido. N�o quis prestar queixa e ficou zangada”, lembra Marina. At� hoje, mesmo diante das insist�ncias, o pr�dio n�o revela quem fez a queixa.

Comunidade precisa se envolver

A s�ndica Railene Fernandes foi acionada duas vezes por causa dos gritos de uma mulher, ouvidos pelos cond�minos. Na primeira, ligou para o apartamento, mas foi informada de que havia ocorrido apenas uma “discuss�o mais acalorada”. Uma semana depois, a mulher saiu correndo com o filho pequeno nos bra�os, pelos corredores, fugindo do agressor. Foi ent�o que Railene chamou a pol�cia. “Depois, o condom�nio ficou em cima da situa��o, notificando o barulho excessivo e eles se mudaram”, disse a s�ndica. 

A t�tica de Railene � nunca ir ao encontro do agressor e da v�tima em caso de flagrante. “Eu n�o chego perto quando tem briga, eu ligo para a pol�cia e fico aguardando na portaria”, relata. Ela faz quest�o de denunciar porque, observando experi�ncias pessoais, sabe que a viol�ncia pode bater � porta dela a qualquer momento. “Como s�ndica, j� precisei chamar a pol�cia para me defender tr�s vezes de moradores homens que tentaram me questionar.”

Com as altera��es na Lei Maria da Penha no Brasil, em 2012, j� estava previsto que qualquer pessoa, ao saber de um caso de viol�ncia dom�stica, pudesse denunciar. Por�m, as novas leis s�o necess�rias, na opini�o da vice-presidente e diretora pedag�gica do Instituto Maria da Penha, Regina C�lia, porque os crimes entre quatro paredes geralmente t�m o conhecimento da comunidade do entorno, que tem que se sensibilizar. “N�o pode ser algo que voc� escuta e volta a dormir, a jantar. � um crime que deve incomodar a cada um de n�s.” 

Por outro lado, as falas dos porteiros Heleno e Elias revelam que a aplicabilidade da lei requer que a viol�ncia dom�stica seja vista como uma quest�o complexa. “A oferta de ajuda � sempre importante, mas n�o deve se reduzir � notifica��o policial. �s vezes, a den�ncia em si n�o garante a prote��o da mulher e ainda pode agravar a situa��o”, pondera a soci�loga e pesquisadora de viol�ncia contra a mulher Ana Paula Portella. 

A lei � importante, reitera a soci�loga, pois significa ampliar a compreens�o do problema e a responsabiliza��o social e coletiva. "Mas a mulher tem o direito, tem autonomia e agenciamento pr�prio para decidir o que quer fazer em rela��o � viol�ncia que vive.” A sugest�o da soci�loga � que os representantes do condom�nio, ao notarem ind�cios de viol�ncia dom�stica, busquem se aproximar da mulher, de prefer�ncia longe do agressor, para criar um espa�o de confian�a, antes que a situa��o piore. E, ent�o, perguntar como ela gostaria de ser ajudada na quest�o.

Qualifica��o

Heleno trabalha para uma administradora de condom�nios e conheceu a lei pernambucana em uma forma��o, mas ele foi uma exce��o entre os porteiros ouvidos pela reportagem. Para que a legisla��o recente possa ser efetivada, especialistas em prote��o de mulheres defendem que � preciso estabelecer uma pol�tica educativa e permanente de preven��o � viol�ncia dentro dos condom�nios. De prefer�ncia, com a cria��o de um protocolo de acolhimento e cuidado.

A qualifica��o sobre como comunicar uma viol�ncia evitaria desgastes como os que citamos aqui. "Mostrar quais as poss�veis estrat�gias para evitar problemas, mitigar riscos, garantindo a den�ncia e inibindo o conflito”, aponta Regina C�lia. 


Caminhos para condom�nios aplicarem a nova legisla��o


  • Informar aos porteiros, s�ndicos e lideran�as do pr�dio sobre a exist�ncia da lei;
  • Mostrar como a lei deve ser aplicada, quem pode aplic�-la e quais s�o os riscos envolvidos em uma den�ncia;
  • Instalar cartazes nos elevadores e �reas comuns;
  • Criar uma cartilha com uma pol�tica preventiva da viol�ncia dom�stica e familiar para o pr�dio;
  • Promover rodas de di�logo sobre viol�ncia dom�stica com os moradores;
  • Trazer o tema em reuni�es mensais sobre quest�es administrativas;
  • Criar um podcast, com servi�os informativos sobre o condom�nio;
  • Acionar de imediato a pol�cia em caso de flagrantes;
  • Registrar os casos nos livros de ocorr�ncia;
  • Criar uma rede de apoio e confian�a para se aproximar de uma v�tima de viol�ncia no pr�dio;
Fonte: Instituto Maria da Penha (IMP)


Meter a colher

cartaz Meter a colher
(foto: AzMina)
A startup Mete a Colher lan�ou uma cartilha quando a lei foi aprovada. A diretora Renata Albertim prop�e que os condom�nios informem sobre o que � a Lei Maria da Penha, o que � uma medida protetiva e trazer isso em reuni�es e palestras. "Mas os flagrantes devem ser casos de pol�cia", diz.

O porteiro Elias j� foi acionado por uma moradora para garantir o distanciamento estabelecido judicialmente, antes ele n�o sabia que o homem n�o poderia mais entrar no pr�dio. "Ningu�m me falou. Quando vi, ele j� estava puxando o bra�o dela. A� eu fui l� e conversei com eles”, contou Elias.

Promover rodas de di�logo no condom�nio tamb�m pode constranger poss�veis agressores. “Assim como precisamos reunir todos para construir uma escada no pr�dio, temos como incluir um programa de cidadania ativa entre eles”, acrescenta Regina C�lia, indicando o que considera ser "uma nova perspectiva de comunidade".

A cultura da educa��o e preven��o ajuda tamb�m a romper as barreiras estabelecidas pelas rela��es de poder entre moradores e funcion�rios, o que muitas vezes inibe a den�ncia. “Existe uma ordem de sil�ncio, pois nesses im�veis moram policiais, advogados, coron�is”, destacou Regina. 

Ainda que haja um longo caminho, d�vidas e preocupa��es para enfrentar a viol�ncia contra a mulher nos ambientes privados, o empenho das pessoas no entorno em ajudar as v�timas - agora por for�a da lei - parece um bom come�o. 

Depois que a s�ndica Daniele Parisio, 41 anos, administradora de um conjunto de pr�dios em Jaboat�o dos Guararapes, colou 27 cartazes e compartilhou informa��es sobre a lei, os casos esfriaram. “Nunca mais aconteceu nada. Eu sempre divulgo. E estamos sempre atentos.” O pr�ximo passo ser� criar um grupo de di�logo entre as mulheres, disse ela. “�s vezes, a v�tima n�o tem condi��es de sair da viol�ncia. E, assim, a gente pode estar evitando uma situa��o de chegar ao extremo, e salvar essa mulher.”


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