
Severina Ferreira finalmente tinha uma autoriza��o judicial para interromper a gesta��o do feto anenc�falo que carregava h� 7 meses na barriga, mas n�o achava hospital que aceitasse fazer o procedimento. A enfermeira Paula Viana pegou a m�o dessa mulher – no sentido mais amplo desse gesto – e juntas foram de uma unidade � outra, at� que, j� anoitecendo, entraram na sala de triagem do Cisam (Centro Integrado de Sa�de Amaury de Medeiros), no Recife.
“Por mim tudo bem, eu n�o tenho nenhum problema [com o aborto], mas os anestesistas n�o v�o fazer, vamos ter que esperar at� amanh�”, disse o m�dico de plant�o. “A� eu me arretei”, conta Paula, que o mandou procurar um profissional para iniciar o procedimento de imediato, nem que fosse preciso contratar algu�m, pois o hospital n�o poderia negar aquele atendimento. E assim foi feito.
O mart�rio de Severina – na Justi�a e na Sa�de – foi narrada no document�rio dirigido por Eliane Brum e D�bora Diniz, em 2005. Nessa �poca, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu o aborto em casos de anencefalia, o que s� foi revertido pelo pr�prio STF em 2012, com o depoimento de Severina. Mas a hist�ria que vamos contar agora � a da tamb�m pernambucana Paula Viana, 58 anos.
Enfermeira, parteira e ativista pelo aborto seguro – Paula aparece no filme ao lado de Severina peregrinando nos hospitais. Essa foi uma das v�rias situa��es em que ela esteve junto para garantir o exerc�cio do direito da mulher. H� 40 anos, ela percorre um caminho que �, sobretudo, feminista. Vai completar tr�s d�cadas como integrante e coordenadora do Grupo Curumim – Gesta��o e Parto.
Paula tornou-se uma refer�ncia importante nessa pol�tica da articula��o entre as redes de prote��o nos �ltimos 20 anos. O pouco que est� estabelecido na legisla��o em rela��o ao aborto vem sendo desrespeitado por autoridades e frentes religiosas fundamentalistas, e acaba sendo cumprido, muitas vezes, a partir de atua��es feministas como as de Paula.
Partos e abortos
O n�mero de partos que acompanhou, ela tem de cor: 116. Sozinha, como parteira, na casa das fam�lias, foram 16. J� a quantidade de abortos, Paula nunca contou porque sempre ocorreram de formas turbulentas, ainda que fossem permitidos por lei.
Ela foi excomungada da Igreja Cat�lica duas vezes pelo mesmo arcebispo – uma delas por garantir, em 2009, o aborto legal de uma menina de 9 anos estuprada pelo padrasto, que engravidou de g�meos. Paula a ajudou a sobreviver, pois ela n�o tinha condi��es f�sicas para gestar dois fetos.
Est� disposta a receber qualquer t�tulo para proteger as mulheres, e um dos seus principais pap�is � justamente o de articular, intervindo nas situa��es de desrespeito aos direitos. Ela conhece servi�os e profissionais da sa�de praticamente do Brasil inteiro, rodou 17 estados elaborando o programa nacional: Parto e Nascimento Domiciliar Assistido por Parteiras Tradicionais.
“Quando chega pra gente situa��es de aborto legal, ainda � uma grande dificuldade para que a mulher consiga atendimento”, testemunha Paula. Muitas v�timas precisam ir para Recife, mesmo esse sendo um direito garantido h� 80 anos no C�digo Penal Brasileiro. Os poucos lugares que realizam o aborto legal n�o atendem a demanda e isso piorou na pandemia.
Recentemente, Paula atuou no caso da menina capixaba de 10 anos, tamb�m v�tima de estupro, que precisou sair do interior do Esp�rito Santo para fazer o abortamento na capital pernambucana. Quando souberam da situa��o da garota, em agosto de 2020, rapidamente Paula entrou na articula��o e formou-se um grupo que acionou todos os atores que poderiam ajudar. “Liguei pra Ol�mpio [obstetra do Recife] e no outro dia a menina j� estava aqui”, recorda. Era preciso ser r�pido porque a crian�a entraria em situa��o de risco de vida.
Amigos e inimigos
Ol�mpio de Morais tamb�m foi excomungado e � conhecido como m�dico recifense defensor do direito ao aborto seguro. Apesar de ter o apoio dele e da unidade hospitalar, isso n�o evitou situa��es constrangedoras e humilhantes, lembra Paula, como ter que colocar a menina e a av� no porta-malas do carro para fugir da mobiliza��o de um grupo na frente do hospital que tentava impedir o procedimento legal.
“Paula � muito corajosa, sem d�vida nenhuma, � uma pessoa que eu admiro, que nos ajuda muito, e eu s� tenho a agradecer por ela estar em Pernambuco e ter uma proje��o nacional”, disse Ol�mpio, amigo dela h� 30 anos.
Encontrar parceiros na medicina como Ol�mpio para a pauta feminista nunca foi simples, aponta Paula. “Infelizmente, � uma minoria que tem essa participa��o pol�tica.” Ela vivenciou v�rias situa��es de viol�ncia no parto, o que a fez, inclusive, desistir por um tempo de ser enfermeira obstetra. “J� vi m�dico dar porrada no joelho para a mulher abrir a perna”. Se identificou depois com a parter�a domiciliar e humanizada.
Com o profissional que atendeu o caso da anencefalia, Paula lembra da insensibilidade que ele teve ao colocar um sonar em alto volume para que todos na sala ouvissem o batimento do cora��o daquele feto, inclusive Severina. “O senhor pode baixar o volume?”, perguntou Paula.
O aborto � uma situa��o natural, t�o comum quanto o parto, diz Paula Viana, mas as mulheres s�o discriminadas porque, em geral, as pessoas acham que a decis�o � tomada sem responsabilidade. “Na verdade, essas mulheres t�m um comprometimento com a vida n�o s� delas nessa situa��o, mas da fam�lia e dos outros filhos.”
Injusti�a reprodutiva
Deparar-se com a mortalidade materna foi o que levou Paula ao ativismo, e a conduz at� hoje a continuar na resist�ncia, mesmo cansada diante do cen�rio pol�tico atual. Uma das mem�rias mais marcantes que ela tem de pequena foi quando, em Olinda, sua cidade natal, uma menina morreu por aborto. “Eu n�o sabia que isso podia matar, fiquei com muito medo de engravidar.”
A hist�ria foi parar numa reda��o que ela escreveu no in�cio do curso de enfermagem, e, a partir da�, Paula conta das persegui��es que as professoras, maioria freiras cat�licas, na �poca, faziam.
Hoje, ela incluiria naquela reda��o que os falecimentos por aborto s�o 100% evit�veis, e que descriminalizar faz parte de um processo de justi�a para muitas mulheres. “A gente v� at� os abortos espont�neos causarem a morte, por um comportamento da equipe de sa�de que negligenciou o atendimento. � inadmiss�vel a mulher sangrar dentro do hospital at� morrer.”
Paula se baseia na ci�ncia e na experi�ncia de 30 anos nos comit�s de estudo e preven��o da morte materna de Recife e Pernambuco (representando o Grupo Curumim). Ela integra um grupo que toda semana investiga a trajet�ria das mulheres que morreram na gesta��o, no aborto e no parto, desde 1992. “� um trabalho muito impactante, tem momentos que eu paro, porque parece que estamos enxugando gelo”, desabafa ela sobre um desespero que chama de “injusti�a reprodutiva”.
A mulher que sofre viol�ncia sexual n�o estava nem pensando em engravidar, “ela foi agredida, quer ser tratada”, destaca Paula. Por isso, que a porta de entrada para o abortamento deve ser o servi�o social, mudando a perspectiva de que � algo que est� s� no corpo.
Corpos
Foi na funda��o da Rede Nacional pela Humaniza��o do Parto e Nascimento, a Rehuna, em 1993, que ela passou a pontuar a diferencia��o entre o parto e o nascimento. Apesar de serem eventos integrados, t�m impactos distintos na pessoa que est� parindo e na que est� nascendo.
“A situa��o de viol�ncia obst�trica deve ser visibilizada tamb�m na situa��o de aborto e n�o somente na hora do parto”, explica Paula. A busca sempre � aprender e saber lidar com cada mulher, dentro dessa sociedade machista, racista, mis�gina, avalia.
Companheira pela legaliza��o do aborto, Ver�nica Ferreira, do SOS Corpo (Instituto Feminista para a Democracia), destaca a prontid�o de Paula em responder situa��es de viola��o. “Como dizem nossas irm�s latino-americanas, Paula p�e corpo na luta”, afirma, acrescentando que a amiga � uma refer�ncia pelos direitos das mulheres “a ver o parto sem medo, sem amea�a e sem risco”.
Jornadas feministas
Na d�cada de 80, muitos grupos de mulheres foram se formando. Foram as feministas que debateram com sanitaristas e deram essa no��o de g�nero e integralidade ao Sistema �nico de Sa�de, o SUS, que antes, segundo Paula, girava em torno s� da maternidade. Ela viu nesse trabalho das pol�ticas p�blicas o seu lugar. Nunca quis entrar em partidos pol�ticos, por se incomodar com a disputa de poder e o machismo entranhado neste espa�o. Mas fez parte de comunidades anarquistas, que, para ela, estavam mais pr�ximas da realidade, apesar de brigarem pela “utopia”.
Paula nunca pensou que fosse f�cil legalizar o aborto no Brasil, mas confessa que teve momentos em que achou que conseguiriam mudar algo, como quando ocorreram as Confer�ncias Nacionais de Pol�tica para Mulheres. “A gente trabalhou muito, 120 mil mulheres de todo o Brasil constru�ram um documento. Formamos a primeira coaliz�o feminista”, conta. As jornadas brasileiras pelo Aborto Legal e Seguro ocorreram em 2004, e Paula foi uma das coordenadoras.
Seria levado ao Congresso Nacional um texto de descriminaliza��o do aborto at� a d�cima segunda semana de gesta��o, mas n�o houve apoio do governo � �poca e acabou se resumindo ali a um ato simb�lico, de resist�ncia. “Mesmo assim eu ainda tive esperan�a.” Agora, “pelo legislativo n�o tem mais horizonte pra isso, a gente est� amea�ada”, preocupa-se Paula.
Quem luta continuamente, h� 40 anos, n�o perde muito tempo com o des�nimo. Logo em seguida ao desabafo, Paula cita que hoje tem muita gente nessa resist�ncia: coletivos, m�dicas, assistentes sociais, psic�logas, comunicadoras… “Estou no grupo organizador do F�rum Intersetorial de Servi�os Brasileiros de Aborto Previsto em Lei, tem sido super legal ver gente nova chegando”. Durante uma marcha do dia 8 de mar�o, em depoimento em v�deo, Paula Viana fala valente: “as mulheres sempre foram protagonistas da transforma��o da sociedade, n�s vamos mudar esse Brasil”.