
Quando Maria Jos� de Oliveira Ara�jo nasceu, em 1949, o direito � interrup��o da gesta��o j� era algo garantido em lei no Brasil nos casos de risco de morte da mulher e de gravidez decorrente de estupro. Mas o acesso das mulheres a esse direito, que estava previsto no C�digo Penal de 1940, s� come�ou a se concretizar mais de quarenta anos depois, em 1989, com a participa��o de Maria Jos� e de muitas companheiras feministas na cria��o do primeiro servi�o p�blico de aborto legal do pa�s, em S�o Paulo.
Na �poca, ela atuava como Coordenadora da �rea T�cnica de Sa�de da Mulher, na gest�o da prefeita Luiza Erundina. O Hospital Municipal Arthur Ribeiro Saboya, mais conhecido como Hospital Jabaquara, na zona sul de S�o Paulo, come�ou a oferecer �s v�timas de viol�ncia sexual o atendimento a que tinham direito pela lei e que lhes era sistematicamente negado. Maria Jos� ficou meses fazendo forma��o com todos os profissionais da unidade, dos porteiros aos m�dicos para que as mulheres que buscassem o servi�o fossem atendidas corretamente. Atua��o que lhe rendeu den�ncias e amea�as � vida, mas que n�o parou.
“Ningu�m um dia pode falar nessa luta [pelo aborto seguro] sem citar o nome de Maz�”, comenta Greice Menezes, amiga dela, m�dica e pesquisadora do Instituto de Sa�de Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). “De todas as qualidades que Maz� tem, talvez o comprometimento dela com o outro, com os direitos e a vida das mulheres, seja algo a ser ressaltado”, aponta Greice, destacando ainda que Maria Jos� mant�m a mesma for�a todos esses anos. “Ela tem sempre uma firmeza e uma grande indigna��o diante da injusti�a.” Nos espa�os em que Maz� ocupou, ela fez a diferen�a, pois, definitivamente, n�o � do tipo de pessoa que fica calada, “ela � a que vai falar, vai agir e vai esperan�ar”.
M�dica com atua��o cl�nica na pediatria e na ginecologia, gestora p�blica, psicanalista e ativista feminista, Maria Jos�, 72 anos, prefere ser chamada de Maz�. Ela tem sua hist�ria de vida intimamente ligada � luta pelos direitos das mulheres, especialmente os sexuais e reprodutivos.
Hoje, com mais de cinquenta anos dedicados � causa, Maz� � contundente em dizer: “O Brasil � perverso com as mulheres e tem uma d�vida gigantesca com elas”. Mulheres negras, pobres, da periferia, s�o as mais atingidas, avalia Maz�. “E, sobretudo, as ind�genas, que est�o sendo fortemente violadas, e as trabalhadoras rurais, que n�o t�m acesso a um monte de necessidades b�sicas, de sa�de, de educa��o.”
Pol�ticas que salvam
Maz� elaborou pol�ticas que salvaram a vida de milhares de mulheres, que provavelmente iriam se submeter a abortos clandestinos, apesar de terem direito � interrup��o segura. Fez isso durante os anos em que atuou enquanto gestora p�blica, entre 1989 e 2006, em cargos municipal e federal (sempre na �rea de aten��o � mulher). Mesmo n�o ocupando mais cargos pol�ticos, ela segue na articula��o para o fortalecimento da rede de aborto legal do pa�s, especialmente, na Bahia, onde mora atualmente.
� uma das fundadoras da Rede Feminista de Sa�de, pertence � Rede M�dica Pelo Direito de Decidir e, este ano, passou a integrar o F�rum Estadual Sobre o Aborto, cujas discuss�es visam tamb�m ampliar a rede, hoje com apenas cinco unidades hospitalares habilitadas a realizar a interrup��o legal.
Os muitos lugares em que Maz� viveu, no Brasil e no exterior, tiveram papel decisivo em sua forma��o e engajamento na luta feminista, mas o primeiro exemplo que recebeu veio ainda em casa, no interior da Bahia.
Em plena d�cada de 50 – �poca em que as Organiza��es das Na��es Unidas (ONU) acabavam de reconhecer pela primeira vez a igualdade de direitos entre homens e mulheres – seus pais j� tratavam a independ�ncia dos filhos sem distin��o de g�nero. Na fam�lia de classe m�dia, os oito irm�os (tr�s homens e cinco mulheres) tiveram acesso garantido � escola.
Foi por conta dos estudos que, aos 8 anos, Maria Jos� se mudou de Teofil�ndia para a capital, Salvador, distante cerca de 220 quil�metros. A vontade de fazer Medicina ganhou forma no gin�sio, �s v�speras do vestibular. “Procurava uma profiss�o onde pudesse exercer minha humanidade”, conta. Em 1975, se formou m�dica pela Faculdade Bahiana de Medicina.
Como profissional, os caminhos que a conduziram ao exerc�cio de sua humanidade transcenderam os muros dos hospitais. Enquanto fazia resid�ncia em pediatria no Rio de Janeiro, a conquista de uma bolsa para estudar sa�de materno-infantil na Universidade Sorbonne a levou a Paris.
Quem a conhece percebe sua constru��o diversa, na bagagem de conhecimentos e tamb�m no sotaque, que mant�m a base da cidade do interior, mas � cheio de outros sons, dos lugares por onde ela passou: S�o Paulo, Su��a, Fran�a.
Movimentos feministas
Era 1977, �poca das ditaduras latino-americanas. Paris havia se tornado destino certeiro de muitos refugiados pol�ticos. “Quando eu fui pra Fran�a eu n�o era ativista, me tornei l�.” O movimento das mulheres na Europa estava no auge, “em plena ebuli��o”, recorda, “tinha passeatas pelo direito ao aborto com um milh�o de pessoas”.
Um dos espa�os fundamentais para seu engajamento pol�tico foi o C�rculo das Mulheres Brasileiras em Paris, formado principalmente por jovens estudantes de classe m�dia que fugiram do Brasil ap�s a edi��o do AI-5. Maz� participou do grupo por quase dois dos seus cinco anos de exist�ncia. O C�rculo chegou ao fim em meados de 1979, com o retorno de muitas companheiras ao Brasil ap�s a assinatura da Lei da Anistia.
Nessa altura, o movimento de mulheres j� estava presente na academia, nos sindicatos e nos movimentos sociais. Em todos esses espa�os, a luta feminista j� ditava novas formas de assist�ncia � sa�de reprodutiva das mulheres, diferente do cuidado dispensado pela medicina tradicional. Na Sui�a, onde tamb�m teve oportunidade de estudar, Maria Jos� trabalhou em um ambulat�rio feminista de aten��o prim�ria � sa�de da mulher.
De volta ao Brasil, no in�cio dos anos 80, toda essa experi�ncia e pr�tica deu origem ao Coletivo Feminista Sexualidade e Sa�de, em S�o Paulo – com um ambulat�rio que implementou, pela primeira vez no pa�s, uma abordagem de cuidado centrada nos direitos humanos das mulheres e atenta �s quest�es reprodutivas, obst�tricas e ginecol�gicas.
“Fundamos associa��es e laborat�rios em que as mulheres atendidas eram vistas enquanto sujeitas de sua pr�pria sa�de.” O exame ginecol�gico, contou Maz�, era feito numa cama normal. “A gente colocava o esp�culo de pl�stico para a mulher ver o colo do �tero dela, colhia a secre��o vaginal, e elas participavam do processo.”
Sua casa chegou a ser invadida
Num pa�s machista, claro que a forma com que esse grupos lidavam com a autonomia da mulher em rela��o ao seu pr�prio corpo iria encontrar barreiras. Muitas foram as amea�as sofridas pelas feministas, como na �poca da implementa��o do primeiro programa de aborto legal do pa�s, no Hospital Jabaquara, em S�o Paulo.
Maz� passou por muitos problemas nesse per�odo, porque tamb�m trabalhava no coletivo feminista. Ela era diretora do ambulat�rio, que atendia casos de viol�ncia sexual, e sofreu muita persegui��o. Ela chegou a ter a casa invadida e revirada, xingamentos eram deixados em sua secret�ria eletr�nica. Respondeu a inqu�ritos policiais e contou com o apoio de advogadas feministas. “Tudo isso transtornou muito a minha vida”, conta Maz�, numa fala que transparece ainda hoje certo abalo.
Mas nada foi capaz de faz�-la parar. Certa de estar � frente de um programa fundamental para a garantia dos m�nimos direitos � popula��o feminina, seguiu formulando pol�ticas p�blicas. S� viu algumas a��es se concretizarem muitos anos depois, como a pol�tica que garantiu a n�o exig�ncia do boletim de ocorr�ncia em casos de aborto legal – e que at� hoje � descumprida.
O comportamento arcaico de muitos profissionais de sa�de est�, para Maz�, no pano de fundo deste descumprimento. Muitos acham que as mulheres que buscam seus direitos est�o mentindo sobre as viol�ncias que sofreram, que elas engravidam porque n�o usaram um m�todo contraceptivo, ou ele falhou, e que querem aproveitar a n�o exig�ncia do boletim de ocorr�ncia para fazer um aborto. “Essa ideia de que isso seria uma ‘brecha’ n�o corresponde � realidade. H� toda uma norma, uma s�rie de protocolos. � dif�cil uma mulher mentir para se submeter a tudo isso”, atesta.
Diante dos entraves no acesso ao direito � interrup��o da gesta��o em casos previstos pela lei, que passa ainda pela dificuldade de encontrar informa��es sobre os hospitais habilitados a realizar o procedimento, Maz� n�o cansa de repetir: “E as vidas das mulheres? Aonde fica?”