(none) || (none)

Continue lendo os seus conte�dos favoritos.

Assine o Estado de Minas.

price

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e seguran�a do Google para fazer a assinatura.

Assine agora o Estado de Minas por R$ 9,90/m�s. ASSINE AGORA >>

Publicidade

Estado de Minas NOVEMBRO NEGRO

Ventre livre? 150 anos depois, m�es negras lutam pela liberdade dos filhos

Mulheres resistem com a��es coletivas para tornar realidade a liberta��o que nunca saiu do papel


18/11/2021 14:01 - atualizado 18/11/2021 14:19

Ilustração com a imagem de várias mulheres
(foto: AzMina)

 
Joelma Lima, 39 anos, compreendeu que lutar � o �nico caminho para que outras crian�as n�o sofram o mesmo que seu filho assassinado por um policial militar quando brincava com um amigo pr�ximo � sua casa. M�rio Andrade s� tinha 14 anos, uma bicicleta, sonhos de construir uma casa para a m�e, e foi executado brutalmente, sem qualquer possibilidade de rea��o.

“O exterm�nio do meu filho mudou completamente a minha vida. M�rio n�o teve liberdade nem sequer para brincar”, afirmou Joelma. As m�es que moram em favelas, diz ela, “n�o t�m direito de ter os filhos brincando na rua e de crescerem livres”.

O relato dessa m�e mostra que a Lei do Ventre Livre at� hoje n�o vale. Na �poca em que foi promulgada era mais um plano das elites brancas para adiar o rompimento radical do sistema escravista. O texto de 1871 estabelecia que filhos de mulheres negras escravizadas nasceriam livres, mas aos 8 anos de vida os senhores de escravos poderiam escolher entre receber do Estado brasileiro uma indeniza��o de 600 mil r�is ou cuidar – e valer-se dos servi�os da pessoa escravizada – at� os 21 anos, com algumas responsabilidades de prover educa��o. 

PAGARAM COM A JUVENTUDE

O que a hist�ria registra � que, no geral, um percentual muito pequeno de senhores entregou as crian�as ao governo, e um percentual menor ainda garantiu a educa��o formal para os jovens negros. Assim, a legisla��o talvez s� tenha servido para que as m�es enxergassem nos frutos de seus ventres a possibilidade de lutar para garantir que a liberdade se efetivasse. Muitas crian�as e jovens bancaram a pr�pria liberta��o com o trabalho realizado durante todo o per�odo de tutela. M�rio Andrade pagou com a vida. 
 
Joelma Lima de punha fechado e braços erguidos em protesto pela morte do filho
Joelma Lima em protesto pelo filho (foto: Arquivo pessoal)
 
 
Foram dois anos e quatro meses at� que a Justi�a pelo filho de Joelma fosse conquistada em 2018. Um tempo doloroso para a m�e, mas ela n�o parou por a� e fundou o Centro Comunit�rio M�rio Andrade em mem�ria ao filho. Oferece atividades de educa��o e recrea��o aos jovens do bairro do Ibura, periferia do Recife, capital pernambucana. Hoje, Joelma vive para que o seu povo tenha voz, saiba dos seus direitos e resista junto com ela. 

“Se a gente for esperar pelo estado, que nunca fez nada todos esses anos, n�o vamos para lugar nenhum”. O desejo de Joelma � trazer para crian�as, adolescentes e m�es o poder “de ir e vir sem medo”, o direito de viver. 

Cada vez mais gente participa do Centro Comunit�rio. � com suas duas filhas e mais duas beb�s, rec�m adotadas por ela, que Joelma transforma, diariamente, o sonho de M�rio em um sonho coletivo por liberdade.  

A RESIST�NCIA DE M�ES PERIF�RICAS

Perto de Joelma, na periferia do munic�pio de Olinda (PE), Elis�ngela Maranh�o, 49 anos, tamb�m acolhe f�sica e emocionalmente muitas mulheres com o grupo M�es da Saudade – de filhos mortos pelo tr�fico ou pela pol�cia. Conhecida como Anjinha, no bairro de Peixinhos ela � uma refer�ncia para m�es jovens e mais velhas. Integra ainda o Coletivo Mulheres Perif�ricas LGBTQI+. 

“Basta olhar para uma comunidade pobre para entender o tamanho do desafio para que ventres negros sejam livres”, fala Anjinha, que foi m�e solo na adolesc�ncia. Para ela, tanto a Lei �urea como a Lei do Ventre Livre s�o duas perversidades. “Crian�as e mulheres negras pobres n�o t�m liberdade. Muitas vivem em uma rela��o semelhante � escravid�o com a exclus�o social”, afirma. 

O trabalho e estrat�gia mais urgente de Anjinha � o de quebrar ciclos. Diante da falta de direitos, do exterm�nio de meninos e jovens, muitas m�es, av�s, irm�s precisam de ajuda. Uma das principais fontes de resist�ncia das mulheres negras � primeiro querer ficar viva. “Assim n�s lutamos juntas pela liberdade dos nossos filhos e filhas”, diz. 

Falar das boas lembran�as e resgatar o valor da vida dos meninos e meninas que foram v�timas da viol�ncia � a pr�tica dos ciclos restaurativos do grupo M�es da Saudade. “Quando essa m�e fala, ela transforma o luto em luta, ela consegue lidar com a dor”, explica Anjinha. 

Fortalecidas e em grupo, a cobran�a se volta para o Estado, para denunciar a falta de pol�ticas p�blicas e a viol�ncia policial. No corpo a corpo, amparando o choro de outras mulheres, Anjinha protege suas crian�as. 

FILHO NEGRO CRIADO EM REDE

Em 2014, quando Akins Samuel nasceu, Juliana Gon�alves, 35 anos, teve ao seu lado mulheres que a ajudaram a come�ar a caminhada da maternidade. “Parir � uma experi�ncia de morte e vida”, percebe Juliana. Foi com outras mulheres negras, como a av� que esteve presente no seu parto, que ela entendeu que redes de apoio s�o uma sabedoria ancestral para lidar com a solid�o, o peso e responsabilidade de ser m�e, sobretudo, negra.

Ela vem de um ambiente familiar com muitas mulheres e poucos homens, como muitas fam�lias negras. “Passei pela experi�ncia do abandono pelo pai do meu filho quando estava com cinco meses de gesta��o”, contou Juliana. Hoje, com 7 anos, Akins � um menino negro de pele escura e cabelo black lindo. Juliana aprendeu com a m�e – av� de Akins – que, desde que ela era crian�a, exaltava a beleza dos filhos e dos cabelos, mas n�o de uma forma pol�tica. 

Na universidade, ela entendeu o que significava ser uma mulher negra. Cursou jornalismo na faculdade paulista Mackenzie, em uma sala com 60 pessoas – apenas 4 negros. A partir da�, come�ou a participar de coletivos negros e depois do movimento organizado, quando esteve em uma roda s� com mulheres negras pela primeira vez. Mais tarde, Juliana ajudou a construir a Marcha das Mulheres Negras de S�o Paulo, coletivo que comp�e at� hoje.

Nesse ativismo, ela busca criar os caminhos para liberdade efetiva do seu filho. Um menino negro que ser� um homem negro no Brasil – e, por isso, h� preocupa��o e urg�ncia. “A sociedade e o racismo fazem com que eu tenha que preparar ele e isso j� � uma crueldade”, afirma Juliana. Como ele vive em um ambiente militante acolhedor, precisou que lhe fosse dito que nem todo mundo vai ser legal com ele. 

“Minha perspectiva de liberdade � que ele tenha op��es, saiba se defender, se afirmar como pessoa e conhecer sua hist�ria. Esse � um lugar de pot�ncia”. 

“A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se far� ouvir a resson�ncia
O eco da vida-liberdade.”
Concei��o Evaristo, poema “Vozes Mulheres”. 

BURLANDO O SISTEMA

A historiadora e professora da Universidade Federal do Rec�ncavo da Bahia (UFRB) Martha Rosa Figueira Queiroz explica que construir redes de apoio m�tuo foi uma estrat�gia extremamente eficaz e s�bia das mulheres negras. “Sem a cren�a no valor das trocas m�tuas, na coletividade, n�s n�o ter�amos chegado at� aqui, nem n�s, nem nossas fam�lias”.

As mulheres criaram postos no com�rcio informal e no trabalho dom�stico em busca da autonomia financeira, que no s�culo 19 possibilitou a compra de alforrias para elas e para as fam�lias negras. “Elas vendiam todo tipo de coisas. Temos as ganhadeiras no per�odo escravista, comerciantes, costureiras, lavadeiras”,  destaca Martha Rosa. E esse trabalho exaustivo permanece at� hoje, assim como os meios criativos para garantir o sustento da fam�lia. 

Outro objetivo perseguido pelas mulheres negras e passado como heran�a valiosa foi a educa��o – a possibilidade de estudar e se formar. “Todas n�s temos lembran�as de nossas av�s e m�es dizendo que n�o nos deixaria nada [em bens materiais], mas deixaria a educa��o”, recorda Martha. 

A coletividade como um princ�pio, a busca pela autonomia financeira e a educa��o como um valor formam as fam�lias negras, que burlam o sistema escravocrata. “S�o 150 anos da lei, mas s�o mais de 150 anos que as mulheres negras est�o firmes para que seus ventres sejam efetivamente livres”, reflete a historiadora, apontando que elas est�o nas organiza��es de bairro, s�o professoras, escritoras e artistas, comprometidas com a melhoria de vida da popula��o negra. 

EDUCA��O E “MUSCULATURA EMOCIONAL”

Quando se olha as fotos de formatura, est� a alegria de uma fam�lia negra de formar uma filha, um filho, no ensino m�dio, nos cursos profissionalizantes, ainda mais nas faculdades, indica Martha Rosa. “Ter um filho formado era a grande batalha de uma mulher negra, pois ela sabia que ia ser mais um elemento a fortalecer a trajet�ria de liberta��o”, diz a estudiosa.

A educa��o se tornou uma bandeira de luta do movimento negro organizado com as a��es afirmativas nas universidades p�blicas. Ap�s as primeiras experi�ncias de a��es afirmativas no ensino superior para inclus�o de negros, o percentual de pretos e pardos que conclu�ram gradua��o passou de 2,2% para 9,3% (de 2000 a 2017), conforme dados do IBGE e do Censo.

A partir dos acessos e oportunidades de ascens�o que tiveram, o povo negro deu seguimento � luta por liberdade e combate ao racismo. Chris Gomes, 43 anos, foi a primeira de sua fam�lia a entrar na faculdade. Vinda de uma fam�lia pobre, sua m�e � uma figura central na sua forma��o: foi uma crian�a escravizada, s� estudou at� a 7ª s�rie e teve o primeiro sapato aos 8 anos de idade. Cultivou na filha o desejo de estudar, de ser independente desde sempre. “Cresci com ela falando que n�o deveria me submeter, nunca, a ningu�m”, recorda.

A li��o aprendida com a m�e ser� passada adiante com a pequena Serena Odara, 4 anos. Chris se preocupa, especialmente, em formar na filha uma “musculatura emocional”, nas palavras dela, um acolhimento individual que � tamb�m uma tentativa de curar feridas ancestrais. 

A educa��o para saber reagir a alguma agress�o racista come�a em casa, no fortalecimento da autoestima e na cria��o de redes. “A luta pela liberdade � uma constante e eu tento utilizar as ferramentas que eu tenho”, conta Chris. 

Das gera��es antigas �s atuais, se mant�m na narrativa dessas mulheres o sentido de garantir a estabilidade emocional, e para isso contam com o apoio de uma amiga, de uma comadre, de m�e, irm�s, filhas, tias, sobrinhas… Uma hist�ria comum a muitas fam�lias, por exemplo, � a tia que melhorou de vida e acolheu sobrinhos na capital para que pudessem estudar. 

INSUBMISSAS, ELAS DEIXAM LEGADOS

Diversos relatos historiogr�ficos, na poesia e na literatura, d�o conta das estrat�gias, da ginga, da ast�cia e intelig�ncia que negras e negros precisaram ter para conquistar a liberdade. E coube �s mulheres carregar, proteger e transmitir os saberes da ancestralidade do povo negro.   

Lu�sa Mahin, uma negra liberta e quituteira que viveu em Salvador, foi m�e de Lu�s Gama, jornalista, escritor e advogado autodidata, importante abolicionista do s�culo 19. Lu�sa � considerada uma das maiores lideran�as negras contra a escravid�o na Bahia e teria participado ativamente da Revolta dos Mal�s, em 1835.

S�mbolo de resist�ncia e insurrei��o negra e feminina, a mem�ria de Lu�sa Mahin vem sendo resgatada nos �ltimos anos. Ventres negros como o dela deram � luz a revolucion�rios que continuiram o enfrentamento � escravid�o no Brasil. Muito antes de o Estado aprovar a Lei do Ventre Livre, Dandaras, Marias Firminas, Terezas de Benguela j� estavam na luta e deixaram seus legados.
 
Infográfico
(foto: AzMina)
 

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)