
Nas v�speras dos dias de feira, Lucivanda Rodrigues da Silva vai dormir por volta da meia-noite, depois de todos os afazeres dom�sticos, e �s 3h da madrugada j� est� de p�. A barraca onde ela coloca as hortali�as, frutas, cana descascada e picada, pamonha e outros alimentos precisa estar montada �s 5:30 para o in�cio das vendas. E o povo pensa que quem faz isso tudo � o marido.
"Ningu�m diz que compra a couve da Dona Maria, apesar de ser ela quem planta, colhe e prepara; as pessoas falam: a couve do Seu Z�, porque � ele quem vende na feira”, exemplifica Lucivanda sobre a invisibiliza��o do trabalho das mulheres no campo. � ela quem cuida dos canteiros e de todo o manejo da horta, desde o plantio � colheita, at� chegar nas m�os dos consumidores.
A feira da agricultura familiar de Governador Valadares, em Minas Gerais, ocorre todas �s segundas e quintas. “Quase todo trabalhador descansa no domingo. Mas se a gente aqui da ro�a parar um diazinho sequer, o Brasil n�o come”, diz Lucivanda, que produz tudo de forma agroecol�gica na sua propriedade de 11 mil metros quadrados, a 8 km da cidade.
Plantar, colher, preparar, vender e alimentar comunidades de maneira sustent�vel. O servi�o, que exige tanto fisicamente, se soma aos cuidados da casa e da fam�lia - que segue sobrecarregando mulheres -, e ainda arruma-se tempo para a luta social. Lucivanda faz parte do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) h� 15 anos e, junto com agricultoras de todo o pa�s e da Am�rica Latina, organiza as pautas e as atividades do Feminismo Popular Campon�s no Brasil. Uma resist�ncia contra a precariza��o do trabalho delas.
Apenas 12% das propriedades rurais no Brasil pertencem a mulheres - e por serem �reas pequenas (menores de 5 hectares) isso corresponde a somente 5% das terras do pa�s. J� os homens s�o donos de 88% das propriedades e quase a totalidade das terras brasileiras, de acordo com a pesquisa Terrenos da Desigualdade, realizada pela Oxfam Brasil em 2016.
Preconceitos enraizados

As mulheres n�o s�o propriet�rias, mas est�o mais presentes no campo, chegando a representar 80% dos trabalhadores na produ��o nacional da agricultura familiar, conforme o �ltimo balan�o do Programa de Aquisi��o de Alimentos (PAA), de 2019, divulgado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Elas trabalham em grande parte das propriedades rurais, dos maridos ou de terceiros.
Nos pedidos de cr�dito rural, existe muito preconceito com as mulheres porque os credores n�o acham que elas ser�o capazes de produzir o suficiente para quitar a d�vida. Algumas iniciativas e propostas de lei tentam mudar isso. O Elas no Congresso - projeto da revista AzMina - mapeou pelo menos dois PLs nesse sentido em tramita��o na C�mara dos Deputado
O Pronaf Mulher, que � uma linha de cr�dito espec�fica para mulheres, tamb�m surgiu para driblar essa dificuldade, mas Lucivanda n�o conhece nenhum caso de uma mulher que conseguiu ter um cr�dito aprovado neste projeto, tamanha � a burocracia.
Por produzirem a maioria dos alimentos, as mulheres procuram se informar e se regularizar para fazer parte de programas como o PAA e o PNAE. O primeiro � uma das principais pol�ticas de apoio e incentivo � agricultura familiar no Brasil. Por meio do programa, agricultores, cooperativas e associa��es podem vender seus produtos para �rg�os p�blicos, sem necessidade de licita��o.
Movimento de mulheres
O enfrentamento das mulheres no campo n�o tem tanta visibilidade nas redes sociais, na m�dia ou mesmo nas universidades, mas a organiza��o das agricultoras brasileiras n�o � recente. A milit�ncia das camponesas j� tem cerca de 40 anos e, antes da funda��o do Movimento das Mulheres Camponesas, em 2006, ocorria nos sindicatos rurais municipais, estaduais e na Confedera��o Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura (Contag).

Mas, como contou Lucivanda, a participa��o das mulheres nesses espa�os n�o era suficiente para garantir que as pautas feministas prosperassem. “Nos movimentos mistos, quem toma as decis�es s�o os homens. E nossas reivindica��es eram atropeladas e abafadas”.
A cria��o da entidade e a oficializa��o do feminismo dentro dos movimentos sociais de agricultores quebrou um paradigma. No in�cio, muitos integrantes dos sindicatos e outros movimentos eram contr�rios � funda��o do MMC. "Havia uma ideia de que se nos assum�ssemos como feministas estar�amos dividindo as frentes de lutas no campo e isso nos enfraqueceria", lembra Lucivanda.
Fracos j� eram os direitos delas. At� 1962, mulheres casadas n�o podiam adquirir ou possuir propriedade em seu nome. Foram muitas batalhas travadas para conquistar direitos m�nimos. Mas a situa��o das brasileiras no campo ainda � mais desigual do que nas cidades.
Plantando direitos

A camponesa Martinha Jorge Moreira foi a primeira trabalhadora rural a conseguir aux�lio-maternidade na sua cidade, Governador Valadares (MG). "Tive que insistir", disse ela. Foi preciso que o sindicato providenciasse v�rios documentos e depois a mulher tinha de passar por entrevistas cheias de preconceito e intimida��o no Minist�rio P�blico e no INSS.
"Todos os dias eu ia ao INSS e escutava uma desculpa diferente. Eles n�o sabiam como protocolar meu pedido no sistema". E ela s� conseguiu o benef�cio quando um funcion�rio experiente veio transferido de outra cidade. "Valeu a pena porque isso abriu o caminho para outras mulheres”, contou Martinha, que tamb�m foi uma das principais articuladoras do MMC. Atualmente, ela vive em um dos assentamentos do Movimento Sem Terra (MST) na regi�o do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais.
Martinha enfatiza que, mesmo que alguns direitos estejam assegurados hoje no Brasil, as camponesas ainda precisam resistir para garantir que n�o haja retrocessos na legisla��o.
Uma vit�ria recente foi a manuten��o, durante a Reforma da Previd�ncia realizada em 2017, dos direitos que as trabalhadoras rurais haviam adquirido em 1993. Enquanto os trabalhadores do regime de Consolida��o das Leis do Trabalho (CLT) sofreram com a flexibiliza��o de regras relativas � jornada de trabalho, maternidade e aposentadoria, boa parte dessas altera��es n�o se estenderam ao regime rural. Isso foi gra�as a uma mobiliza��o das agricultoras em Bras�lia.
Uma busca di�ria por autonomia
� no dia a dia com as mulheres do campo, com a realiza��o de mutir�es de plantio, feiras e encontros, que o movimento tem ganhado corpo e voz. As atividades incluem ensinar trabalhadoras rurais a ler e escrever, providenciar documentos como a carteira de identidade; promover consultorias para otimizar a produ��o e a venda de alimentos em feiras, cooperativas e programas governamentais; al�m de organizar grupos de estudo para conscientiza��o sobre viol�ncia dom�stica, igualdade de g�nero, educa��o sexual e sa�de da mulher.
Para a diretora nacional do MMC, Michela Cala�a, o termo “feminismo” � muito gen�rico para definir os enfrentamentos das mulheres do campo, que incluem quilombolas, ind�genas, pescadores, extrativistas, ribeirinhos, quebradeiras de coco, entre outros grupos.
Por isso, elas demoraram a se declarar feministas. A Diretora Nacional do Movimento das Mulheres Camponesas esclarece que havia uma diverg�ncia conceitual porque se entendia feminismo como um movimento europeu, branco, que veio da coloniza��o. "Com o tempo, entendemos que o feminismo � mais do que esse estere�tipo".
Optar pelo uso do termo "Feminismo Campon�s Popular" trouxe a perspectiva de um feminismo alicer�ado no campesinato, que se constr�i na luta popular e no trabalho de base e entende o campon�s na sua diversidade. "Isso nos deu pertencimento”, falou Michela.
Conhe�a a Marcha das Margaridas
De quatro em quatro anos, milhares de trabalhadoras rurais do pa�s se re�nem em Bras�lia para reivindicar direitos e melhorias. � a maior mobiliza��o nacional das mulheres do campo, que ocorre desde os anos 2000, ap�s a conquista dos direitos previdenci�rios, a sindicaliza��o e a cria��o, nos anos 90, das comiss�es e coordena��es de mulheres. O nome � uma homenagem � nordestina Margarida Maria Alves, que presidiu por 12 anos o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, na Para�ba, e foi brutalmente assassinada em 12 de agosto de 1983.
G�nero dentro das entidades
Al�m do MMC e dos sindicatos, outros movimentos sociais possuem setores de g�nero que atuam a partir do Feminismo Campon�s Popular. � o caso do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e do MST.
S�o feitas reuni�es para abordar quest�es como a divis�o igualit�ria do trabalho dom�stico e a independ�ncia financeira da mulher. Existe uma falsa ideia de que a mulher do campo n�o trabalha na ro�a, s� ajuda o homem. “Mas quem produz diversidade de alimentos � a mulher porque � ela quem cuida das hortas e das pequenas cria��es”, explica Edilene.
Nos assentamentos, a toler�ncia � zero para casos de agress�o e viol�ncia dom�stica. Edilene Cenourinha dos Santos, que coordena o setor de g�nero do MST em Minas Gerais, destaca que o agressor perde a concess�o do lote, � expulso do MST, denunciado �s autoridades, e a v�tima e sua fam�lia recebem todo suporte.
Mas as mulheres permanecem cotidianamente expostas �s v�rias formas de viol�ncia, mesmo dentro dos movimentos sociais. E, quando se trata da popula��o rural, os problemas s�o ainda mais invisibilizados.
� preciso que outras frentes do feminismo e a popula��o urbana abracem as causas do Feminismo Campon�s Popular. Afinal, s�o essas mulheres no campo que produzem alimentos e cuidam do meio ambiente. E o movimento das camponesas percebe uma for�a cada vez maior com as novas gera��es chegando mais engajadas, com mais acesso � informa��o e recursos para o enfrentamento necess�rio.
"As mulheres da cidade j� est�o entendendo que a luta por autonomia � uma s� e est�o se juntando a n�s, seja marchando, seja passando a consumir alimentos da agricultura familiar”, comemora Lucivanda Rodrigues, do interior de Minas.
Agroecologia como alternativa sustent�vel

As pautas do movimento de mulheres s�o diversificadas e se entrela�am com a agroecologia, a defesa do meio ambiente, o direito � terra e o anticapitalismo. “Sem feminismo n�o h� socialismo, e sem agroecologia n�o h� soberania alimentar nem preserva��o ambiental”, argumenta Michela Cala�a.
Ela denuncia que o patriarcado trata a terra como trata o corpo da mulher: "como um objeto a ser conquistado, um recurso a ser explorado. Por isso a agroecologia e o feminismo est�o intimamente ligados".
A agroecologia � um modelo de produ��o de alimentos natural e sustent�vel que desafia a l�gica da monocultura e do uso de agrot�xicos, que s�o a base do agroneg�cio. A ideia � diversificar o plantio, cultivando hortali�as, frutas, leguminosas e arom�ticas sem o uso de pesticidas ou insumos qu�micos e artificiais, respeitando os ciclos de cada esp�cie.
Al�m de produzir alimentos org�nicos variados dentro do mesmo espa�o, a agroecologia tamb�m � importante para a preserva��o dos recursos naturais presentes nas zonas de cultivo, como as nascentes e mananciais, a fauna e flora nativas e a qualidade do solo.
Como fortalecer o feminismo campon�s, fazer bem para a sa�de e o planeta:
Frequente feiras da agricultura familiar, armaz�ns do campo, ao inv�s de supermercados e sacol�es;
Procure comprar hortali�as e frutas direto de produtores rurais;
Participe de iniciativas coletivas de compra de alimentos agroecol�gicos, como as CSAs (Comunidades que Sustentam a Agroecologia);
