Por Nat�lia Souza, da AzMina

A mem�ria da luta organizada de mulheres por condi��es justas de trabalho e contra a desigualdade de g�nero foi substitu�da por uma “uma cafonice social que esvazia a import�ncia pol�tica dessa data”. � assim que a deputada federal Erika Hilton avalia as comemora��es que movimentam o com�rcio no dia 8 de mar�o. Uma estrat�gia que, segundo ela, se parece com a adotada pelos agentes p�blicos nos espa�os de poder: deslocam o debate para um lugar vazio, negam as evid�ncias hist�ricas e distorcem a realidade para enfraquecer a luta por pol�ticas p�blicas e mudan�as sociais.
Erika Hilton (PSOL-SP) tomou posse na C�mara dos Deputados em fevereiro de 2023, depois de ser a primeira vereadora trans a ocupar uma cadeira na C�mara Municipal de S�o Paulo, em 2020. No primeiro Dia Internacional das Mulheres, como deputada federal, em entrevista para a Revista AzMina, ela tra�a estrat�gias para unir diferentes viv�ncias em torno da equidade de g�nero, e revela os maiores desafios para levar esse debate a outros parlamentares.
AZMINA: Quando a gente fala sobre a luta pela igualdade de g�nero na pol�tica, qual � o maior desafio que mulheres cis e trans encontram?
Erika Hilton: A falta de compreens�o, por parte dos agentes pol�ticos, de que existe desigualdade de g�nero. Parece que estamos falando de um ativismo criado nos campos universit�rios e que n�o reflete uma necessidade, uma �nsia popular. Eles simplesmente desprezam dados, realidade, estat�stica, o cen�rio como um todo. Mas n�o negam porque desconhecem, negam porque, ao negarem, n�o precisam se comprometer em lutar ao lado dessas bandeiras e desses grupos, que se organizam para a inclus�o de mulheres nos mais diversos espa�os da sociedade.
AZ: Esse � o primeiro Dia da Mulher depois de um governo que atacou os nossos direitos. Como foi para voc� ser mulher nos �ltimos quatro anos?
Erika: Foi duro. Eu n�o fui apenas mulher. Fui mulher em um espa�o de poder tendo que socorrer outras mulheres. Mas gosto de demarcar que sou uma mulher negra e travesti, que foi expulsa de casa aos 14 anos de idade, tendo que viver da prostitui��o, assim como ocorre com a maioria das mulheres iguais a mim ainda hoje. Uma trajet�ria de dor, de perda, de abandono, de humilha��o, de viol�ncia, � qual o meu corpo e o corpo das minhas s�o submetidos todos os dias. Ent�o � importante lembrar que antes desses quatro anos, o mundo sempre foi muito hostil para a gente. Mas � claro que com Bolsonaro toda essa viol�ncia ficou ainda maior. O que n�s precisamos no Brasil, de fato, � o resgate da cidadania de todas essas mulheres que n�o deixaram de ser cidad�s apenas no governo anterior.
AZ: Qual � a principal reivindica��o da agenda das mulheres trans para esse novo governo?
Erika: Dif�cil sintetizar essa resposta, porque estamos falando de um grupo de pessoas que at� agora s�o invis�veis na sociedade, executadas de forma brutal. Mas eu acho que uma das prioridades para os pr�ximos quatro anos � a inclus�o dessas mulheres no mercado de trabalho. Isso gera autonomia, direito � moradia, comida na mesa. Renda e empregabilidade s�o pautas caras para n�s. Se elas estiverem vivas e protegidas, n�s vamos conseguir encaminhar as outras pautas.
AZ: Para boa parte da sociedade, o Dia Internacional das Mulheres ficou resumido a receber ou entregar flores. Como voc� enxerga essa data?
Erika: A data foi banalizada e se transformou nisso mesmo: uma cafonice social onde o marido vai levantar, fazer o caf�, deixar a flor. E durante todos os outros dias do ano, ele vai ser grosseiro, est�pido e muitas vezes agressor. N�o vai ajudar aquela mulher com nenhuma das tarefas dom�sticas, nem assumir os pr�prios filhos. A import�ncia pol�tica desse dia tem que simbolizar a resist�ncia das mulheres, tem que servir para dizer que mulheres n�o s�o uma coisa homog�nea. � parte do patriarcado tirar a nossa singularidade, porque a� qualquer coisa serve, n�o tem que buscar camadas de m�ltiplas exist�ncias. Essa data tem que servir para a gente fazer uma reflex�o profunda sobre a trajet�ria das mulheres na sociedade, em especial das mulheres negras, ind�genas, transexuais e travestis, que s�o as consideradas “n�o mulheres”. N�o vejo problema em dar flores e bombons, mas n�o precisa de mar�o para isso.
AZ: Como organizar mulheres com realidades t�o diferentes em uma luta com um objetivo comum?
Erika: Temos que lutar unidas e juntas, porque o algoz � o mesmo. N�o existe um sistema patriarcal e mis�gino que humilha mulheres negras da periferia, e outro que agride travesti nas esquinas de prostitui��o. O patriarcado quer que a gente use esses marcadores para nos separar, e acho que a gente tem que ser mais estrat�gica. Precisamos olhar para o que nos separa como algo que nos potencializa, e n�o para apagar particularidades, deixando dores de fora. N�o importa qual seja a sua dor, em algum lugar ela vai se encontrar com a minha. A dor de uma mulher branca de classe m�dia n�o pode, talvez, ser comparada � dor de uma menina que foi jogada na rua. Mas a dor dela tamb�m � leg�tima, e parte da mesma estrutura de �dio que massacra e violenta a vida das mulheres. � preciso reconhecer isso, para que a gente possa se organizar e cobrar o poder p�blico.
Todas as lutas que travamos na sociedade em prol da emancipa��o dos diversos grupos oprimidos s� ser� poss�vel atrav�s da coletividade. Todos precisam se comprometer e atuar ativamente por essa transforma��o. At� porque, n�o somos n�s que nos aprisionamos nos lugares de mazelas, nos lugares de sofrimento. S�o essas estruturas que, em sua grande maioria, s�o controladas e dominadas por homens brancos mais velhos. N�s n�o revolucionaremos o mundo se s� as mulheres lutarem, se s� os negros lutarem. Todos precisam se perguntar como corroboram com essas viol�ncias.