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Estado de Minas DO MEDO AO AL�VIO

Acompanhantes transformam experi�ncias de aborto na Am�rica Latina

Muitas vezes desconhecidas, elas atuam sob a sombra das restri��es e das regras morais discriminat�rias


29/09/2023 10:00 - atualizado 29/09/2023 11:55
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Colagem de fotos que mostra uma mulher deitada em um sofá verde. Uma mão branca está sobre a mulher e segura um coração, também verde.
(foto: AzMina/Repordu��o)

Por Morgani Guzzo, do Portal Catarinas

Na Am�rica Latina, onde se concentram as leis e os estigmas sociais mais rigorosos sobre a decis�o de abortar, existem redes feministas que oferecem apoio, informa��o e cuidado a quem passa por essa escolha determinante em seu projeto de vida. As “acompanhantes de aborto”, “socorristas” ou “aborteiras” t�m hist�rias de coragem, compaix�o e luta por direitos reprodutivos. Muitas vezes desconhecidas, elas atuam sob a sombra das restri��es e das regras morais discriminat�rias, e permitem transformar as trajet�rias de quem passa por uma gravidez indesejada.

Nesta reportagem, parte da s�rie Aborto � Cuidado, uma parceria entre o Portal Catarinas, a Revista AzMina e a G�nero e N�mero, contamos como redes feministas de acompanhantes de aborto t�m afetado positivamente a vida das pessoas que decidem abortar. Conversamos com ativistas do M�xico, do Chile, da Argentina e do Brasil. Tamb�m destacamos iniciativas brasileiras que oferecem informa��es confi�veis sobre o procedimento. 
 
 

Pessoas comuns abortam todos os dias

Pessoas com possibilidade de engravidar sempre abortaram. Seja com ajuda de familiares, de uma pessoa conhecida na comunidade ou de completas estranhas, as orienta��es sobre m�todos para “fazer a menstrua��o descer” sempre circularam e foram essenciais na vida de muitas mulheres, em v�rios contextos.

N�o h� um perfil espec�fico de quem decide abortar, como revelado pela Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2021 no Brasil. Em toda a Am�rica Latina, pessoas de diferentes origens, religi�es, idades, profiss�es, arranjos familiares e condi��es financeiras buscam ajuda nas redes de acompanhamento feminista.

“Eu sempre sonhei em ser m�e. Quando tive minha filha, n�o poderia estar mais realizada. Mas uma segunda gravidez, com um beb� de seis meses para criar, � imposs�vel. Estou sozinha e n�o tenho condi��es financeiras. � uma decis�o muito dif�cil, mas � pensando na minha filha que preciso de voc�s”, relatou Marlene*, 38 anos, freelancer, a uma acompanhante. 

Redes e coletivas de acompanhamento feminista

Com o avan�o das tecnologias m�dicas, farmac�uticas e de comunica��o, o apoio a pessoas que decidem abortar tomou outra dimens�o. Embora ainda envolto em sil�ncio h� muitas coletivas e redes de ativistas feministas que t�m realizado esse trabalho de forma p�blica, transformando os sentidos e sentires sobre o aborto. 

A Red Compa�era, que articula mais de 21 grupos de 15 pa�ses da Am�rica Latina, incluindo Uruguai, Equador, Peru, Bol�via, M�xico, Panam�, Rep�blica Dominicana, entre outros, completa cinco anos em 2023. Guiada por uma �tica feminista e de justi�a social, a rede promove a autonomia de quem decide abortar, tendo como horizonte o aborto livre por meio de conhecimentos e saberes que disputam com a medicina hegem�nica colonial.

Uma das redes que fazem parte da Red Compa�era, mas que existe e atua territorialmente desde 2012, � a Socorristas en Red, da Argentina. Composta por 49 coletivas de todas as partes do pa�s, nos �ltimos cinco anos acompanharam, em m�dia, 13,5 mil pessoas por ano – sendo o pico de mais de 17,5 mil em 2020, ano da pandemia de Covid-19 e da aprova��o da Lei 27.610, que legalizou o aborto volunt�rio na Argentina. 
 
Gráfico que mostra o número de abortos acompanhados da Socorristas en Red
Sistematiza��o de casos - Socorristas en Red (foto: Rafaela Coelho/Reprodu��o)
 
 
Apesar da legaliza��o do aborto, dados das Socorristas en Red mostram que, com exce��o de 2020, primeiro ano da pandemia, a taxa de procedimentos realizados no sistema de sa�de n�o vem crescendo desde ent�o. Em 2022, apenas 10% das pessoas acompanhadas pelas Socorristas realizaram seus abortos nos servi�os de sa�de.

“Nossa aposta como Socorristas en Red � o aborto livre, que a pessoa decida quando, onde, com quem. O queremos legal, mas, tamb�m, o queremos livre e feminista”, declara, ao Catarinas, Nadia Judith Maman�, 34 anos, docente de educa��o prim�ria e ativista da coletiva La Revuelta.

Outra rede vinculada � Red Compa�era � Con las Amigas y en La Casa, do Chile. Criada em 2016 e composta por cerca de 13 coletivas localizadas do extremo sul ao extremo norte do pa�s, as acompanhantes j� orientaram  mais de 50 mil mulheres e crian�as em seus abortos.

“A diferen�a de faz�-lo atrav�s da rede � poder fazer publicamente, tornar o aborto mais do que um ato particular privado, mas algo coletivo e cotidiano”, conta Carolina Cisternas, ativista de Con las Amigas y en La Casa. 
 
Foto que mostra mulheres de peruca cor de rosa chanel e com franja segurando megafones e um cartaz no qual se lê 'Aborto legal, libre y feminista/Socorristas en Red'
As Socorristas en Red s�o conhecidas por suas interven��es e par�dias (foto: Arquivo Pessoal/Reprodu��o)
 

Acompanhamento: um ato de ternura e cuidado

Contrariando estere�tipos, as emo��es relacionadas ao aborto n�o se limitam ao medo, desespero e culpa. Quando as pessoas t�m acesso a informa��es e protocolos seguros, os relatos s�o  de acolhimento, cuidado, al�vio e felicidade. Tomar a decis�o com apoio e sem julgamento � crucial nesse evento reprodutivo comum a quem gesta. O apoio de uma feminista pode fazer toda a diferen�a.

“O acompanhamento de aborto � tamb�m um ato de ternura, um ato revolucion�rio, para fomentar a coletividade diante dessa individualidade que se promove tanto”, afirma Ang�lica Medina Garc�a, 39 anos, psicoterapeuta, mestra em Estudos Socioculturais e acompanhante de abortos na coletiva Las Centinelas, de Mexicali, M�xico. 
 
Captura de tela de uma conversa por aplicativo. Bruna diz: 'Olá! Me passaram seu contato. Estou desesperada, preciso muito de ajuda!'. Rede diz: 'Olá Bruna, que bom que você chegou até nós. Estamos aqui para te ajudar. Fique tranquila, que agora você vai receber acolhimento e cuidado. Primeiro, vamos fazer algumas perguntas iniciais sobre a sua situação e questões de saúde, tá bem?'
Nas redes an�nimas, os contatos s�o passados de boca em boca (foto: Marcella Pizzolato/Est�dio De Criah/Reprodu��o)
 

Na conversa inicial, que geralmente ocorre por mensagens de aplicativos de celular, se busca compreender o contexto da pessoa, o que essa decis�o significa para si, seu futuro e de sua fam�lia. Essa conversa permite identificar situa��es de viol�ncia, de abandono ou de vulnerabilidade social.

“Isso acaba sendo mais importante do que o pr�prio processo f�sico em si, porque o procedimento � simples. Ent�o, temos a preocupa��o de manejar essas outras situa��es, sobretudo no Brasil, onde h� quest�es de seguran�a para evitar criminaliza��o”, explica Liz*, uma acompanhante feminista brasileira.

As redes ou coletivas p�blicas que atuam onde n�o s�o criminalizadas – como Argentina, M�xico, Uruguai e Col�mbia – t�m linhas telef�nicas dedicadas ao acolhimento, al�m de e-mails, sites e perfis em redes sociais. J� no Brasil, as acompanhantes s�o invis�veis publicamente. 

O acompanhamento tamb�m envolve explicar quest�es de sa�de, protocolo utilizado (medicamentoso), al�m dos cuidados em seguran�a. Quando se reconhece que a pessoa se encaixa em alguma situa��o em que o aborto � legal – inviabilidade fetal (no Chile) ou anencefalia fetal (no Brasil), risco � vida e estupro -, recomenda-se a busca de um servi�o de sa�de, exigindo o cumprimento da lei.

J� nas demais situa��es ou quando a pessoa n�o quer ir ao servi�o de sa�de, as ativistas seguem o acompanhamento, geralmente pedindo um exame de ultrassom transvaginal para confirmar a idade gestacional e orientar o melhor protocolo.

H�, tamb�m, as redes, como Socorristas en Red e Con Las Amigas y en la Casa, que t�m como pr�tica fazer encontros presenciais coletivos com as acompanhadas. Os “talleres”, como s�o conhecidos, buscam romper o sil�ncio e criar um v�nculo de confian�a.
 
Colagem que mostra um grupo de pessoas reunidas ao redor de uma mesa de centro pequena e redonda. Há uma pilha de livros verdes em cima da mesa.
Nos talleres, as acompanhadas percebem que n�o s�o casos isolados (foto: Marcella Pizzolato/Reprodu��o)
 

“Embora tenhamos aprendido, com a pandemia, que � poss�vel fazer muitas coisas de modo virtual, nosso fundamento � que o acompanhamento se faz cara a cara”, relata Carolina Cisternas, da rede chilena.

J� as Socorristas aproveitam o encontro para repassar informa��es sobre a Lei de Interrup��o Volunt�ria da Gesta��o (IVE, na sigla em espanhol), os tipos de procedimento, sintomas e sinais de alerta. Os contatos seguem com acompanhamento virtual.

“Algumas chegam preocupadas, por n�o saber aonde ir, se v�o ser acolhidas, com incertezas e muita ang�stia, especialmente aquelas que j� tiveram experi�ncias negativas ou que ca�ram em grupos antidireitos que mostraram v�deos horr�veis para convenc�-las a n�o abortar. E saem com cara de al�vio, pois descobrem como buscar os servi�os de sa�de e que vamos seguir com elas at� o controle p�s-aborto”, explica Nadia Judith Maman�, das Socorristas en Red.
 
Foto de um grupo de quatro mulheres repousando num chão de taco. Três estão sentadas e uma seitada no colo de uma das outras. Há um cartaz na frente delas e cadeiras com mochilas e sacolas atrás
Os encontros entre ativistas e redes fortalecem os afetos (foto: Con las amigas y en la casa/Reprodu��o)
 

Acesso � medica��o

O acompanhamento tamb�m envolve ajudar no acesso aos medicamentos seguros e eficazes, al�m de estar dispon�vel durante todo o processo de aborto, virtual ou presencialmente, a depender da idade gestacional, da condi��o e da necessidade da pessoa.

Na Argentina, misoprostol e mifepristona s�o acess�veis gratuitamente em servi�os de sa�de ou mediante receita m�dica nas farm�cias. No M�xico, o misoprostol � vendido sem necessidade de receita. Organiza��es internacionais apoiam redes fornecendo medica��o, especialmente a mifepristona, dependendo do pa�s.

No Chile, misoprostol e mifepristona s�o de uso exclusivo em hospitais, assim como no Brasil. No entanto, aqui, a mifepristona n�o � regulamentada e a comercializa��o do misoprostol � criminalizada com penas mais severas que o pr�prio aborto.
 
Imagem que mostra como é o protocolo de aborto medicamentoso até duas semanas. Lê-se: 'Mife + miso: 1 comprimido de mifepristona - toma com água 48h a 24 horas antes do procedimento/4 comprimidos de misoprostol - coloca embaixo da língua ou entre a gengiva e a bochecha e deixa dissolver por 30 min./Só com miso: 12 comprimidos de misoprostol: coloca 4 embaixo da língua e deixa dissolver por 30 minutos/Aguarda três horas/Repete o procedimento com +4/Aguarda três horas/Coloca os últimos 4 embaixo da língua e deixa dissolver por 30 minutos./Efeitos esperados: cólica, sangramento, aumento breve de temperatura, diarréia e vômito./Sinais de alerta: febre prolongada, desmaio, sangramento acima de dois absorventes norturnos cheios por hora por mais de 2 horas seguidas/O processo é exatamente igual a um aborto espontâneo/Fonte: OMS/FIGO'
Protocolo de aborto medicamentosos at� 12 semanas (foto: Rafaela Coelho/Reprodu��o)
 

"Voc�s salvaram a minha vida"

Ao fim dos acompanhamentos, quem abortou geralmente demonstra al�vio e gratid�o, segundo as experi�ncias das acompanhantes. “� comum que elas digam coisas como: ‘voc�s me ajudaram sem nem me conhecer! Nem sei o que eu teria feito se eu n�o tivesse encontrado voc�s!’, ou ‘Voc�s s�o anjos, salvaram a minha vida’”, conta Liz*, acompanhante feminista brasileira.

Carolina Cisternas, de Con las Amigas, destaca que, enquanto algumas mulheres chegam decididas, por j� conhecerem a rede, muitas ainda t�m medo devido a experi�ncias negativas, incluindo golpes online. “Fazemos com que elas se sintam acolhidas, e n�o julgadas. Assim, elas se v�o muito felizes, relaxadas, confort�veis e dispostas a viver suas vidas como querem viver”, relata.

A transforma��o do medo em al�vio s� ocorre porque, entre as ativistas, h� comprometimento, empatia e respeito pela autonomia e dignidade da outra pessoa.

“Ser acompanhante feminista � faz�-lo com amor, consci�ncia de que, ao abortar, abortamos culpas, o patriarcado, o capitalismo. � estar consciente da for�a que t�m a coletividade e as mulheres quando estamos decididas a reconhecer nossa capacidade de empoderar nossa corpa”, diz Ang�lica Medina Garc�a, de Las Centinelas.

Para Carolina Cisternas, de Con Las Amigas, acompanhar abortos envolve romper com par�metros patriarcais de competi��o e desconfian�a entre mulheres, e colocar em primeiro lugar uma rela��o com uma desconhecida, reconhecendo que, juntas, est�o fazendo algo que pode mudar a vida da outra pessoa. “E, claro, muda a nossa vida todos os dias”. 

Acompanhar tamb�m pode ressignificar uma experi�ncia negativa. “Minha primeira motiva��o foi conhecer a informa��o que eu tive necessidade de ter. A segunda foi ser algu�m que eu gostaria de ter tido comigo durante o meu procedimento”, lembra Nadia, das Socorristas en Red.

Colocar-se dispon�vel a outra pessoa pelo tempo necess�rio e arriscar-se faz parte do acompanhamento feminista. “Voc� se levanta com o celular na m�o e vai dormir com ele. � preciso estar sempre conectada, sobretudo durante o procedimento. O dia a dia � intenso, pesado, mas, tamb�m, gratificante por entender que podemos ter a sa�de em nossas m�os”, explicou Carolina, de Con las Amigas. 
 
Grupo de mulheres reunidas em frente a um lado. Uma delas, ao centro, usa um gorro de papai noel, e outra, mais à direita, uma tiara com chifres de rena e um gorro de papai noel
Las Centinelas, M�xico. "Estar em rede � o que nos sustenta", comenta Ang�ilica. (foto: Arquivo Las Centinelas/Reprodu��o)
 

Redu��o de danos de abortos clandestinos

No Brasil, onde as  redes n�o podem atuar publicamente, � tarefa desafiadora encontrar acompanhantes feministas. Mas h� iniciativas p�blicas que ajudam quem necessita de informa��es seguras.

Mas a busca na internet pode levar tanto a p�ginas confi�veis quanto a armadilhas que exploram pessoas desesperadas com rem�dios falsos. Se a oferta dos medicamentos � feita de maneira expl�cita nas redes e grupos de aplicativos, n�o � bom sinal. Ser� que algu�m com credibilidade arriscaria ser preso dessa maneira na internet? A resposta �: n�o. Isso provavelmente � um golpe.

Entre os sites confi�veis, est� o da organiza��o Safe2Choose (Segura para Decidir, em tradu��o livre). A plataforma oferece informa��es sobre aborto seguro e possui conselheiras online para tirar d�vidas em v�rios idiomas.

Al�m da Safe2Choose, os canais “Vera”, criado em 2017 pelo Grupo Curumim, e “Eu cuido, eu decido”, criado em 2020 pelo Projeto Cravinas – Cl�nica de Direitos Sexuais e Reprodutivos da UnB, disponibilizam n�meros de telefone que funcionam por mensagens no Whatsapp. Para fazer contato, basta mandar um “ol�” para (81) 98580-7506 (Vera) ou (61) 99208-6523 (Eu cuido, eu Decido) para receber o menu com orienta��es de como navegar pelo canal. 

Informa��o segura

Coletivo Feminista Sexualidade e Sa�de (CFSS), ativo desde os anos 1980, inicialmente focado na sa�de das mulheres, passou a oferecer atendimento prim�rio a todas as pessoas, independentemente do g�nero, em S�o Paulo. Em 2014, o ambulat�rio introduziu o “acolhimento de gravidez indesejada” para fornecer um espa�o seguro e sem julgamentos. Entre 2019 e 2023, foram realizados cerca de 125 acolhimentos anuais.

Uma pergunta crucial feita no consult�rio �: “essa gesta��o � desejada?”. Isso ajuda a entender a natureza da gravidez e garantir que as pessoas conhe�am seus direitos.

Al�m disso, o CFSS realiza forma��es sobre acolhimento de gesta��es indesejadas e aborto seguro para profissionais de sa�de e estudantes da �rea m�dica. Em 2023, ir�o capacitar quase 300 profissionais de Unidades B�sicas de Sa�de de S�o Paulo, entre agentes comunit�rios, t�cnicos, enfermeiros, m�dicos e psic�logos. 

Como explica Luiza Cadioli, m�dica de fam�lia e comunidade que atua no Coletivo, o objetivo � reduzir danos compartilhando informa��es baseadas em evid�ncias cient�ficas e cumprindo um compromisso �tico com a sa�de.

“Na maioria das vezes as pessoas voltam aliviadas e querendo pensar em contracep��o. Os casos mais traum�ticos, normalmente, s�o os que n�o foram orientados, que chegam ap�s tentativas inseguras”, compartilha a m�dica.

*Nomes fict�cios.

Esta reportagem recebeu apoio da iniciativa Futuro do Cuidado.
 
Acesse a reportagem original no portal d'AzMina. 

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