Como a desigualdade entre g�neros se reflete em nossa vida
O mais impressionante � que todo aquele terrorismo contra as mulheres ainda se faz presente. Como n�s, mulheres, nos colocamos umas contra as outras
Hoje � mais um dia daqueles que eu sento para escrever e meu filho se senta ao meu lado, no computador dele, e fica reclamando nos meus ouvidos sobre a tarefa que tem que fazer, a falta de espa�o na bancada dele, t�o organizada quanto poderia estar a bancada do Taz, o personagem da Warner Bros.
Enquanto tento me concentrar, meu rob� aspira o piso do apartamento, penso na roupa que ainda n�o coloquei para lavar. Penso nos exames de controle que eu ainda tenho que fazer (tive c�ncer de mama em 2019).
Penso nesse frio que est� fazendo e nas pessoas que moram nas ruas, ou em barracos, nas fam�lias que est�o sem recursos. Penso no que vou fazer para o almo�o. Penso na reuni�o que terei com a professora. Me pergunto se vai ser poss�vel levar os essas aulas on-line por muito mais tempo. At� quando a sa�de mental de uma crian�a suporta o confinamento?
Ser� que todo mundo que est� levando o isolamento a s�rio tamb�m est� no limite? As m�es, certamente est�o. Me pego estudando matem�tica, m�e � professora de pandemia. Sou obrigada a relembrar como se faz uma conta de divis�o.
E o trauma que eu tenho dessas matem�ticas? Vamos combinar, isso n�o estava no roteiro que eu fiz quando estava gr�vida! Mas ainda sou privilegiada, porque tenho estudo suficiente para conseguir ajud�-lo, eu aprendi a fazer esses c�lculos, s� preciso me recordar. E as m�es que n�o aprenderam?
(foto: Reprodu��o)
Hoje eu queria escrever sobre um livro que levei meses para terminar de ler: Calib� e a bruxa, da Silvia Frederici. � um livro que fala sobre quest�es hist�ricas muito importantes, que explica como o surgimento do capitalismo coincide com a ca�a �s bruxas, que foi, na verdade, uma guerra contra as mulheres.
At� aquele momento, mulheres tinha controle sobre sua fun��o reprodutiva, hoje seguimos discutindo o aborto, o aborto legal. Porque o aborto recai sobre as mulheres, mesmo quando s�o v�timas de estupro. Estupro � uma fraqueza arrogante, de algu�m que n�o � nada querendo provar que pode dominar outra pessoa. Estupro tem muito mais a ver com poder do que com desejo.
E tudo que vivemos hoje, essa cultura patriarcal que oprime as mulheres, essa divis�o sexual do trabalho que nos confinou ao trabalho reprodutivo e trabalho de cuidado, trabalho n�o remunerado que nos coloca dependentes dos homens, foi sendo constru�do durante muitos s�culos e at� hoje vivemos conforme essa constru��o hist�rica. Manda quem tem poder, tem poder quem tem dinheiro. Obedece quem precisa do dinheiro para sobreviver.
O mais impressionante � que todo aquele terrorismo contra as mulheres ainda se faz presente em pleno 2020. Como n�s, mulheres, nos colocamos umas contra as outras. Como tanta mulher ainda se submete a homem que a diminui.
Como a sociedade � sexista e, desde crian�as, as meninas ainda s�o introduzidas a brincar de casinha e de boneca enquanto os meninos brincam de carrinho e futebol.
Essa desigualdade entre g�neros, que vem sendo imposta desde a inf�ncia, se reflete em toda a nossa vida. Enquanto a mulher faz o trabalho dom�stico, o homem, no m�ximo, ajuda, porque trabalho dom�stico n�o � visto como obriga��o masculina.
No momento em que as mulheres passaram a trabalhar fora, a investir em suas carreiras, elas ainda t�m sal�rios menores que os sal�rios dos homens, e ainda precisam conseguir pagar por uma rede de apoio para cuidar dos seus filhos, caso decida ser m�e e profissional.
Me vejo ref�m do patriarcado, do machismo. Eu e todas as mulheres. Em casa, fazendo trabalho n�o remunerado, aquelas obriga��es que parece que voc� � obrigada a assumir quando nasce mulher. Por muitos anos n�o assumi essas obriga��es, mas pagava outra mulher para faz�-las, uma empregada dom�stica. J� falei sobre essa quest�o em A empregada dom�stica, o racismo e o machismo estrutural.
� duro entender que a base do capitalismo � o trabalho de cuidado desempenhado pelas mulheres. O n�o reconhecimento e a falta de remunera��o dessas atividades. Eu queria muito viver para conhecer o mundo p�s-capitalismo, mas j� entendi que � um sonho imposs�vel.
Construir uma sociedade que enxergue o preconceito de g�nero como algo degradante vai levar d�cadas, talvez s�culos. Sigo com minha esperan�a equilibrista e deixo a sugest�o de leitura, Calib� e a bruxa, um livro desconcertante e necess�rio que ajuda a entender como chegamos ao ponto de vermos uma crian�a v�tima de estupro sendo chamada de assassina quando exerce seu direito legal de fazer um aborto.