
Hoje vou contar a hist�ria da Fernanda Reis, uma m�e mineira de Belo Horizonte que est� morando no Gab�o. Ela � terapeuta ocupacional e em mar�o come�ou a trabalhar numa escola especial, uma ONG que funciona de forma similar a uma Apae, embora muito mais prec�ria, tanto em termos de estrutura f�sica, quanto de recursos terap�uticos, capacita��o dos profissionais, sem falar na situa��o das fam�lias.
Desde a semana passada, muitas escolas gabonesas j� est�o de f�rias (as f�rias longas acontecem no meio do ano). Com isso, algumas professoras est�o levando seus filhos para a ONG, elas n�o t�m com quem deixar as crian�as. E muitas das crian�as que a Fernanda atende j� n�o est�o indo mais, ent�o ela fica mais tempo sem atendimento. As professoras t�m levado os filhos para a sala dela, segundo elas para conhecerem-na.
Sempre que chega alguma crian�a, ela pega os brinquedos que levou para l� e se senta um pouco para brincar, se estiver sem paciente. Ela achou que era por isso que elas levavam as crian�as, porque realmente tem uns brinquedos muito legais aos quais, infelizmente, essas crian�as n�o t�m acesso. At� que ontem, uma professora levou a filha, que ela ainda n�o tinha conhecido, at� sua sala.
Fernanda se sentou, brincou, e depois a professora pediu para tirar uma foto das duas. A menina de seis anos, linda, esperta e muito inteligente, cochichou algo no ouvido da m�e e a m�e disse que ela queria abra��-la antes de ir embora. Elas se abra�aram e a menina come�ou a chorar. Ela ficou sem entender, ent�o a m�e explicou: "Ela est� emocionada porque nunca abra�ou um branco".
Ela ficou sem rea��o e chorou depois que elas se foram. Como n�o ficar extremamente impactada com essa informa��o? Com uma crian�a se emocionar por abra�ar uma pessoa branca? Naquele momento, ela entendeu que h� algo coletivo que ela precisa romper. As crian�as querem ir at� a sala dela, porque podem toc�-la, tocar seu cabelo. Elas crescem entendendo que branco � que � bonito, que � legal. Veem os brancos como uma entidade. Como pessoas superiores. Resqu�cios da explora��o, da coloniza��o, da escraviza��o.
O Gab�o ainda � um pa�s completamente dependente da Fran�a, os cargos mais altos s�o na sua maioria ocupados por estrangeiros brancos e quando um gabon�s e um estrangeiro t�m o mesmo cargo, o sal�rio do estrangeiro � bem maior, mesmo na mesma fun��o. Os sal�rios da escola onde ela trabalha s�o baix�ssimos, ent�o, mesmo os profissionais s�o pessoas em situa��o de vulnerabilidade. E a quest�o � que para essa popula��o � pior porque eles n�o dividem os espa�os com gente branca. Heran�a brutal do colonialismo, a popula��o original, negra, se sente inferior aos brancos.
A Fernanda, por estar sempre dispon�vel, por ser acess�vel acabou virando atra��o. A quest�o � muito ampla e a linha muito t�nue entre ela querer ajud�-los a terem essa consci�ncia do racismo hist�rico e acabar ocupando um lugar que refor�a essa quest�o de ter uma branca querendo ocupar um lugar de salva��o. E como falar de racismo num lugar t�o prec�rio onde h� tantas quest�es emergenciais de uma popula��o miser�vel?
Portugueses, ingleses e holandeses exploraram as riquezas do pa�s, al�m de terem realizado o tr�fico negreiro com a popula��o nativa do Gab�o. Em 1886, o pa�s se tornou col�nia francesa. A independ�ncia s� foi obtida em 1960. Embora tenha a terceira maior renda per capita da �frica, a distribui��o de renda � extremamente desigual, por isso, a maior parte da popula��o � muito pobre.
A Fernanda � a �nica terapeuta ocupacional do pa�s. A escola onde ela trabalha tem 130 crian�as. Crian�as com paralisia cerebral, com s�ndrome de Down, crian�as autistas de todos os n�veis de suporte, que n�o tem outro acompanhamento. A sensa��o � de estar enxugando gelo. S�o muitas demandas urgentes com impacto em sobrevida. S�o tantas urg�ncias que n�o sobra tempo para fazer um trabalho n�o emergencial.
Tem barata, rato e outros bichos nas salas de aula. Bichos que circulam entre as crian�as. � tudo t�o prec�rio que fica dif�cil descrever. Praticamente, n�o h� brinquedos, e os poucos que t�m s�o de materiais recicl�veis. N�o tem papel higi�nico, n�o tem �lcool, ela leva essas coisas de casa. As pessoas est�o acostumadas com os ratos transitando entre elas.
As demonstra��es de afeto s�o muito diferentes das que estamos acostumados aqui no Brasil, mas � mesmo dif�cil demonstrar afeto quando a vida � t�o dura. O que ela pode fazer no momento � dar esse afeto que falta. Acreditar no poder transformador do carinho, do abra�o, do elogio. Quando ela chega para trabalhar, passa por todas as salas para desejar um bom dia, dar beijos e abra�os, mesmo se sentindo pequena e impotente.
Ela � uma gotinha no oceano, mas uma gotinha � capaz de contagiar outras. Quando a gente sente que n�o tem nada a oferecer, a gente oferece amor, e atrav�s do poder do amor, acreditamos que um dia as crian�as de l� n�o chorem de emo��o ao abra�ar uma pessoa branca, porque elas saber�o que valem muito.