
Nos sentamos ali, naquela mesa de bar. Eu, ela e a crian�a esperando pelo prato feito. Eram tr�s da tarde e elas ainda n�o haviam almo�ado. Minutos antes, na esquina do outro lado da rua, a m�e havia me pedido para pagar o almo�o para ela e o filho de tr�s anos. “Mo�a, eu n�o vou pedir dinheiro, � que meu filho est� com fome. Ainda n�o conseguimos almo�ar e eu n�o tenho dinheiro.”
Atravessamos a rua, entramos no bar e restaurante da outra esquina. Eu disse ao gar�om que iria pagar o almo�o deles e que ela escolheria o que queria comer. As op��es eram de prato feito, o famoso PF, e o cliente escolhe se quer bife, frango ou ovo frito. Enquanto ela falava com o gar�om, acomodei o garotinho numa cadeira, na mesa que ficava perto da estrada do lugar. Deixei a cadeira ao lado para a m�e e me sentei em frente a ele.
A m�e se sentou, e ficamos conversando enquanto preparavam a comida. Ela me contou que tem 22 anos, que trabalha como faxineira quando consegue, que mora com a av� que vive de faxina, numa casa alugada. Contou que o aluguel custa R$ 500, que o filho frequenta uma creche, mas que n�o fica no mesmo bairro, pois n�o havia vaga nessa que fica perto da casa onde moram. Sendo assim, ela precisa usar o transporte p�blico para levar e buscar o menino.
Naquele dia, ela foi lev�-lo e, chegando l�, se deparou com um aviso no port�o: “N�o vamos funcionar hoje”. Com o menino nos bra�os e mochila nas costas, ela foi para a regi�o central para conseguir comer e alimentar o filho. Abriu a mochila, pegou uns brinquedos para a crian�a e o gar�om chegou com a comida. Eu estava de costas, a m�e se levantou e pegou uma sacola. Eu esperava um prato de lou�a e talheres, mas n�o, ele entregou a comida em uma embalagem para viagem, numa sacola de pl�stico verde, com talheres descart�veis dentro. Fui pega de surpresa, a sacola era um recado claro: n�o queriam que ela e o menino almo�assem l� dentro! Um bar, restaurante, boteco, super mequetrefe, sem outros clientes, vazio. E o gar�om praticamente expulsando a mo�a de l�. Ela e o filho n�o poderiam comer ali, sentados naquela mesa!
Ela se levantou para pegar a sacola e, juntando as coisas, chamou o menino. Eu disse para ela se sentar novamente e almo�ar ali, mas ela continuou de p� e me disse: “N�o, mo�a, eles n�o deixam a gente comer aqui dentro, tenho que comer na rua”. O olhar dela, resiliente, aceitando a situa��o. Acostumada com aquele tipo de tratamento.
O menino brincando com o carrinho sem perceber o olhar do gar�om que levou a sacola, o olhar da mo�a do caixa, o olhar do outro funcion�rio. At� aquele momento, �ramos duas m�es conversando, mas naquele minuto eterno abriu-se um abismo entre n�s duas. Os olhares, a comida embalada, o recado dado a ela. E a mim tamb�m, como se eu estivesse errada por estar pagando pela comida e ter me sentado com eles ali naquela mesa. Por ter convidado a mulher para se sentar ali comigo.
Se eu estivesse sozinha, se o PF fosse para mim, com certeza eu poderia comer ali dentro, sentada naquela mesa. Mas ela n�o podia ficar ali. Ambas est�vamos usando roupas limpas, ambas de cal�a e camiseta, ela com a mochila e eu com o celular no bolso da cal�a. Ambas de cabelos curtos. Mas a mulher tinha pele preta, o menino tamb�m. Eu n�o estava usando nenhuma maquiagem, n�o estava com as unhas feitas, n�o estava usando nenhum acess�rio, nada. Mas minha pele � clara e eu tinha R$ 30 no bolso para pagar aquela marmita.
A cor da pele e R$ 30. Isso nos separava. Senti como se tivesse sido arremessada para um lado e ela arremessada para o lado oposto enquanto uma fenda se abria entre n�s. Me senti sendo esmagada por aquele racismo velado, nem t�o velado assim. Eu sei bem o que � o racismo estrutural, mas eu n�o esperava por aquele choque de realidade naquele momento.
Ela se levantando e pegando suas coisas e eu sem rea��o. S� conseguia dizer que ela podia comer ali, sim, que era para se sentar, e ela de p�. Eu disse que ficaria l� com ela at� que eles terminassem de comer. Me levantei, fui ao caixa pagar pela marmita. Quando me virei, ela j� estava na porta, saindo com o menino, a mochila, o carrinho de brinquedo e a sacola com a comida.
Fui atr�s dela, na cal�ada tinha outras mesas do bar, cada uma com duas cadeiras. Falei para ela se sentar ali com o menino: “Voc� tem direito de usar essa mesa, n�o vai comer no ch�o”. Ela aceitou e se sentou. Voltei l� dentro para pegar talheres para o menino. Eu queria dar um serm�o, mas n�o dei. A gente nunca sabe qual vai ser a rea��o de um homem quando uma mulher o coloca no seu lugar. A gente nunca sabe se ele tem uma arma, ou se tem hist�rico de viol�ncia.
Eu apenas peguei o talher e disse: “Racismo � crime”. Voltei para a cal�ada, o menino estava comendo, sentadinho na mesa, enquanto a m�e me esperava com os talheres. Perguntei ao menininho se ele poderia dar um beijo na tia, ele deu um beijo na minha bochecha, a m�e me agradeceu e eu voltei para casa. Naquele dia eu n�o consegui comer.