
Poesia � como toda atividade fisiol�gica, as vezes sai, as vezes n�o.
Quando a vontade vem, escrevo em qualquer papel que encontro pela frente.
Poesia n�o tem hora marcada. Adoro as madrugadas e as tardes. Dentro de avi�es sobre as nuvens ou no boteco da esquina, tanto faz. Entenderam a compara��o com necessidade fisiol�gica?!
Entendo perfeitamente o fato de escritores, m�sicos e artistas morrerem na mis�ria. O produto � uma necessidade, que se confunde com prazer e, �s vezes, meio e motivo de vida. Um v�cio, um of�cio e uma necessidade.
Poesias marcam a vida de quem escreve e de quem as recebe.
Muitas, ficam perdidas para sempre em gavetas.
Muitas, ficam perdidas para sempre em gavetas.
H� poucos anos, Joana, minha mulher, arrumando gavetas, achou uma pasta com in�meras poesias escritas em diferentes �pocas. Com enorme paci�ncia, sensibilidade e carinho, organizou o que parecia imposs�vel de ser organizado. Traduziu a minha letra para algo leg�vel e imprimiu. Nasceu o Guardanapos, uma surpresa para mim e para todos os amigos que celebram comigo o dia de S�o Sebasti�o.
Os guardados revirados, reinventados e ressuscitados s�o necessidades da alma. Rastros nossos por este mundo.
Entendo bem o Confesso que Vivi, de Neruda...
Algumas dessas poesias, adoraria resgat�-las. Talvez nem fossem t�o boas assim, mas o momento foi t�o inesquec�vel, que t�-las novamente, seria como voltar no tempo e ganhar folego novo.
Um destes poemas perdidos foi escrito para uma prostituta de Ibi�.
Mulher que era a paix�o do Treco. Aqui vale um par�ntese para apresentar-lhes o Treco.
Treco foi uma das figuras mais emblem�ticas da vida da cidade. Branco e sardento, era um sanfoneiro e violeiro que animava botecos, prost�bulos, quermesses e vel�rios. Ali�s, solid�rio com todos e todas as vi�vas, varava a noite e ainda carregava a al�a do caix�o no dia seguinte. Atravessou gera��es e fez amigos em todas as regi�es da cidade. Festas e vel�rios sem o Treco n�o faziam o menor sentido. Era quase da minha fam�lia, assim como, de todas as fam�lias da cidade.
Trabalhava com o mesmo entusiasmo que passava a noite numa farra. Para ganhar a vida, era tratorista. Foi numa destas
que come�ou a trabalhar na fazenda do meu av�.
Apesar do trabalho pesado, sempre tinha um momento para uma viola regada a cerveja e conversa fiada. Era o b�nus para o empregado e para o patr�o... a mais valia que valia a pena para ambos. Talvez a �nica. O momento do encontro do “capital” com o trabalho, ambos a servi�o dos bancos que financiavam este happy hour inesquec�vel.
O velho fog�o a lenha aquecia o ambiente e as chamas, vez por outra, estouravam o n� da madeira, soando como roj�es a comemorar encontros inusitados.
Com frequ�ncia eu ia com alguns colegas de faculdade e amigos agregados passar uns dias na fazenda e visitar meu av�. Os finais de tarde ficavam bem mais animados com a chegada dos sedentos e barulhentos estudantes. O Treco, depois de alguns segundos de conv�vio, j� quase comentava as nossas provas de anatomia. Era da turma. Sem ele a farra perdia potencia e gra�a.
Certa vez, chegamos para um final de semana prolongado. Como de costume, come�amos com nossa viola e ficamos aguardando a chegada do Treco para se juntar a cantoria.
Mas, estranhamente, ele chegou e n�o cumprimentou ningu�m. Foi direto para o quarto e l� ficou.
Perguntei ao meu av� o que havia acontecido. A resposta foi lac�nica: - Brigou com a Laura. Faz uma semana que ele est� assim. J� at� emagreceu.
Laura era namorada do Treco. Sim, namorada! Com juras e tudo. Ele tinha o trabalho dele e ela o dela.
Sabedor desse romance que j� vinha de v�rios anos, fui at� o quarto dele, pedi licen�a, perguntei o que havia acontecido e se ele precisava de alguma coisa. Ele nada respondeu e disparou a chorar. Treco estava deprimido!
- Que isto cara! Levanta este astral! Conta a�, o que foi que aconteceu?
- Briguei com a Laura...
- Como assim, voc�s sempre se deram t�o bem.
- Pois �, cheguei um l�, encontrei ela com outro homem e n�o aguentei...quebrei o pau! T� morrendo de vergonha dela.
Eu nunca tinha visto o Treco t�o triste assim. Estiquei a conversa para acalm�-lo e coloquei em pr�tica a mat�ria optativa de psiquiatria que estava fazendo. Escutar � a chave.
E assim, ele foi contando como havia se apaixonado por ela.
- Ela me chama de fofinho, diz que eu sou o homem mais gostoso que ela j� teve...como eu gosto dela!
Eu pensei, como � f�cil fazer o ser humano feliz! Neste momento, me veio a cabe�a a interven��o psicoter�pica mais inusitada e audaciosaque algu�m em s� consci�ncia poderia propor.
- Uma serenata na zona! Vamos fazer uma serenata para ela, Treco?! Voc� leva umas flores, eu escrevo uma poesia e voc� pedi desculpas...
- Voc� esta ficando doido?!! Serenata na zona? Onde j� se viu isto?!
A proposta foi o choque necess�rio para acender o Treco dentro do Treco. Ele saiu do quarto com viol�o e sanfona em punho.
Fizemos uma breve parada na sala, onde abastecemos do combust�vel da coragem e partimos para a cidade.
L� chegando, apanhei um monte de flores no jardim da pra�a, dividi em duas partes e escrevi duas poesias. Uma para uma mo�a em que eu estava interessado, e que se tornaria a m�e da minha primeira filha, e outra para a Laura.
Fizemos a primeira serenata. Luz piscou, candidato a sogro saiu na porta, forneceu mais combust�vel...sucesso total!
Fomos para a empreitada final. Subimos a Rua Vinte cantando com um p� no passeio e outro no meio fio... cantar quase sempre nos faz recordar, sem querer...
Chegamos bem devagar na janela da amada do Treco e come�amos:
- Rel�gio marca las horas...
- Rel�gio marca las horas...
No meio da m�sica ela abriu a janela com seios de fora...
- P� Treco, eu t� acompanhada!!
Ele largou a sanfona no ch�o, pulou na janela, colocou as flores e a poesia no meio dos seios dela, deu-lhe um beijo.
- Num faz mal n�o, eu te amo e c� num tem nada com isso.
Ela fechou a janela, apagou a luz, n�s continuamos cantando mais duas m�sicas e fomos embora.
Fernando Supimpa sentenciou:
- Fica triste n�o Treco, esse cara brochou.
- Fica triste n�o Treco, esse cara brochou.
No c�u havia uma lua minguante, com duas estrelas do lado. O Treco viajou com elas. Est� junto delas, fazendo serenata...