Quis o destino que eu fosse convidado pelo prefeito de BH a ajud�-lo a enfrentar a atual epidemia. Pois bem, o dilema do momento: voltar ou n�o �s aulas? Qual a hora certa?
Meu primeiro dia de aula foi inesquec�vel. O uniforme estava impec�vel.
Camisa de abotoar com um bolsinho do lado esquerdo e um cuidadoso bordado com as iniciais EST- Escola Santa Terezinha.
A merendeira ainda tinha o cheiro do couro. Foi feita pelo Sr. Olinto e escolhida por mim diretamente em seu curtume, que ficava perto da minha casa. Dentro dela, embrulhado num pano xadrez: queijo com goiabada. Ambos feitos pela minha av�.
Minha m�e foi comigo at� a porta da escola, que ficava nos fundos da casa da Dona Zifinha Cendon, minha primeira professora. Foi ela quem me ensinou a ler e escrever, o que, certamente, estou aprendendo at� hoje. Ela usava um vestido claro com estampa floral que, com o tempo, percebi ser o seu eterno estilo.
A casa ficava na pra�a principal de Ibi�. Tinha um alpendre s�brio do lado esquerdo por onde entr�vamos para um barrac�o onde 5 carteiras, n�o muito novas, formavam 3 fileiras. Certamente, muita gente j� havia passado por ali.
Ela me deu a m�o e entramos para um mundo do qual nunca mais sa�...
Da acolhedora Escola Santa Terezinha fui para o Grupo Escolar Dom Jos� Gaspar, que tamb�m fica na Pra�a S�o Pedro, do outro lado da casa da Dona Zifinha.
Apesar dos 100 metros que separavam as duas escolas, tratava-se de um salto gigantesco para uma crian�a de 6 anos de idade.
O grupo escolar, apesar de tamb�m acolhedor, tinha uma entrada imponente, corredores compridos, salas gigantescas e um p�tio enorme onde centenas de crian�as corriam e disputavam jogos que eu nunca tinha visto.
Ali, fui acolhido pela Dona Terezinha de Angelis, a diretora, e professoras experientes e extremamente cuidadosas.
Com o tempo, o espa�o foi dominado e eu j� me sentia inteiramente a vontade.
Foi no grupo escolar que vivi as minhas primeiras experi�ncias epid�micas. O sarampo, a catapora e a caxumba eram praticamente inevit�veis. Com frequ�ncia, tinha que ficar em casa durante semanas, sem colocar o nariz para fora.
Alguns colegas nunca voltavam, e as suas carteiras ficavam vazias, por algum tempo...
As campanhas de vacina��o eram o meu terror. A vacina contra var�ola, feita com uma pistola pneum�tica, era tenebrosa. Fic�vamos todos em fila indiana, rumo a uma sala de onde saiam todos com olhos esbugalhados e o bra�o marejando sangue. O tiro da pistola ficava cada vez mais perto. De vez em quando um fugia, enquanto outros desmaiavam. Eu tinha que dar uma de forte. Era o filho de um dos m�dicos da cidade, se eu fraquejasse o caos se instalaria.
Na campanha contra o t�tano eu n�o resisti. A agulha era enorme e a dor da primeira dose ainda estava fresca na minha mem�ria. Quando dois na minha frente desmaiaram, eu n�o tive d�vida, fugi correndo pela rua. Atr�s de mim veio a fila inteira. Fiquei escondido durante uma tarde no por�o da minha casa, atr�s de um feixe de lenha, cujos desenhos dos musgos incrustrados me lembro com detalhes.
Mas o mundo estava l� fora e, uma hora ou outra, eu teria que enfrentar o meu vexame. Meu pai me chamou no seu consult�rio, foi at� a estante de livros e mostrou a foto de uma pessoa estendida e apoiada na cama apenas com o topo da cabe�a e o calcanhar. O rosto do indiv�duo estampava um sorriso estranho, que dava medo.
Ele me perguntou:
- Est� vendo isto? Quer ficar assim? Se n�o quer, vai l� e toma aquela vacina. Ela serve para evitar que as pessoas fiquem assim...e morram.
Eu n�o tive duvida. Fui l�, dei uma de forte e tolerei o sofrimento. Mas a minha vergonha dessa fuga desesperada n�o passou at� hoje.
H� poucos dias, visitando um abatedouro de frangos, me lembrei muito da fila da vacina e da minha ang�stia escutando o tiro da pistola pneum�tica...
Quis o destino que eu virasse um infectologista. Defensor ferrenho das vacinas, como n�o poderia ser diferente. Afinal, a figura do livro meu pai foi pedagogicamente perfeita e inesquec�vel. Nunca vi um caso de t�tano na minha vida profissional. Certamente, a maioria das pessoas voltaram para a fila e enfrentaram o desafio da dor moment�nea, assim como o tiro da pistola pneum�tica contra a var�ola, a qual conhe�o apenas pelas figuras de livros.
Segui como aluno de escolas p�blicas em mais de 95% da minha forma��o. Aprendi princ�pios de civilidade e educa��o, os quais considero fundamentais para a vida em comunidade.
Quis o destino que eu fosse convidado pelo prefeito de Belo Horizonte a ajud�-lo a enfrentar a atual epidemia. Pois bem, o dilema do momento: voltar ou n�o �s aulas? Qual a hora certa?
Esta � uma pergunta t�o enigm�tica neste momento, quanto os musgos do feixe de lenha atr�s do qual me escondi, ao fugir da dor da agulhada.
As op��es n�o permitem certezas, por mais que o pragmatismo militar tente ignor�-los.
No mundo dos mortais civis, temos que tomar decis�es baseadas em ci�ncia, cuja certeza tem intervalos de incertezas.
A tabela abaixo apresenta op��es em rela��o ao risco que queremos imputar aos nossos filhos (FIGURA 1).
Trata-se de proposta feita pelo CDC de Atlanta no contexto do governo Trump, cujo negativismo ao longo da atual epidemia sempre foi evidente e muito parecido com os do nosso Messias.
Se optarmos por expor nossos filhos a uma condi��o de muito baixo risco, temos que aguardar at� que o n�mero de casos de infec��o fique abaixo de 5 casos por 100.000 habitantes em 14 dias passados. Se quisermos exp�-los a condi��es de alto e alt�ssimo risco optaremos por retornar as aulas entre 50 a 200 caos de infec��o por 100.000 habitantes. Hoje, temos em Belo Horizonte, 160 casos por 100.000 habitantes.
Al�m desta condi��o epidemiol�gica, as escolas deveriam estar com as condi��es estruturais perfeitamente adequadas para implementar pelo menos 5 a��es essenciais ao controle da epidemia, as quais encontram-se descritas na parte inferior da tabela.
N�o sei se os coreanos prezam mais pela vida dos seus filhos que os americanos, mas o crit�rio adotado por eles para o retorno �s aulas presenciais foi de 5 casos de infec��o por 1.000.000 habitantes. Ainda assim, vez por outra, tiverem que interromper as aulas devido � suspeita de alunos infectados.
Claro, n�o estamos na Coreia e nem nos EUA. Estamos no Brasil e temos que optar, � luz da nossa realidade social e estrutural, por qual tamanho do risco que queremos correr e imputar aos nossos filhos, a n�s mesmos, aos av�s de nossos filhos e � sociedade onde nos inserimos.
Al�m dos aspectos epidemiol�gicos, geralmente atropelados pelo desejo afoito de retorno a uma normalidade perdida, existem detalhes de seguran�a que escapam ao olhar desatento dos negativistas fardados. O quadro cl�nico que acomete algumas crian�as com COVID-19 � uma grave rea��o inflamat�ria, cujo tratamento exige o uso de imunoglobulinas. Entretanto, n�o dispomos no pa�s de estoques suficientes nem mesmo para atender os pacientes fora do contexto epid�mico.
Portanto, abrir escolas n�o � como abrir o botequim da esquina, onde vai quem quer, ou precisa para manter o seu sustento.
Decis�o dif�cil, recheada de interesses econ�micos e argumentos sociol�gicos, os quais permeiam a maioria das decis�es relacionadas � flexibiliza��o das medidas de conten��o da epidemia. Tudo isto tendo como pano de fundo as elei��es que se aproximam.
Mas, como a minha casa n�o tem por�o e a lenha j� queima pa�s afora, a minha op��o seria de trabalhar com o par�metro de menos de 5 casos de infec��o por 100.000 habitantes e estoques de imunoglobulina suficientes para tratar as crian�as que se infectarem e necessitarem desta medica��o. Trata-se de uma meta distante?? N�o. Perfeitamente alcan��vel.
Depende fundamentalmente da nossa atitude enquanto sociedade.
Se amamos nossos filhos e queremos o melhor para eles, temos que nos comportarmos como tal. Ou seja, evitarmos aglomera��es, usarmos m�scaras, ficarmos em casa, sairmos apenas para o que for essencial e adotarmos h�bitos de higiene rigorosos. Afinal de contas, o v�rus entende neste momento apenas estes argumentos. Desafi�-lo com postura b�lica, independentemente da farda, � infrut�fero e irrespons�vel.
Quanto aos discursos pol�ticos, prestem bem aten��o, eles definir�o o nosso destino nesta e em epidemias futuras. Herodes, Neros, negativistas e ilusionistas est�o soltos por a�...