
Sinto o seu carinho � minha volta a todo momento. N�o h� um dia que n�o me lembre dele.
Humor at� em enterros!
Viagens noite adentro.
Quantas vezes me fez dormir e acordar para os perigos da vida. Quantas vezes me acordou do outro lado do Atl�ntico com seu grito de guerra: - S� bom nisso!!
E era!!
Ia do riso ao choro em segundos. E vice-versa. Tempo ruim era bom tamb�m.
Tinha numa m�o a navalha do coment�rio felino e na outra uma flor.
Doce e amargo, mais doce que amargo.
Assim era Marneu!
Um novo mar de alegria.
Tempestade perfeita de contradi��es.
Eleg�ncia dos castelos e simplicidade dos pe�es.
Terno, gravata e botina.
Champanhe e tra�ado,
Charuto e cigarro de palha,
Extravag�ncia e sensibilidade.
Zona e fam�lia
Preto e branco, Branco, preto, �ndio.
Todas as tribos eram a sua tribo.
Assim aprendi com ele.
O mundo � a nossa tribo.
O universo nosso espa�o a ser compartilhado com as estrelas.
Dentro de mim ficou guardado o carinho de irm�o, �nico e para sempre, meu irm�o.
Nos deixou t�o cedo! Filho de uma puta!
Como eu.
Tentei resumir acima o meu �nico irm�o, quase pai, com o qual vim morar em Belo Horizonte em 1970.
S�rio e alegre, mais alegre do que s�rio, tinha como sua marca registrada ser um contador de hist�rias em enterros.
Tentava amenizar a dor com o humor. Era o seu jeito peculiar de zombar da morte e valorizar o fato de estarmos vivos e podermos comemorar com a alegria de uma boa risada.
Eu tinha um certo temor de ficar perto dele nesses ambientes. A qualquer momento poderia sair um coment�rio ou uma hist�ria inusitada.
O riso inevit�vel certa vez me fez chorar. Fui consolado at� pela vi�va que achou que minhas l�grimas fossem pela perda do amigo.
Nesses momentos ele sa�a de fininho e ia rir sozinho num canto qualquer com a sensa��o de dever cumprido.
Uma dessas hist�rias foi sobre o enterro da Dona Maria Silota, a matriarca de uma comunidade quilombola pr�xima da fazenda do meu av� em Ibi�. Sol�cito, como sempre, se prop�s a ir at� a cidade comprar o caix�o.
Na companhia do Treco, funcion�rio da fazenda, sanfoneiro divertido que tamb�m animava os enterros, rumaram para a cidade.
Na volta, o caix�o vazio ficou sambando na carroceria da caminhonete.
Treco foi designado a manter o caix�o est�vel. Como uma chuva fina e fria come�ava a cair, ele n�o teve d�vida, entrou na urna e l� ficou.
No caminho, Marneu deu carona para parentes da falecida que tamb�m iam para o enterro.
Alguns foram na boleia com ele e os outros foram na carroceria.
Com 10 minutos de viagem, o Treco colocou a m�o para fora do caix�o para ver se a chuva havia passado e perguntou: - Parou de chover a�, gente?! N�o ficou um em cima da carroceria.
Ele jurava que o fato foi real. O Treco nunca negou.
Outra hist�ria de vel�rio que ele gostava de repetir, com vers�es diferentes, era a do enterro da m�e de um colega e grande amigo dele em Lagoa Santa.
Tratava-se de uma senhora com cerca de 180 quilos, muito conhecida na cidade pela sua generosidade e benevol�ncia.
Uma das v�rias pessoas que ela ajudava era o Z� do Berro, um morador de rua que vivia embriagado.
Como o pr�prio nome j� o caracterizava, Z� do Berro tinha uma voz potente que o anunciava a quil�metros.
Ao se aproximar da casa dela, o prato de comida quentinho j� o aguardava. Foi assim por anos.
Ele a chamava carinhosamente de Madinha.
N�o precisa dizer que um dos mais tristes com a morte da Madinha foi o Z� do Berro.
Chorava e bebia.
Bebia e lamentava: - Num vai n�o, Madinha, num me deixa n�o!
A tristeza era comovente.
No momento do enterro ele n�o teve d�vida. Segurou numa al�a do caix�o e rumou para o cemit�rio da cidade.
Debaixo de uma chuva torrencial l� foi ele serpenteando pelas ruas da cidade puxando o cortejo, que com muito custo, chegou � beira do t�mulo.
Para descer o caix�o ele segurou nas duas pontas da corda dianteira, mas o terreno encharcado desbarrancou com a Madinha por cima e o Z� do Berro por baixo.
Ele, apavorado, disparou a sua garganta poderosa:- Me tira daqui cambada de fi�- da-puta!! Num me leva n�o Madinha! Eu te amo Madinha, mais me deixa aqui!
Me tira daqui seus fios de uma puta!
Depois de muito custo, puxaram o caix�o e ele saiu como um tiro de dentro do t�mulo, todo sujo de barro e esbravejando:
- P� Madinha, c� pesa hein! Coitado do Seu Salom�o que j� t� debaixo da senhora. E oc�s, seus froxo, v�o tudo pras puta que os pariu!
E acabou-se o enterro.
Envelhecer � frequentar enterros e l�grimas. Numa dessas despedidas, resolvi visitar o t�mulo dele e da minha m�e. De cabe�a baixa procurando pelas suas marcas nessa terra, fui atacado subitamente por um casal de quero-quero que me bicaram no topo da careca.
Pareciam Kamikases a atacar um ser vivo num p�ntano de hist�rias perdidas no tempo.
Sa� correndo daquele lugar espantado com a certeza de que n�o os encontraria ali. Hist�rias n�o se enterram em cemit�rios, principalmente, se no final a gargalhada � o que seca a garganta.
Na can��o ga�cha de Barbosa Lessa, ele conclui:
- Quero-quero, quero-quero
- Quero-quero o teu amor.
Qualquer semelhan�a com a realidade, coloquem na conta do Marneu. Ele n�o paga, nem eu.
Esse m�s ele faria 85 anos.
Adoraria rir da vida com ele. Imposs�vel n�o chorar de rir por ele.