
O ser humano se adapta a tudo. At� mesmo � trag�dia e �s cat�strofes. Faz parte do "endurecer o couro" para suportar a realidade?! Darwin explica?! Talvez!
Certo dia, durante um plant�o no boteco do DA da Medicina, ouvi a conversa de dois b�bados. Para quem est� chegando agora a esta coluna, um breve esclarecimento.
Eu e mais alguns colegas cuidamos do bar do Diret�rio Acad�mico da Faculdade de Medicina da UFMG por um ano.
Filantropia para ajudar o Jaime, que tinha que casar e para n�s mesmos para financiar a pr�pria farra.
Um b�bado virou para o outro e disse:
- � Picol�, c� prefere cas� com mui� feia ou bonita?!
- Eu prefiro as feia.
- C� t� doido homem! Por que?!
- Fei�ra s� aumenta, beleza diminui.
E a conversa continuou...
- C� prefere mui� gorda ou magra?!
- Eu prefiro as gorda, bem gorda, sacudida que num passa naquela porta.
- Uai, por que?
- Mui� magra d� muita farm�cia.
Fiquei pensando nessa conversa de b�bado por muito tempo. Para nos adaptarmos � vida, achamos justificativa para tudo e nos "adaptamos". At� mesmo � trag�dia.
Nesse exato momento, estou em S�o Paulo, num apartamento localizado no rumo da cabeceira da pista de Congonhas. Depois das 6 da manh� acordei com a clara sensa��o que tinha um jato entrando pela janela. Da� para frente, n�o dormi mais, nem os avi�es pararam de descer.
Olhei para o lado e vi a minha filha dormindo como um anjo. Pensei, crian�a se adapta, velho n�o! Pela primeira vez na vida tive a percep��o real da velhice. Nos adaptamos a tudo, ou quase tudo.
Na semana passada, assim como todos que admiravam o talento da Mar�lia Mendon�a, fiquei chocado com a sua morte tr�gica e prematura. Calava definitivamente, a voz aveludada, rouca e potente de algu�m que interpretava t�o bem o sentimento humano, particularmente o feminino. Aprendemos com ela o significado da palavra "sofr�ncia".
Bem apropriada � nossa reflex�o de hoje. Pois bem, durante a semana, agendei uma entrevista para o s�bado � noite. Falaria sobre o momento atual da pandemia de COVID-19 e das flexibiliza��es em curso. Como sempre, penteei a careca, ajeitei o cen�rio de fundo, coloquei meu palet� de entrevistas noturnas e fiquei esperando.
Esperei, esperei, esperei e nada de chamarem.
Situa��o inusitada para a pontualidade at� ent�o brit�nica dos in�meros compromissos anteriores. Depois de 20 minutos, resolvi contat�-los. A resposta veio com um acanhado pedido de desculpas. Haviam mudado a pauta em fun��o de uma nova trag�dia e esqueceram de mim.
A trag�dia do momento suplantava jornalisticamente a anterior que completava quase 610 mil mortes no Brasil e mais de 5 milh�es no planeta.
No mesmo dia da trag�dia com o bimotor que ficou dependurado na cachoeira e vitimou cinco pessoas, dentre elas Mar�lia Mendon�a, ca�ram dois Boeings lotados com pessoas v�timas da COVID-19. Claro, bem menos que os 20 Boeings que chegaram a cair diariamente no per�odo cr�tico da pandemia.
Imposs�vel n�o me lembrar de um colega m�dico que atendia feridos de guerra na trag�dia da guerra civil na S�ria. Ao ser perguntado por uma jornalista sobre como ele aguentava ver toda aquela carnificina e ainda dormir, ele respondeu:
- Nos adaptamos a tudo nessa vida. Os ouvidos aos ru�dos dos tiros e aos gritos de desespero. Nossa sensibilidade cria cascas, assim como as feridas dos moribundos que atendo.
Verdade pura, comprovada pelos moradores de comunidades nos morros das favelas brasileiras. Vivemos da trag�dia do dia seguinte e nos adaptamos, como se isso fosse o normal e nosso destino imut�vel.
Diferentemente das investiga��es de acidentes a�reos, cat�strofes humanit�rias como essa pandemia na qual estamos submersos n�o s�o submetidas �s mesmas meticulosas an�lises t�cnicas.
Com frequ�ncia, as verdadeiras ra�zes ficam contaminadas por devaneios pol�ticos, permanecendo enterradas na ignor�ncia coletiva.
Falta interesse e vontade pol�tica para se investir em ci�ncia e conhecimento, dando margem para teorias conspirat�rias e fantasiosas.
Nossa toler�ncia a trag�dia � t�o grande que corremos o risco de manter o Messias por mais quatro anos na condu��o desse pa�s. Trag�dia pouca � bobagem. At� quando??! At� que passemos a perceber as nossas verrugas e os c�nceres que brotam da nossa forma de gerir o presente e o futuro.
A normalidade que se instala no caos � trai�oeira e mortal. Onde mora a normalidade pand�mica? Como defini-la? Quantas mortes admitiremos por dia como "normais"? Ainda n�o temos uma resposta epidemiol�gica clara para isso. Certamente, a teremos em breve.
Por�m, se essa morte for de algu�m que voc� ama, certamente ser� intoler�vel e inesquec�vel para voc�. Mas, lamentavelmente, um n�mero apenas na estat�stica macabra que esconde a dor de quem chora por ele.
