
A visita ao ateli� de uma amiga que n�o via h� tempos foi como m�gica. Como se ela voltasse a ser crian�a, entrou no t�nel do tempo. Soninha Gargiulo faz bonecas de pano desde que se separou do companheiro.
Com os filhos ainda pequenos e problemas s�rios na coluna, Soninha n�o podia trabalhar e come�ou a fazer bonecas, mas parou por um tempo para se dedicar � m�sica, que � o seu dom. Depois, conseguiu se deliciar com as duas tarefas. Hoje, ela n�o consegue mais parar de fazer bonecas, tocar e cantar.
As crian�as entram em um mundo encantado e podem escolher outro vestido para trocar na hora de brincar. As roupas que Soninha cria s�o t�o bonitas e bem-feitas que as m�es compram v�rias, para usar em outras bonecas.
Em tempos de bonecas que falam, cantam e dan�am, as de pano n�o perderam o lugar. Ainda despertam um sentimento indescrit�vel na crian�a, por causa da simplicidade nos tra�os e formato.
“Vejo esse encantamento quando chego com minha caixa cheia de bonecas. Os olhos delas brilham, assim como os meus quando as crio, quando estou costurando, cortando o tecido, passando a linha e fazendo os cabelos de l�. Nesses momentos, volto a ser crian�a. Brinco o tempo todo.”
“Vejo esse encantamento quando chego com minha caixa cheia de bonecas. Os olhos delas brilham, assim como os meus quando as crio, quando estou costurando, cortando o tecido, passando a linha e fazendo os cabelos de l�. Nesses momentos, volto a ser crian�a. Brinco o tempo todo.”
Se pudesse, dava para todas as crian�as, mas metade do que faz doa para asilos. As senhoras mais velhas e institucionalizadas adoram. Fazer boneca � entrar no mundo da fantasia. Muitas vezes, ela sonha com uma boneca, acorda e vai direto para a m�quina de costura. De repente, a boneca est� pronta.
A fala de Soninha despertou em mim a lembran�a de uma cena que jamais esqueci. M�e e filha, j� no entardecer da vida, passeando no quarteir�o do bairro. De bra�os dados como se fossem bengalas, elas andavam devagar, uma respeitando a dificuldade da outra. Pareciam sintonizadas, n�o apenas na cad�ncia dos passos, mas se complementavam.
Davam voltas no quarteir�o, mas os moradores do bairro n�o olhavam diretamente para as duas. Pareciam temer a vis�o inevit�vel do envelhecer. Todos desviavam o olhar daquela cena de m�e e filha em busca da dignidade da velhice.
Davam voltas no quarteir�o, mas os moradores do bairro n�o olhavam diretamente para as duas. Pareciam temer a vis�o inevit�vel do envelhecer. Todos desviavam o olhar daquela cena de m�e e filha em busca da dignidade da velhice.
Tamb�m senti dor ao olhar para as duas, que caminhavam silenciosamente em dire��o � decrepitude da vida. Tentei desviar a vis�o dos cabelos ralos e brancos, das rugas pelo corpo, dos bra�os fl�cidos, das pernas tr�pegas que caminhavam com dificuldade.
Dos sinais de dem�ncia senil de uma delas. A cena seria corriqueira se a senhora mais velha n�o tivesse nos bra�os uma enorme boneca, que se parecia com um beb� de verdade.
Dos sinais de dem�ncia senil de uma delas. A cena seria corriqueira se a senhora mais velha n�o tivesse nos bra�os uma enorme boneca, que se parecia com um beb� de verdade.
Ela segurava a boneca com firmeza. Apesar de n�o conseguir mais segurar nem a si mesma, ela estava decidida em sua fun��o de embalar o beb� de borracha, alheia �s verdades e mentiras da vida.
A boneca, vestida para os dias frios de julho, com um gorro e uma manta de l�, nem ligava para o calor sufocante. As duas senhoras nem sentiam o c�u incrivelmente azul, bem parecido com os olhos da boneca.
A boneca, vestida para os dias frios de julho, com um gorro e uma manta de l�, nem ligava para o calor sufocante. As duas senhoras nem sentiam o c�u incrivelmente azul, bem parecido com os olhos da boneca.
Ningu�m sabe o que aquela senhora sentia com a boneca nos bra�os, mas parecia bem na tarefa mais antiga do mundo: a de ser m�e, de cuidar de outra pessoa. Ela s� aprendeu a cuidar e n�o a ser cuidada.
O que pode uma mulher de mais de 90 anos fazer, j� com sinais vis�veis de perdas cognitivas irrevers�veis, a n�o ser embalar o tempo nos bra�os? O que pode realizar uma senhora de passos t�o lentos e doloridos em mundo que est� virado de cabe�a para baixo?
O que pode uma mulher de mais de 90 anos fazer, j� com sinais vis�veis de perdas cognitivas irrevers�veis, a n�o ser embalar o tempo nos bra�os? O que pode realizar uma senhora de passos t�o lentos e doloridos em mundo que est� virado de cabe�a para baixo?
Ela n�o tem mais liberdade para definir o pr�prio destino. N�o tem mais independ�ncia para planejar uma velhice diferente. Sabiamente, a filha lhe devolveu a alegria de viver, colocando em seus bra�os o sentido de toda uma vida, um beb�, mesmo que de mentira.
A velha senhora nem notou que o beb� n�o mexia, n�o falava, n�o andava. Ela cuidava do beb� com tanto amor que ningu�m ousaria duvidar da exist�ncia viva daquela boneca.
A velha senhora nem notou que o beb� n�o mexia, n�o falava, n�o andava. Ela cuidava do beb� com tanto amor que ningu�m ousaria duvidar da exist�ncia viva daquela boneca.
Em meio a uma pandemia e com o Dia das Crian�as pr�ximo, confesso que tive bonecas de todos os tipos. Gostava de mudar o penteado delas. Mas preciso falar da mudan�a de comportamento de meninas e de mulheres, que derrubaram o tabu do instinto materno. Nunca gostei de Barbies. As meninas hoje s�o o que querem ser. Ter filhos ou n�o � escolha de cada mulher.
Meninas podem gostar de bonecas, mas o sentido do brincar � outro. H� uma consci�ncia do brinquedo. H� uma desconstru��o de g�nero nas cores das roupas. Ningu�m mais escolhe cor-de-rosa para meninas e azul para os meninos, como pregou uma certa ministra desvairada.
O fato de ter tido um menino ou menina n�o � garantia de nada. H� consci�ncia de deixar mais livre a escolha dos filhos. De n�o demarcar tanto. N�o h� garantia de que um menino que veste azul ser� heterossexual. Meninos tamb�m brincam com bonecas.
O fato de ter tido um menino ou menina n�o � garantia de nada. H� consci�ncia de deixar mais livre a escolha dos filhos. De n�o demarcar tanto. N�o h� garantia de que um menino que veste azul ser� heterossexual. Meninos tamb�m brincam com bonecas.
Crian�as contempor�neas j� desconstru�ram esses conceitos que fizeram gera��es anteriores sofrerem com pap�is e cores definidos por uma cultura de senhores de engenho, patriarcas do medo, do �dio e do desprezo por mulheres, negros e homossexuais.