
Por Hudson Cambraia
Direito Tribut�rio � daquelas mat�rias que quase todos os alunos de Direito t�m pavor e estudam para passar e ficar livre. Os professores de Tribut�rio s�o, na maioria das institui��es, um dos grandes desprestigiados nas bancas de monografia por falta de p�blico. Ficam abra�ados aos professores de Direito Internacional (p�blico e privado), Direito Econ�mico, Direito Eleitoral e Direito Financeiro.
Entretanto, este desprest�gio � infundado, pois � uma das mat�rias mais instigantes do Direito e de maior impacto na vida do cidad�o. Talvez apenas seja mal abordada no cotidiano (o que abre um grande flanco para uma mea culpa em momento oportuno...)
Fato � que entra governo e sai governo, a primeira pauta a ouri�ar jornalistas e especialistas (que normalmente s� falam para os seus) � a necessidade urgente de uma reforma tribut�ria. Curioso que eu acompanho a ascens�o e queda de governos h� quase 10 mandatos e esse neg�cio � sempre urgente.
Atentem-se crian�as, n�o s�o 10 anos, mas 10 mandatos, a ver: Itamar Franco; FHC 1.0; FHC 2.0; Lula 1.0; Lula 2.0; Dilma 1.0; Dilma 1.5; Temer 1.5; Bolsonaro; e agora Lula 3.0.
A grande curiosidade � que, apesar da premente urg�ncia, a tal da reforma nunca sai. E a� a gente vai levando, cambaleando de um lado para o outro, ganhando uns lampejos de esperan�a em voos de galinha econ�micos (e isso nem � piada) e trope�ando aqui e acol�. Vez ou outra sai uma “minirreforma” que quase ningu�m v� resultado...
Para surpresa de absolutamente zero pessoas, entrou o novo governo e a primeira tem�tica a rondar o notici�rio era a necessidade de uma reforma tribut�ria. A� veio o governo e joga no vento um nome novo (afinal, ningu�m quer copiar o coleguinha e correr o risco de perder a exclusividade da paternidade da crian�a): “novo arcabou�o fiscal”.
Qual a vantagem? Ningu�m entende muito bem que raio � isso e fica mais dif�cil de discutir.
O Ministro da Fazenda vem com umas explica��es meio soltas, a imprensa consegue uns vazamentos seletivos, aparentemente de interesse do governo para testar a rea��o, e os agentes do mercado s�o questionados sobre as expectativas nutridas com a mudan�a. N�o se pode negar que isso ajuda a render muitas entrevistas.
Considerando esse cen�rio todo, resolvi trazer esta quest�o aqui com dois objetivos: primeiro, tentar explicar esse neg�cio para algu�m que, talvez, ainda n�o tenha absoluta clareza a respeito; segundo, tentar te convencer (sem press�o...) que, definitivamente, a proposta est� muito longe de ser uma solu��o para o problema (real).
Ent�o vamos por partes. Tentando dar sentido para tudo que tem por a�, o novo arcabou�o fiscal nada mais � do que um conjunto de regras e medidas que vai tentar equilibrar as receitas e as despesas governamentais.
O leitor mais atento vai se lembrar de ouvir algo parecido com outro nome: teto de gastos. E se voc� fez essa conex�o, j� ganhou uma estrelinha!
O tal do teto de gastos foi criado pelo governo Temer 1.5 e tinha uma premissa relativamente simples (obviamente com um texto complicado feito a vida...): inseriram na Constitui��o uma limita��o de gastos que o governo poderia efetuar tendo como base de c�lculo os gastos dos exerc�cios anteriores, corrigidos pela infla��o.
Ou seja, na proposta do Temer 1.5, era como se o Estado fosse um inconsequente adolescente que teve a imposi��o de um limite na mesada. Se gastasse muito dinheiro na balada e faltasse o do lanche, o est�mago ia ter que ficar roncando.
A galera gostou, aplaudiu e achou bonito. Eram medidas de austeridade fiscal. V�rios especialistas vieram para explicar como era importante ter um limite de gastos e impedir o aumento da d�vida. Independentemente do valor ou desvalor da proposta (o que vai depender de qual lado da torcida de futebol voc� est�), tinha uma pedra no meio do caminho.
Qual era: n�s estamos no Brasil e aqui n�o � terra para amadores... � sempre importante lembrar isso.
E por que essa lembran�a � importante? Porque na primeira situa��o em que o teto de gastos se mostrou um impeditivo para o governo gastar a gente sabe o que aconteceu. O teto foi furado! E a� a gente “descobriu” que at� tinha um teto, mas era de bolha de sab�o.
Dali em diante, esse teto se tornou um �timo exemplo acad�mico, sem absolutamente qualquer repercuss�o pr�tica. O governo queria gastar e n�o podia. E a� voc� pode imaginar um di�logo assim dentro do Pal�cio do Planalto:
- Meu Deus, n�o podemos gastar mais por causa do teto!
- O que fazer?
- Bora l� furar o teto de gastos.
- Problema resolvido!
Est�vamos todos diante de um Frankstein jur�dico sensacional, com todos os ingredientes para uma sopa tupiniquim com aquela marquinha de placa de botequim que a gente v� na internet: “Pode gastar? N�o pode! Mas se quiser, a� pode!”
O exemplo mais contundente que tivemos em um passado recente foi a denominada, carinhosamente, de PEC Kamikaze, que nada mais era do que a PEC que, em pleno per�odo eleitoral, permitiu ao governo estourar absolutamente todos os limites de gastos poss�veis e imagin�veis. E o teto? Ora o teto... sabe-se l� o que � isso.
� �bvio que o governo entrante, ent�o na oposi��o, deu o maior berro e disse que estava errado. Afinal, o dinheiro do Estado fora gostosamente utilizado para financiar a campanha de reelei��o do governo vigente.
Um par�ntesis necess�rio: � preciso lembrar que n�s estamos no Brasil e aqui a galera d� risada na cara do perigo. Ent�o antes de voc� ficar chateadinho ou todo inflamado com o que eu disse, lembra que todos (todos!) os governos que se candidataram � reelei��o usaram a m�quina do Estado para isso. As crian�as n�o v�o lembrar, mas fatalmente os adultos da sala se lembrar�o do Lula batendo a m�o melada de petr�leo nas costas da Dilma para empurr�-la rampa do Planalto acima. A quest�o do �ltimo governo foi s� a dimens�o da fatura, que corou at� o mais malemolente dos malandros.
Voltando: apesar da grita com o uso do dinheiro p�blico na campanha, tamb�m para a surpresa de zero pessoas, a oposi��o votou favoravelmente ao furo do teto de gastos. Isto porque os aderentes ao atual governo tamb�m criticam a exist�ncia de um teto de gastos p�blicos, ao argumento de que o Estado n�o pode ter limite para gastar, sob pena de impor restri��es em �reas sens�veis para a popula��o (como sa�de e educa��o).
Entra o novo governo e manteve-se a cr�tica ao teto de gastos. S� que a� tem um probleminha t�cnico que pouca gente explica e faz toda a diferen�a para continuar esse texto... Ent�o tenha paci�ncia e me acompanha aqui.
Voc� consegue furar o seu teto de gastos (vulgarmente conhecido como sal�rio)????
Se o teto de gastos � o tanto de dinheiro que o governo tem, como raios ele fura o teto? N�o sei na sua casa, mas na minha casa se eu quiser furar o teto de gastos eu tenho certeza que o SPC deixa fazer uma vez s�.
Eis o pulo do gato: com o governo � diferente. Neste quadrado � poss�vel aumentar o pr�prio sal�rio e furar o teto tomando poupudos empr�stimos por meio de emiss�o de t�tulos de d�vida p�blica. Seria como voc� sair assinando notas promiss�rias e pegando o dinheiro para fechar a conta do m�s.
O problema � que os juros dessa d�vida aumentam ou diminuem de acordo com o humor do fantasmag�rico mercado (que nada � do que as pessoas e empresas que compraram esses t�tulos e dizem se confiam ou n�o que o Estado vai pagar ou dar calote).
� interessante que tem uma galera que fica muito impressionada e soltando umas frases de efeito na internet do tipo: “o mercado n�o se incomoda com gente passando fome, mas fica todo arrepiado com regras que afrouxam o controle de gastos do governo”. O engra�ado � que essa pessoa acha que est� lacrando, quando na verdade ela est� dizendo a mais �bvia verdade.
E o racioc�nio � simples! Imagina que voc� emprestou R$ 50.000,00 para o seu cunhado (entendeu que � para o cunhado?) e recebeu de volta uma nota promiss�ria de R$ 55.000,00 (jurinho muito camarada por sinal...).
A� eu vou te dar dois cen�rios.
Cen�rio 1: voc� olha o seu cunhado trabalhando direitinho todo dia, juntando grana, ficando em casa no fim de semana, trocou o carro 2.0 por um 1.0, tirou o clube das crian�as e trocou a viagem de fim de ano por um fervoroso natal em fam�lia com refri e farofa, perto de casa e brigando por causa de pol�tica.
Cen�rio 2: voc� v� seu cunhando metendo o p� na jaca, rodando de carro zero esportivo do ano, passeando com a fam�lia na Disney, churrasco todo fim de semana e desfilando um guarda roupa novo a cada ida ao shopping.
Detalhe: nos dois cen�rios o seu cunhado n�o trocou de emprego e continua ganhando o mesmo sal�rio. A� eu te pergunto: em qual dos dois cen�rios voc� vai acreditar que o seu cunhado vai te pagar meu consagrado??? E eu te pergunto mais: o que a fome das criancinhas na rua interferiu no seu racioc�nio para responder � pergunta anterior???
Em resumo, os agentes do mercado s� querem “o deles”. N�o esperem absolutamente nada mais do que isso. E ouso dizer que voc� a� que est� lendo, se estivesse neste lugar, n�o deixaria a fome que assola o nosso pa�s interferir no seu interesse em receber o dinheiro que emprestou.
Ou seja, assustar o mercado significa virar para o seu credor e acender um charuto com uma nota de cem mostrando a carteira vazia. Essa d�vida, obviamente, vai ficar mais cara para compensar as emo��es.
Via de consequ�ncia, para fazer um contraponto a isso, o atual governo, que n�o pode deixar de falar contra o teto, mas n�o pode negar a realidade, vem com esse novo arcabou�o fiscal que nada mais � do que uma tentativa de controlar os juros e a bolsa, acalmando o mercado com o recado de que ningu�m vai comer picanha com o dinheiro deles.
Em suma, estamos diante de um gigantesco mais do mesmo! Um teto de gastos sem nome de teto de gastos. N�o se engane, com nominhos bonitos, o corte vai ser onde "d� para cortar": investimentos, obras, sa�de, educa��o, pi pi pi, p� p� p�...
E esse mais do mesmo n�o chega nem perto de encarar o ponto mais dram�tico de toda essa hist�ria e que ningu�m at� hoje chegou perto de ter coragem de tratar abertamente: o Estado brasileiro consome as riquezas do pa�s e � um indutor da nossa pobreza.
E o Estado come�a a sugar a riqueza exatamente da base da pir�mide, ao promover uma ampla tributa��o sobre o consumo de forma absolutamente desregrada. Em terras tupiniquins, a tributa��o total sobre consumo chega a 43%!
Pescou? Faz a conta a� do que isso significa! Em termos pr�ticos, � como se a sua capacidade de comprar (o “poder de compra”) fosse reduzido pela metade porque a outra metade � custo tribut�rio. E s� para lembrar que neste percentual a� n�o est� inclu�da a tributa��o sobre a folha de pagamento (Imposto de Renda, FGTS e INSS) e sobre o patrim�nio (IPTU/IPVA).
Para as pessoas de baixa renda � um mecanismo absurdamente injusto, j� que quanto mais baixa a renda maior parte dela (para n�o dizer tudo) vai para o consumo (que � um nome bonito para expressar a batalha di�ria para colocar arroz e feij�o no prato).
E em que esse novo arcabou�o fiscal mexe em rela��o a este vespeiro que atormenta quem tem boletos de estima��o? Nada!
Voltamos ao quadro inicial, em que o governo atua para garantir que a sua pr�pria d�vida permane�a com juros baixos para que possa novamente emitir novas d�vidas, para fechar a conta e assumir mais d�vidas, para pegar novas d�vidas e come�ar e recome�ar tudo infinitas vezes. E da� que, trocando em mi�dos, vamos mudar tudo para manter tudo absolutamente como sempre esteve.
E como disse o belo horizontino Djonga: “esquerda de c�, direita de l�! E o povo segue firme tomando no centro... onde a tristeza do abuso � da maioria e o prazer de gozar sobra p’ra 1%”.