
Recentemente, a professora Biazita Gomes fez uma publica��o muito simples em rede social e, sem qualquer pretens�o de render o assunto, afirmou algo semelhante a “devemos lembrar que n�o somos ocidentais”. E a�, para o meu espanto, ela teve que se explicar, em raz�o de uma enxurrada de cr�ticas, o que ela estava querendo dizer com aquilo.
Em outras palavras, as pessoas a criticaram porque julgavam que eram ocidentais e, principalmente pelo fato de ser uma professora, a trataram como se ela tivesse cometido um erro muito grosseiro e que merecesse repara��o.
Essa manifesta��o muito singela me fez pensar sobre a dificuldade que temos de comunica��o em raz�o da falta de conceitos que deveriam ser b�sicos. E constatar a falta desse b�sico mostra como o �bvio precisa ser explicado cada vez mais.
Da�, antes de escrever este texto, fui tirar a d�vida se eu (junto com a professora Biazita) n�o estava muito maluco e deslocado do mundo.
Abri um livro de geografia do ensino m�dio, do autor Dem�trio Magnoli, cujo t�tulo � “Geografia para o Ensino M�dio” (ed. Atual, 2012). Adivinha? L�, bem explicadinho, na p�gina 494, estava o mapa mundi mostrando o que � o “ocidente” na perspectiva internacional (que � essa foto que ilustra a capa da nossa coluna da semana).
Ou seja, em uma perspectiva geopol�tica, ocidente � Am�rica do Norte, Europa e Oceania. Nosotros somos latinos mi pueblo. Nunca fomos “ocidentais”.
E a professora Biazita estava (o que devia ser uma obviedade) cert�ssima ao afirmar que n�o somos ocidentais, exatamente como o texto (do ensino m�dio, � importante frisar) nos explica. E por que isso � muito importante?
Por uma raz�o simples! Eu, de vez em sempre (inclusive aqui na coluna), afirmo que posso falar do direito ocidental, que � o que eu conhe�o. E o que eu quero dizer com isso?
Quero dizer do conhecimento jur�dico produzido nos Estados Unidos (com a sua constru��o sobre controle de constitucionalidade e colis�o de princ�pios de Alexy e os custos do direito de Posner), na It�lia (com a sua escola de processo, de Carnelluti), em Portugal (com a sua teoria da Constitui��o, de Canotilho), na Alemanha (com as teses criminais de Roxin e Jakobs), na Fran�a (com a sua sociologia do direito de Foucault) e na Inglaterra (com as bases fundacionais de direitos humanos fundamentais, como a Magna Carta, o Habeas Corpus Act e o Bill of Rights).
Par�ntesis 1: eu lembrei todos esses autores de cabe�a e, se for�ar um pouquinho, saem muitos outros que nos s�o apresentados ao longo da forma��o jur�dica. E isso tamb�m vale para a Filosofia. Pense em um fil�sofo e voc� vai lembrar de alem�o, como se n�o existissem pessoas pensando em outros lugares do mundo.
Voltando: Agora me pergunte uma linha sobre o sistema jur�dico mexicano? Talvez os crit�rios de controle de constitucionalidade guatemaltecos? As teses administrativas de controle de legalidade paraguaias? Talvez o sistema de imunidades tribut�rias senegaleses? O rol de direitos fundamentais na esfera penal serra-leoninos? O grau de independ�ncia do Minist�rio P�blico marfinense? Ou melhor, existe Minist�rio P�blico na Costa do Marfim?
Voc� sabe responder isso? Afinal, todos esses pa�ses est�o “do lado de c�” do Meridiano de Greenwich, o que os colocaria, para os incautos matadores de aula de geografia, no “ocidente”. Apesar disso, eu n�o tenho a mais vaga ideia da resposta para qualquer dessas perguntas!
Par�ntesis 2: a curiosidade � uma coisa que leva as pessoas para buracos sem fundo, pois agora eu vou passar dias pesquisando sobre imunidades tribut�rias senegalesas e o Minist�rio P�blico da Costa do Marfim!
Voltando: Percebeu o ponto de inflex�o??? A gente aplica a no��o geopol�tica de ocidente o tempo inteiro de forma intuitiva, s� que parece n�o racionalizar bem a respeito. O Paraguai e o Peru est�o aqui ao lado, mas a gente conhece e estuda a Guerra de Secess�o na escola e, na pr�tica, conhece muito mais “de l�” do que do nosso “quintal”.
A gente escuta na TV a cota��o do d�lar e do euro e n�o sabe dizer quem � Dina Boluarte. A prop�sito, Dina Boluarte � a sexta presidente do Peru nos �ltimos oito anos e eu duvido que voc� se lembre de uma not�cia de jornal que trate da crise institucional do Peru que levou a esse caos de poder.
Em resumo, somos latinos colonizados por ocidentais e, ainda que a ideia pare�a desgostosa, � assim que somos vistos e tratados mundo afora. A diferen�a entre oriente e ocidente n�o � tra�ada geograficamente e basta uma an�lise muito simpl�ria da realidade para perceber isso.
E a indigna��o na rea��o das pessoas a uma afirma��o como essa mostra como estamos falhando miseravelmente na constru��o de conhecimento b�sico sobre quem somos e onde estamos no mundo.
Par�ntesis 3: basta pensar que n�o existe “norte” e “sul”. Apesar de algumas pessoas lutarem de forma tocante contra isso, a terra � redonda e, via de consequ�ncia, n�o existe “em cima” e “em baixo” em uma bola flutuante no universo. Entretanto, � uma conven��o bastante conveniente e facilmente explic�vel se voc� entender quem colonizou quem.
Voltando: Essa miopia atinge diretamente a nossa forma de ver o mundo, de se ver no mundo e de projetar como queremos que nossa realidade se concretize. Essa ingenuidade de se colocar em um “ocidente”, numa tentativa (no m�nimo curiosa) de estar deste lado do globo, � a evid�ncia de como somos mal avaliadores de n�s mesmos.
At� porque, a utilizar o Meridiano de Greenwich como crit�rio, Alemanha, Su��a, It�lia, Noruega, Finl�ndia, Dinamarca e Cia Ltda n�o seriam ocidentais! Percebeu como olhando por esta perspectiva parece at� um pouco rid�culo?
Entretanto, talvez isso explique termos no Brasil grupos neonazistas, inconscientes de que estariam na linha de frente da fila de elimina��o dos nazistas “ocidentais”. Talvez tamb�m explique a exist�ncia de pessoas que se acham brancas e por isso s�o racistas, sem perceber que n�o conhecem uma pessoa branca “ocidental”.
Par�ntesis 4: N�o curiosamente, quando essas pessoas conseguem ir para os EUA ou para a Europa descobrem que s�o “pardas” e n�o “brancas” e, volta e meia, sofrem o mesmo tratamento que destilam aqui por nossas terras.
Voltando: Esse fato geopol�tico, que em um momento pode parecer bobo, pode tamb�m ser uma evid�ncia para entendermos uma classe social que julga que � elite porque � menos pobre que a maioria dos pobres e se acha rica, sem entender que � colonizada at� hoje.
As crian�as obviamente n�o v�o lembrar, mas na d�cada de 1990 havia um folcl�rico personagem da TV brasileira chamado “Kako Antibes”, interpretado pelo ator Miguel Falabela. A ideia era exatamente essa, pois retratava uma pessoa tipicamente tupiniquim, sem dinheiro, mas alocado em uma classe m�dia e que se achava dinamarqu�s (ou seja, ocidental) e absolutamente descolado dessas bandas de c�, com um cl�ssico “horror a pobre”.
Por fim (at� porque tudo tem limite), talvez essa ignor�ncia possa explicar a nossa dificuldade de entender que n�o � poss�vel pegar os pa�ses europeus ou os EUA como fonte para reproduzir, acriticamente, os modos de pensar e produzir o direito e a pol�tica. Para tanto, sugiro apenas um exerc�cio.
Pega o seu mapa mundi e olha o tamanh�o da Fran�a e compara (no mesmo mapa mundi) o tamanho de Minas Gerais. Agora pesquisa o tamanho da Fran�a e voc� vai descobrir que ela tem 551.695 km². Depois pesquisa o tamanho de Minas Gerais e voc� vai descobrir que Minas Gerais tem 586.528 km².
E a� voc� vai descobrir que o Presidente da Fran�a administra um territ�rio menor do que o Governador do Estado de Minas Gerais, apesar de o mapa mundi parecer bem diferente. Talvez esse pequeno exerc�cio seja suficiente para entender que geografia tamb�m � pol�tica e molda como n�s somos, como somos vistos e como nos projetamos no mundo.
Nesse per�odo em que o Brasil busca retomar seu protagonismo internacional, � um bom momento para voltar ao b�sico e aprendermos algumas obviedades.
