Di�rio da quarentena
Para sentir ou esquecer
Clara C�mpara
Cantora da dupla
Clara x Sofia

Li Fernando Pessoa outro dia e ele clamou por um sopro de poesia que o fizesse chegar perto de sentir ou de esquecer. Hoje tenho os desejos de Fernando enquanto almejo ser o tal sopro poderoso.
Estou h� seis meses em casa e quero cantar para sentir ou esquecer, por um segundo que seja, o estranho 2020. Quero que cantem pra mim tamb�m. Estou em casa e n�o posso ser tocada, n�o posso tocar! Mas quero tanto sentir poesia. Preciso disso para aguentar ser.
Em tempos de v�rus, eu e Sofia, minha dupla na m�sica e na vida, encontramos nossa sobreviv�ncia �ntima e art�stica no mergulho. Um mergulho longo e sem previs�o de emers�o. Arrastado, silencioso, detalhista. Horas a fio se conhecendo, se entendendo e se redescobrindo. O que n�o t�nhamos tempo para fazer at� o boom do v�rus virou mato, veio forte.
Clara e Sofia finalmente tiveram um tempo para entender tudo o que havia acontecido durante quatro anos de trabalho duro. Todos os tijolos que foram colocados e agora est�o envoltos no concreto que segura e constitui essa dupla. Passamos dias e dias numa terapia infind�vel, analisando todas as marcas que ficaram e se ramificaram ao longo dos anos e descobrindo para onde elas v�o nos levar.
Esse mergulho nos apresentou nossa identidade, nossa mensagem, o som indie pop que produzimos. A gente gosta de cor, a gente gosta de gente, a gente ama o amor e a gente quer cantar. Mergulho de onda criativa e de riscos corridos. Finalmente. Oba! L� vem a produ��o do nosso primeiro disco.
Estamos crescidas, vamos amadurecendo. Sem romantizar o per�odo de reclus�o, conseguimos colher uns lim�es durante o nado. Com toda acidez que os acompanha, mas a limonada vem. Nesse encontro com n�s mesmas, fomos lembradas de sentir e esquecer. A arte faz viver. Estamos vivas, tudo sob controle.
Paralela e paradoxalmente � submers�o, pairamos fortemente no mundo virtual das lives e buzinas no lugar de palmas – o show no drive-in foi louco. Que mundo louco. Me recuso a chamar de novo normal. � mais um recurso, um respiro muito bem dado. Tem que respirar. O palco mudou. T� diferente. Tem v�rias facetas. Metamorfose do mundo novo.
Oi, mundo. Oi, gente, que saudade. Deixa eu cantar pra voc�s? Viramos produtoras de conte�do. Fazedoras de lives. Tudo o que era cozinhado nas nossas tais sess�es de terapia virava conte�do criativo nas nossas redes. Fomos dando vaz�o. Fomos indo. E achamos conforto e plateia. Achamos at� uma plateia presencial! Carros! (Que nem no filme!) Buzinas calorosas saudaram e aplaudiram nossa performance! Numa �urea de saudosismo e uni�o, compartilhamos alegria com 106 carros. (QUE NEM NO FILME!) Naquela hora preciosa e estranha, o sopro veio forte! Aquele vento que faz sentir e esquecer. Aquela atmosfera que se descola um pouquinho da estranheza do isolamento. Recebemos, neste mundo ao avesso, um sopro bem forte.
No mergulho ou no novo normal, a poesia t� l�! Me soprando pra frente. Me fazendo sentir. Me dando motivo. A saudade que a gente t� do palco, o amor pela m�sica, a for�a da nossa amizade leva pra frente. Que vento poderoso! A cada encontro desses longos seis meses, um passo flutuante para a frente foi dado. � dif�cil enxergar sempre esse lado bonito, o rom�ntico. � dif�cil se deixar sentir plenamente. T�o plenamente a ponto de voc� se ver num mundo sem paredes. Mas a poesia t� l�. O tempo todo. Por onde voc� se adaptar. Por onde os estranhos e improv�veis caminhos nos levarem. Ela t� l�.
Felizes somos n�s por viver e sobreviver de poesia e gente.
