(none) || (none)

Continue lendo os seus conte�dos favoritos.

Assine o Estado de Minas.

price

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e seguran�a do Google para fazer a assinatura.

Assine agora o Estado de Minas por R$ 9,90/m�s. ASSINE AGORA >>

Publicidade

Estado de Minas COLUNA HIT

Luis Giffoni: '2020, o ano que ainda n�o existiu'

No 'Di�rio da quarentena', escritor registra a saga que viveu nestes 180 dias, ao enfrentar a pandemia na Europa e a perda de amigos no Brasil


13/09/2020 04:00

Di�rio da quarentena

2020, o ano em que 
ainda n�o vivemos

Luis Giffoni
escritor

Estava com minha filha em Zurique, e a desinforma��o se espalhava com desenvoltura. Alguns diziam que todos os aeroportos seriam fechados naquele dia, 5 de mar�o. O surto de COVID fugira ao controle no pa�s. Outros, que a Inglaterra, nosso destino, n�o aceitaria mais passageiros procedentes da Su��a a partir das sete da noite. As autoridades inglesas j� haviam proibido os voos da It�lia. No Brasil, acabavam de declarar a quarentena.

Meus ouvidos, pouco a pouco, se acostumavam � palavra pandemia. Nome estranho. Lembrava coisa medieval. O flagelo montava o cerco ao meu redor. Na escola das minhas netas, em Londres, uma coleguinha havia confirmado o terr�vel diagn�stico. Suspenderam as aulas. Eu logo estaria com minhas netas. E se?

Embarcamos para Londres sem problemas. Poucas pessoas usaram a m�scara durante o voo. Eu era uma das exce��es. Fa�o parte do grupo de risco, estou no card�pio preferido do v�rus. As fat�dicas hist�rias da Lombardia, da Espanha, da Fran�a me acompanharam. As da Inglaterra tamb�m. O perigo mora ao lado. A chuva e o frio londrinos me deixaram cismado. Garganta co�ando, ouvidos amea�ando doer, at� achei que tivesse febre. Medi a temperatura. 36,5. Cisma febril idiota. Ser� que desenvolveria doen�a imagin�ria? Ningu�m com m�scara na rua. Mas o medo rondava a cidade. Cancelaram uma das palestras que eu faria. Minha filha come�ou a trabalhar em casa, o hoje corriqueiro home office. O n�mero de casos dobrava com rapidez. Todas as escolas foram fechadas.

No voo para o Brasil, havia pouca gente, sinal do medo, e eram raros os que se submetiam � m�scara. Fui um deles. Tremendo desconforto. Doze horas sufocado. Sobrevivi. Em Confins, os taxistas cercaram os passageiros no desembarque, oferecendo o servi�o. Quando me viram mascarado, despistaram, fugiram, ningu�m quis me levar para BH. Um Uber
me salvou.

Fui direto para o confinamento. Temia passar para minha mulher um eventual cont�gio. Ou para outras pessoas com quem convivo. �lcool em gel, m�os bem lavadas. Durante duas semanas, n�o sa� do quarto. A constata��o de que n�o possu�a mais a liberdade de ir e
vir me incomodou.

BH estava estranha. Engarrafamentos vespertinos desapareceram. De manh�, �s vezes, a rua estava vazia. O clube n�o abria mais. Motoboys eram a exce��o. Enxameavam. Parecia que todos os vizinhos tinham apelado para o delivery. � noite, o panela�o. Uns xingavam o presidente, outros o apoiavam. Na televis�o, a previs�o de v�timas variava de 2 mil a 5 mil. Um m�dico falou em 20 mil. Tacharam-no de alarmista. O Brasil conheceria apenas mais uma gripezinha, ponto final.

Aprendi uma por��o de nomes: zitromicina, ivermectina, dexametasona, etc. Surgiu a pol�mica da cloroquina. Os v�rus n�o ligaram para a politiza��o dos medicamentos. Sentiram-se � vontade para matar. Como mataram.

Aos poucos, a nova rotina se imp�s. Ao sair de casa para uma caminhada, optava por espa�os livres, perto de parques, em hor�rios alternativos, sempre com m�scara. Alguns me criticaram: eu arriscava demais. Tamb�m me arriscava ficando sedent�rio em casa. N�o visit�vamos nem receb�amos nossos filhos e netos. Quando muito, os v�amos de longe, de tchauzinho. Reli A peste, de Albert Camus. Uma descri��o bem semelhante � que viv�amos. Tamb�m reli Decameron. A apresenta��o do livro mostra como nossa COVID � uma brincadeirinha perto da Grande Peste.

Os dias correram meio ins�pidos, e essa falta de paladar n�o era sintoma da doen�a. Nem de t�dio. Parecia fic��o cient�fica. As pessoas se descuidaram. A pandemia liberou as garras, os hospitais lotaram. Acompanhar o �ndice de ocupa��o de leitos de UTI virou mania: qualquer um poderia ser o pr�ximo paciente. A falta de respiradores era outra preocupa��o: morrer sufocado me assusta. O troca-troca de ministros da Sa�de aumentou nossa vulnerabilidade. A explos�o de mortos aconteceu. E ainda a explos�o de desorganiza��o e falta de entendimento.

Ningu�m se sentia (ou ainda se sente) respons�vel pela trag�dia. Amigos e conhecidos tombaram, n�o pudemos reverenci�-los. N�o h� vel�rios. Tristes momentos. Os milhares de brasileiros ca�dos n�o receberam sequer um momento de rever�ncia oficial. Tinham de morrer mesmo, disseram. Revoltante.

De repente, estamos em 5 de setembro. De repente n�o. Chegar aqui foi sofrido. Mas chegamos. Cento e oitenta dias. Meio ano. 2020, o ano em que ainda n�o vivemos. 2020, o ano que ainda n�o existiu. E que tem tudo para continuar inexistindo. Sobreviver � a grande meta. O futuro dir�.

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)