
“Est�o falando de voc� nas redes sociais”, ela me disse. Com uma express�o de interroga��o, perguntei: “Como assim, de mim? O que eu fiz?”. “O fulano escreveu que a Peppa Pig est� no evento. � voc�”, ela disparou. E eu levei alguns segundos para fazer a associa��o. N�o era de mim que falavam. Era de uma pessoa cujo sobrenome � ‘Leit�o’”.
E a pergunta que ficou pairando por anos, at� que eu conseguisse entender, �: “o que fez com que a primeira associa��o na cabe�a daquela pessoa, ao ler a palavra ‘pig’, o equivalente a ‘porca’ em portugu�s, lembrasse de mim?
Aqui, voc� leitor, j� deve imaginar o motivo: eu sou uma mulher gorda. E no imagin�rio popular, � mais f�cil associar um corpo gordo � falta de asseio, a uma personagem cor de rosa de um desenho animado, do que o equivalente em dois idiomas diferentes.
Parece banal, mas � violent�ssimo. No imagin�rio, uma porca rosa s� pode ser associada a um corpo gordo, n�o a um sobrenome de algu�m, cujo sin�nimo � o mesmo em outro idioma. %u2063E vale lembrar que isso foi bem antes das ofensas � Joice Hasselman, tamb�m chamada de Peppa Pig na �ltima campanha eleitoral em 2020.
Gosto muito dessa hist�ria que aconteceu comigo em 2017, durante um evento que eu prestava servi�o, porque ela ilustra, justamente, a facilidade de animaliza��o dos corpos gordos.
Na coluna da semana passada, falei sobre a bestializa��o da mulher gorda e entendo os temas como correlatos. A desumaniza��o dos corpos gordos � recorrente e n�o para nela mesma. Al�m de desumanizar-nos, nos animalizam, como forma de ‘lembrar’ que jamais estaremos no mesmo n�vel de humanidade. Se uma mulher gorda for lida como uma porca - ou, na mais gentil das vezes, como uma baleia, n�o ser� lida como mulher e isso garante a manuten��o dos privil�gios dos corpos magros, brancos e et�reos.
A hist�ria poderia ser engra�ada, mas tem um desfecho dram�tico. Aparentemente, apontar a gordofobia � mais inc�modo a quem praticou do que para quem sofre. Supostamente, eu deveria ter lidado com o fato calada e n�o, anos depois, quando finalmente elaborei, falar sobre em minhas redes e escritos.
A psican�lise considera a sublima��o uma das formas mais eficientes de canaliza��o da puls�o. Venho aqui para comprovar. Transformei o tal fato em um poema. Este poema virou uma performance exibida num festival de artes.
No entanto, n�o s�o todas as pessoas que conseguem lidar t�o bem com isso. E a�, essas pequenas agress�es, que nos fazem pensar que nossos corpos - e por conseguinte, n�s mesmos - n�o somos dignos de existir dentro deles e nem na sociedade.
E esses lembretes nos s�o oferecidos gratuitamente, nas mais corriqueiras - e tamb�m impens�veis situa��es.
“Aquela porca gorda!”. E que tire o primeiro quilo quem nunca ouviu - ou disse essa frase - em refer�ncia a uma mulher gorda. E cabe aqui uma pergunta: o que querem dizer, exatamente com isso?
A compara��o com os animais, no caso porcas (ou leitoas) se d� pelo tamanho? Pelo apre�o � lama e � sujeira? Por ambos? E estas s�o perguntas que me rondam desde sempre, afinal, sempre habitei um corpo gordo - da inf�ncia a vida adulta - e tais ‘adjetivos’ sempre serviram ao meu corpo, por�m, s� recentemente entendi que n�o s�o naturais, embora a aceita��o deles naturalize os comportamentos opressores.
Sobre nossos corpos podem ser ditas as coisas mais cru�is. Contra nossas exist�ncias, podem ser feitas - com naturalidade - as compara��es mais b�licas. E ainda sim, nada acontece. Quem tece tais coment�rios pode fazer isso e se manter do lado certo da for�a. %u2063
E, para voc� que leu at� aqui, quero propor um exerc�cio: qu�o violento voc� tem sido com pessoas gordas? Quanto da sua fala, no dia a dia,est� impregnada de opress�o e, mesmo assim, voc� segue sendo ‘politicamente correto’, ainda que suas coloca��es causem traumas profundos e ameacem a exist�ncia de corpos dissidentes? Quantas compara��es assim - de uma mulher gorda com uma porca - voc� j� fez e saiu, ‘com a raz�o’, de uma situa��o?
"E, repito aqui o �bvio: existe uma fronteira abismal entre uma brincadeira e uma fala que desumaniza algu�m. E esse comparativo de corpos gordos a bichos, sobretudo os que vivem em meio a sujeira, � algo devastador"
De algum modo, me sinto repetitiva e falando obviedades, mas sei que, na pr�tica, � urgente que eu fale sobre isso. E fale sobre como a ‘inocente’ frase “Aquela porca gorda” cause viol�ncias sem fim no dia a dia de pessoas gordas.
Recentemente, em uma conversa com uma amiga que tamb�m � gorda, ela me confidenciou que, durante muitos anos, “perdeu muito tempo” da vida, porque tinha a fixa��o de sair de casa e chegar no rol�, na balada, no trabalho, numa reuni�o, etc, com os cabelos molhados. E voc� deve estar se perguntando: por que ela fazia isso?
Esse era o jeito dela de “provar” que tinha tomado banho para estar ali. Que era limpa. Que n�o era uma “porca gorda”. S� que, ao fazer isso, ela perdia muito tempo em tr�nsito, indo e voltando e, com isso, tempo de vida, de experi�ncias, de eventos, etc. E, para passar a impress�o que n�o era suja, afinal, um bel�ssimo substituto para “Aquela porca gorda” � tamb�m “Aquela gorda nojenta”. E que atire o primeiro quilo quem nunca pensou e/ou proferiu tais palavras ao se referir a uma mulher gorda.
E por que eu conto isso? Porque, aparentemente, “� s� uma piada” e “ningu�m nunca morreu por isso”, v�o argumentar, os mesmos que tacham de ‘mimimi’ nossas dores, contudo, tal pr�tica dilacera a pessoa. E esta amiga n�o � a �nica. Tenho outra que tem obsess�o por banhos e por estar sempre cheirosa - at� de forma exagerada - com cremes, shampoos e perfumes caros. Esse � o jeito dela de dizer que n�o � porca.
Descolar-se desse significante � mais dif�cil do que a quantidade de horas esfregando a pele embaixo do chuveiro. Estou falando de uma sujeira imposs�vel de sair - e de ser ignorada. E o nome dela �: opress�o estrutural.
O mesmo tipo de opress�o que � validada pelo senso comum. Por quem justifica com “� s� uma brincadeira” ou “� s� um coment�rio”. E, repito aqui o �bvio: existe uma fronteira abismal entre uma brincadeira e uma fala que desumaniza algu�m. E esse comparativo de corpos gordos a bichos, sobretudo os que vivem em meio a sujeira, � algo devastador.
E n�o para por a�. Por curiosidade, antes de escrever este texto, digitei “porca gorda” na ferramenta da busca do meu computador. A ocorr�ncia apontava mais de 23 mil resultados. Na primeira p�gina, um v�deo do xv�deos (um dos principais sites de pornografia do mundo), dizendo ‘homem fudendo porca gordinha’. Um pouco mais embaixo, ‘porca gorda safada’.
Tais ocorr�ncias s� refor�am os dados do Pornhub (outro site que hospeda pornografia). As mais recentes mostram que o termo BBW (big beautiful woman = mulher grande e bonita) continua sendo um dos mais buscados e subiu cinco posi��es no �ltimo ano (2019).
Aqui a quest�o �: existe uma demanda de consumo - e de desejo - sobre estes corpos, por�m, ocorre quando existe, tamb�m, essa desumaniza��o, a animaliza��o, as muitas formas de subjugar.
E aqui podemos poupar a delonga das desculpas ligadas � sa�de das pessoas gordas e da preocupa��o inerente com a mesma. Fato �: ningu�m est� nem a� com a sa�de de ningu�m. Caso estivessem, usariam m�scaras e �lcool gel. Evitariam sair de casa sem necessidade e se compadeceriam com a impens�vel e desesperadora marca de quase 600 mil mortos por Covid-19. Ningu�m est� nem a� com a sa�de de algu�m, seja gordo, seja magro. S� querem, mesmo, humilhar corpos gordos.
Mas, na melhor das hip�teses, caso estejam preocupad�ssimos com a sa�de alheia, minha sugest�o � procurar um hemocentro e doar sangue e/ou fazer cadastro para doar medula �ssea. � um excelente jeito de externalizar isso e funciona.
Queria ter, mas n�o tenho uma resposta, tampouco muito otimismo em rela��o a isso. Me despe�o da coluna desta semana, com o questionamento: por que s� s�o aceitos os corpos de mulheres gordas em situa��es de degrada��o? Por que corpos de mulheres gordas felizes te incomodam tanto?